quarta-feira, 1 de julho de 2020

O "CHEGA"




Acabou de ser publicado o livro A Nova Direita Anti-Sistema: O Caso Chega, de Riccardo Marchi, professor do ISCTE e investigador dos movimentos de Direita em Portugal.

Esta sua mais recente obra está dividida em três partes: I - O Líder; II - O Partido; III - As Ideias.

Na I Parte, o autor debruça-se sobre o percurso pessoal de André Ventura desde os primeiros anos até à sua entrada na vida política, a passagem pelo PSD e a vontade de criar um novo partido.

A II Parte é dedicada à forma como se constituiu o "Chega". Quais às pessoas intervenientes e o papel de cada uma, as fases de formação do partido, as vicissitudes, o choque de ideias, algumas defecções, a participação nas eleições europeias e legislativas e a entrada de André Ventura para o Parlamento, como deputado único do novel partido. É um registo minucioso de todas as etapas, sem dúvida com interesse histórico mas talvez demasiado longo para o leitor comum.

A Parte III é a mais interessante. Segundo o autor, a ideologia do partido é muito mais flexível que o seu carácter populista e André Ventura está menos interessado na codificação de uma doutrina e mais nas formas eficazes de interpretação dos anseios das "direitas populares". Os principais ideólogo do "Chega" são dois: Jorge Castela, desde Outubro de 2018 até à saída do partido em Março de 2019, e Diogo Pacheco de Amorim, desde a sua entrada no início de 2019 e com particular incidência na Primavera/Verão de 2019. Estas duas linhas ideológicas poderiam ser classificadas como de "nacionalismo liberal anti-europeísta" e "liberal-conservadorismo europeísta", embora a sua tradução na proposta programática do "Chega" não revele especiais divergências.

A seguir, Marchi refere os principais documentos produzidos pelo partido (e quais os seus autores) e menciona que muitos dos documentos nunca serão assumidos oficialmente devido à oposição da ala social-democrata (Nuno Afonso). Com a saída de todos os autores principais, os documentos ficam letra morta, embora algumas das suas partes tenham sido aproveitadas posteriormente nos textos políticos do "Chega".

«A produção ideológica do Chega, portanto, aparece bastante dispersa, fragmentada, com uma pluralidade de documentos elaborados em apenas um ano e meio de existência do partido, a partir de grupos de trabalho diversos, com diferentes sensibilidades ideológicas, embora todas balizadas pelo liberalismo económico e pelo conservadorismo dos valores. Este conjunto de documentos incide frequentemente nos mesmos pontos, com variações por vezes sensíveis, nunca antitéticas, mas causadoras de indefinição, mais que de esclarecimento da posição do partido em assuntos relevantes. É possível, contudo, encontrar cinco temas recorrentes em toda a produção ideológica do Chega: a identidade do partido, a economia, a família e a educação, a imigração, a Europa. Resulta, assim, mais conveniente descrever as posições do Chega em relação a cada um destes temas, evidenciando as semelhanças ou as diferenças que os vários documentos e autores aportaram na sua abordagem.» (p. 139)

Não é assim fácil comentar aqui os temas acima indicados, até porque Riccardo Marchi procede à descrição da evolução do pensamento do partido ao longo do tempo.

No que respeita à Identidade, segundo a Declaração de Princípios, «O Chega assume a sua natureza nacionalista, liberal e democrática, conservadora e personalista», inspiração de Fernando Pessoa e Francisco Lucas Pires, e com referências a Montesquieu, John Locke, Edmund Burke, Roger Scruton, Adam Smith, Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. No Programa Político Chega 2019, de Diogo Pacheco de Amorim, as referências filosóficas permanecem, mas é omitido o termo "nacionalismo liberal" por "conservadorismo de feição liberal". O liberalismo é uma constante na identidade do "Chega". No Manifesto Político Fundador, o "Chega" apresenta-se como partido "de base e natureza essencialmente popular" e aponta para a necessidade de "uma ruptura com o sistema político vigente", o que passa pela diminuição do estado na vida dos portugueses. Assim, o Estado deverá limitar-se a quatro conjuntos de funções: as funções soberanas (Justiça, Segurança, Defesa, Política Externa, Arbitragem/Regulação); as funções autoreguladoras e de gestão para a selecção de meios financeiros e humanos estritamente necessários à sua actividade; as funções de preservação do património material da nação; as funções subsidiárias e/ou supletivas, só nas áreas onde a sociedade civil não manifeste interesse em actuar. O "Chega" propõe ainda a diminuição do número de leis, que devem ser poucas, simples e claras, e a redução do número de deputados à Assembleia da República, o agravamento das penas para crimes de terrorismo, corrupção, homicídio (prisão perpétua), pedofilia (castração química) e opõe-se ao chamado marxismo cultural, combatendo as teorias de Max Horkheimer, Jürgen Habermas, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse e Erich Fromm, que conduziram à introdução na agenda política das "causas fracturantes): ideologia do género, aborto, casamento gay, adopção de crianças por casais homossexuais, activismo trans, eutanásia, multiculturalismo pró-imigração.

O partido pretende constituir uma IV República (presidencialista), com a reforma do sistema eleitoral e a redução drástica dos ministérios. O "Chega" tem afinidades com o "Vox" espanhol, com com a "Lega" e o "Movimento 5 Estrelas" italianos, com o "Rassemblement National" francês e com o "Alternative für Deutschland" alemão, mas considera que a sua linha é especificamente portuguesa, não se identificando verdadeiramente com quaisquer destes partidos estrangeiros.

Relativamente à Economia, segundo Diogo Pacheco de Amorim, existem quatro concepções diferentes: o Estado como dono da economia, segundo os comunistas; o Estado como motor da economia, segundo os socialistas; o Estado como dinamizador da economia, segundo os sociais-democratas e os democratas-cristão; o Estado como regulador, árbitro e, no limite, suplente na economia, segundo os liberais-conservadores. O "Chega" inscreve-se nesta última família política.

São depois apontadas diversas medidas sobre impostos e respectivas taxas, sobre os contratos de trabalho, sobre o desmantelamento do aparelho burocrático do Estado, sobre a dependência financeira de Bruxelas, sobre os trabalhadores migrantes.  É defendida a flexibilização da legislação laboral, a introdução do contrato de trabalho semanal, a privatização da saúde e do ensino (embora o Estado garanta o acesso gratuito), o combate à corrupção, a abertura da Segurança Social ao sector privado, etc.

No capítulo Família e Educação, passa-se do liberalismo ao conservadorismo. O casamento deve ser, segundo a matriz judaico-cristã portuguesa, entre homens e mulheres, embora o "Chega" considere formas legais de união entre pessoa do mesmo sexo, uma vez que rejeita a homofobia. É feita a defesa da família heterossexual, incentivada a procriação, devido ao declínio demográfico, mas condenada a adopção gay, a eutanásia, o aborto. A família, e não o Estado, é considerada como fonte primária de formação dos jovens e é condenada a ideologização do ensino público. Pacheco de Amorim propõe mesmo a extinção do Ministério da Educação «que não passa de uma tecnoestrutura blindada pelo PCP e pelo BE, impossível de ser penetrada e reformada por qualquer ministro» (p. 169). O partido rejeita o multiculturalismo e é a favor da manutenção da onomástica e toponímia de ruas, monumentos, etc., recusa pedidos de desculpa pela nossa História e defende a manutenção da nossa identidade.

Quanto à Imigração, o "Chega" rejeita todas as formas de racismo, xenofobia e qualquer forma de discriminação contrária aos valores fundamentais constantes da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Combaterá as manifestações de racismo, de anti-semitismo, de suprematismo, e «os novos genocídios perpetrados pelas "teocracias no médio e extremo-oriente" contra os povos judeus, cristãos e yazidi» (p. 171) Faz uma discriminação entre «as comunidades migrantes que não representam qualquer problema (as oriundas dos países europeus, dos PALOP, da China) e as que, pelo contrário, são uma ameaça: os alegados "refugiados sírios", na verdade islâmicos vindos do Magreb, Bangladesh, Paquistão, com documentos forjados, através das redes criminais e das ONG.» (p. 171). Todavia, a principal preocupação do "Chega" é a imigração ilegal. E também o controlo de fronteiras que deve ser eficiente. A fronteira «é uma dimensão essencial para salvaguardar a Nação das redes criminais transnacionais, que controlam a circulação ilegal de seres humanos, drogas e capitais.» (p. 173). Outra questão que preocupa o partido é a atribuição da nacionalidade portuguesa. E também a identificação dos refugiados. O partido, quanto à nacionalidade, defende o ius sanguinis contra o ius soli. Além disso, pede  saída de Portugal do Pacto Global das Migrações, da ONU, assinado em Marraquexe em 10-11 de Dezembro de 2018. «O plano integra a estratégia da ONU de promoção da migração de substituição para a Europa, como explicitado, já em 2000, no relatório Replacement Migration, do Departamento de Economia e Assuntos Sociais da ONU. Fazendo eco de certas teorias da conspiração de algumas direitas radicais, o documento do Chega declara que esta estratégia concretiza as aspirações das elites globalistas, há muitas décadas empenhadas na constituição de um governo mundial, na senda do programa do austríaco Richard Nikolaus von Coudenhove Kalergi, elaborado na primeira metade do século XX.» (p. 180)

Na página 180, Riccardo Marchi escreve: «O alvo da crítica é a migração islâmica em massa: a chamada Hijrah, teorizada por Maomé, para implantação do Califado Mundial.» [Impõe-se-me fazer aqui uma correcção: A Hijra (em português Hégira), nada tem a ver com o Califado Mundial. Significa em árabe "abandono", "exílio" e é a palavra que designa a "fuga", segundo os nossos manuais escolares, de Maomé de Meca (onde estava a ser hostilizado) para Yatrib (que depois passou a chamar-se Medina) em 15/16 de Julho de 622. Esta data marca o início do Calendário Islâmico.]

«Também para Patrícia Sousa Uva a questão é de proporções, porque Lisboa sempre teve historicamente uma comunidade islâmica integrada, vinda do norte de África e de Moçambique, ao passo que os fluxos de massa previstos pelas organizações internacionais determinam um desequilíbrio e replicam os problemas vividos por outras capitais europeias. Para Nelson Dias da Silva, as consequências não são apenas sociais, mas também políticas, como demonstram os partidos mainstream europeus que ficaram reféns do voto étnico e já não conseguem reverter políticas migratórias que nas últimas quatro décadas começaram a mostrar a outra face da moeda.» (p. 181)

Sobre a Europa, André Ventura considera-se não nacionalista e europeísta convicto. Mas também há quem no partido entenda que Portugal se deve preparar para o desmoronamento da União Europeia. Um documento, aprovado em Convenção Nacional «enaltece o modelo da Europa das Nações soberanas e democráticas, governado, preferencialmente, pelo princípio de unanimidade entre os Estados membros - existente até ao Tratado de Maastricht - e não pelo princípio da maioria actualmente em vigor, funcional à hegemonia franco-alemã.» (p. 187) Também o "Chega" deve «recusar, de forma clara, inequívoca e absoluta a participação de Portugal numa Federação Europeia.» (p. 187). Pacheco de Amorim enaltece a «complementaridade entre nações diferentes na Europa, na senda da confluência entre as duas matrizes identitárias europeias: a greco-romana e a judaico-cristã.» (p. 187). «A desconfiança do Chega com as políticas de potência da UE integra, contudo, uma visão geopolítica claramente ocidentalista e avessa às organizações mundialistas. Neste sentido, já a Moção Castela pedia a suspensão da participação de Portugal na ONU, mas reivindicava a sua permanência na NATO, principalmente para fins de contraste ao terrorismo islâmico e de resistência à geopolítica hegemónica da Rússia, China e Irão. Por isso, alinhando com as direitas europeias, o Chega compromete-se claramente com a defesa da existência do estado de Israel - ameaçado pelo "nazijiadismo", culpado pelo recrudescimento do antissemitismo -, até com medidas radicais, como a transferência da embaixada portuguesa para Jerusalém, na senda do presidente Donald Trump.» (p.188)

Nas Conclusões, Riccardo Marchi define o "Chega" como um partido populista da nova direita radical. E explica. Direita radical e não extrema-direita. A extrema-direita tem um carácter anti-sistema e objectivos de abate do regime vigente, através de meios violentos (e, por isso, é alvo de repressão); a direita radical tem um carácter anti-sistema e objectivos de mudanças substanciais no regime, mas através das regras do jogo estabelecidas pela Constituição, inclusive com a sua reforma (e, por isso, é permitido). A velha direita (os partidos anti-sistema colocados mais à direita do espectro político), reconhecem-se herdeiros dos autoritarismo de entre-guerras: nacional-socialismo, fascismo, franquismo, salazarismo, etc. A nova direita, na sua cultura política, nada tem a ver, do ponto de vista doutrinário, com os autoritarismos da direita dos anos 20 e 30 do século passado. Quanto ao populismo, ele é uma ideologia de baixa densidade, caracterizada por uma visão dicotómica da realidade política, que contrapõe o povo como entidade homogénea e virtuosa à elite corrupta e corruptora. Esta visão dicotómica pode integrar ideologias densas, tanto de esquerda como de direita. «O Chega incorpora o "nacionalismo banal", transversal à sociedade portuguesa, presente também no discurso institucional, sem ligações e até crítico da forma como o Estado Novo o encarnou. Esta encarnação, com particular atenção ao seu artífice, António de Oliveira Salazar, pelo contrário, é central na mundividência da direita radical tradicional.» (p. 196)


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Nesta obra, o prof. Riccardo Marchi pretende estabelecer um retrato do "Chega". Tarefa difícil, que o mesmo reconhece ao longo das páginas, já que a natureza do partido tem-se alterado com o decorrer do tempo, ainda escasso, da sua existência. Cita o autor diversos documentos, quer oficiais, quer da autoria de dirigentes ou de destacados militantes, sob a posição partidária face aos vários temas que preocupam os portugueses. E transcreve afirmações contidas nesses documentos, algumas das quais eu mesmo retranscrevi neste post. Daí se constata que há posições divergentes sobre certas matérias e que existe, segundo Marchi, um diálogo constante dentro do "Chega". É pena que o autor não tenha incluído, em anexo, os textos desses documentos, para melhor se apreender as intenções neles consagradas e a previsível orientação do partido que se afigura, por ora, um work in progress. De facto, não consegui encontrar, talvez por falha minha, um documento definitivo (se alguma coisa é definitiva?) do que é, neste momento, o programa oficial do "Chega".

Assim, pretendendo fazer um comentário ao projecto do partido, vou utilizar as conclusões constantes do livro de Riccardo Marchi, com a ressalva de poder errar a minha interpretação dado o facto de existir, em alguns aspectos, uma razoável margem de ambiguidade.

Parece pacífico afirmar que o "Chega" é liberal em economia e conservador nos costumes.  Pretende reduzir o Estado ao mínimo, determinando que a sua intervenção na economia seja apenas supletiva, nas áreas em que a iniciativa privada não seja possível ou satisfatória. Não creio que esta proposta seja do agrado da maioria dos portugueses, que por tradição e atendendo às circunstâncias, desejam um Estado mais interventivo. Isto é, os portugueses querem mais Estado, embora melhor Estado. Mais Estado não significa necessariamente mais gente a viver à custa do Estado mas uma gestão racional dos serviços prestados à comunidade. Na presente crise de pandemia, como estariam os portugueses se não existisse Serviço Nacional de Saúde??? Mesmo com o SNS desde há muito descapitalizado, foi possível ocorrer a esta emergência nacional (e mundial). O que importa, até aguardando novas emergências de saúde, é robustecer o SNS. E que dizer da Escola Pública? É ela indispensável e deverá ser tendencialmente gratuita, onde ainda não é. Concordo num ponto. O Ministério da Educação tornou-se num monstro e desde há décadas, ensaiando sistemas votados ao fracasso, vem degradando a instrução dos portugueses. Mas não deve ser eliminado, antes reformado, custe o que custar. Com a missão de combater as actuais narrativas, que pretendem eliminar a história das nações, em nome de um suposto "politicamente correcto". Também a Segurança Social deverá ser fundamentalmente da responsabilidade do Estado. Tem-se visto, em países estrangeiros, como se desmoronaram serviços privados de segurança social. Vou mesmo mais longe. Considero que, além das funções de soberania, deviam pertencer ao Estado os serviços estratégicos da Nação: energia, água, transportes, comunicações, obras públicas, etc.,etc. Ainda sobre economia, apraz-me considerar que a "mão invisível do mercado", cara a Adam Smith, só existe teoricamente, como a prática ao longo do tempo, se encarregou de demonstrar.

O "Chega" assume-se como partido anti-racista e anti-homofóbico, ressalvando embora a indesejabilidade de certo tipo de imigração e determinadas reivindicações da ideologia do género. Nesta área, estou certo de que se verificam entre nós comportamentos e actos anti-racistas e que possa mesmo haver, em alguns segmentos da população, uma mentalidade subliminar racizante, mas não penso que se possa considerar Portugal como um país intrinsecamente racista, ao contrário de outros países europeus, como a França e a Inglaterra. Também o partido se reclama de anti-homofóbico, ainda que com especiais reservas à agenda LGBTQ+. Na verdade, a sucessão de reivindicações dos movimentos de identidade do género acaba por parecer à população, pelo seu exagero, absolutamente deslocada. A descriminalização da homossexualidade foi um passo importante, bem como o reconhecimento oficial de ligações de pessoas do mesmo sexo. É mais importante, após o reconhecimento legal, incutir no espírito das massas esta nova normalidade, e isso é um trabalho paciente e demorado. Não decorre das disposições jurídicas mas da evolução dos comportamentos sociais.

A proposta da castração química dos pedófilos merece-me a maior repugnância. A pessoa humana deve ser fisicamente inatingível, além do que esta medida, caso viesse a ser aprovada, não teria resultados significativos, como se poderia provar, mas o caso não vem agora à colação. A manutenção da integridade física dos humanos leva-me a condenar igualmente a excisão genital e, até, a circuncisão (salvo por razões meramente sanitárias), que não deixa de ser um acto castrador do ser humano. Eu sei que a ablação do prepúcio é comum a culturas milenares como o judaísmo e o islão, e a sua interdição provocaria certamente reacções inusitadas. Recordo que a proibição da circuncisão foi o pretexto para os judeus iniciarem a sua grande revolta contra Roma, que ensombrou os últimos anos do reinado do imperador Adriano, como Marguerite Yourcenar brilhantemente demonstra nas suas Mémoires d'Hadrien. Mas tal prática não deixa de constituir uma desfiguração do pénis original, abundantemente retratado nas estátuas gregas e romanas.

O "Chega" manifesta-se a favor da União Europeia, embora rejeitando uma federação, e infere-se que é partidário da manutenção no euro. Como Emmanuel Todd explica na sua mais recente obra, o euro tem sido uma tragédia para a Europa, pelo menos para alguns países, que não a Alemanha. Mas, nas circunstâncias actuais, creio que uma saída de Portugal da UE e do euro seria catastrófica. Basta olhar para o Brexit, ainda não concluído na prática (e o Reino Unido não utiliza o euro) para verificar os incontáveis problemas inerentes ao abandono desta União. Possivelmente, ela mesma acabará por se desmoronar. O que importa, sim, é tentar combater a progressiva interferência de Bruxelas nos assuntos que devem respeitar apenas às soberanias nacionais.

A luta contra a corrupção, que é uma bandeira do "Chega", merece todos os aplausos. Precisa, todavia, de ser efectivamente travada. De resto, todos os partidos a proclamam, mas não a praticam. Vício endémico dos povos. Importa fazer alguns esforços. 

A reforma da Justiça deveria merecer uma atenção muito especial do partido, mas não vi propostas concretas. Dessa reforma depende largamente o futuro de Portugal. Ao contrário, quanto à reforma fiscal, existem no texto de Marchi inúmeros exemplos, inclusive com taxas mencionadas, mas a aplicação directa dessas propostas é manifestamente inexequível.

A redução do número de deputados parece-me interessante, bem como a forma da sua eleição e a redefinição dos círculos eleitorais. Também seria desejável a redução do número de assessores, consultores e congéneres que enxameiam o aparelho do Estado, a maior parte sem qualquer utilidade prática, apenas uma forma de empregar amigos e correligionários.É neste capítulo, e na existência de milhares de comissões, grupos de trabalho, unidades de missão, e milhentas coisas congéneres, que reside o verdadeiro peso do Estado. O aumento da intervenção positiva do Estado na vida pública não implica mais funcionários, até conduzirá à sua diminuição, se efectuada com racionalidade e sem cedência a interesses exógenos,

Não pretendendo alargar-me em considerações sobre as ideias do "Chega", há, todavia, um aspecto que me suscita algumas interrogações. Os textos referidos pelo autor, alguns dos quais transcrevi, manifestam uma constante preocupação relativamente ao anti-semitismo. Nada a objectar. Mas existem numerosas referências à defesa da civilização judaico-cristã. Ora a civilização Ocidental é cristã, a sua componente judaica (o Velho Testamento) foi há muito integrada na Civilização Cristã. De resto, ao longo dos séculos a Europa registou sempre uma luta (geralmente não bélica) entre cristãos e judeus. A herança propriamente judaica não integra a civilização cristã. Faz-se também referência à ameaça de perseguição de judeus no Médio Oriente, quando é suposto que são os próprios judeus que perseguem os palestinianos (veja-se o propósito de anexar a Cisjordânia). Por outro lado, no capítulo relativo à imigração, aceita-se a proveniente da Europa e da Ásia, mas não a proveniente dos países árabes e muçulmanos, o que, além de outras razões (também invocadas), denota um preconceito anti-islão. Finalmente, o "Chega" compromete-se com a defesa da existência do Estado de Israel (!!!), que não se afigura estar ameaçado (basta-lhe a protecção dos Estados Unidos, e não só). Todas estas alusões configuram uma posição filo-sionista do partido, que deverá ser esclarecida.


1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado, por este cuidadoso estudo crítico do livro A Nova Direita Anti-Sistema, O Caso Chega, de Riccardo Marchi.
De referir o contraste entre este estudo crítico daquele livro (sendo este também um texto de autor), e o que os média irresponsavelmente divulgam sobre o "Chega".