quarta-feira, 30 de novembro de 2016

ANTÓNIO FERRO, UMA VEZ MAIS




Acabou de ser publicado um novo livro sobre António Ferro: António Ferro - Um Homem por Amar, da autoria de Rita Ferro, sua neta, e classificado como romance.

Não é ainda (e também não era essa a intenção da autora) a grande obra sobre António Ferro, que se aguarda, mas é um livro que reúne impressões pessoais de alguém que, não o tendo conhecido (nasceu já depois da sua morte), pode todavia testemunhar preferencialmente, devido aos laços familiares, acerca da figura incontornável daquele que foi avant la lettre o primeiro ministro da Cultura em Portugal. E fá-lo com objectividade, apesar da proximidade genealógica, num registo íntimo, real e ficcionado, colocando parte da narrativa na boca do protagonista. A recriação por Rita Ferro de aspectos da vida de António Ferro, a partir das palavras do próprio, é um exercício arriscado mas resulta plenamente.

Ao longo de 300 páginas (o livro contém mais de 500, mas inclui, em apêndice, dezenas de cartas, muitas inéditas, de e para António Ferro [algumas para Salazar], uma cronologia do "biografado", uma bibliografia e uma antologia de citações), Rita Ferro traça a carreira do avô, desde a infância, o tempo do "Orpheu", a convivência com figuras da época, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, até à actividade como secretário da Propaganda Nacional e o "exílio" diplomático como ministro plenipotenciário em Berna e em Roma.

Não se trata, todavia, de uma biografia oficial, longe disso. Mas da reinvenção de um percurso singular anacronicamente evocado (como refere a autora), traduzindo a ideia que Rita Ferro concebeu do avô, baseada não só nos testemunhos documentais mas nos testemunhos orais de quem com ele privou, e especialmente nas informações recolhidas "no seio da família". O que permite, também , certos "ajustes de contas".

Sabíamos já muitas coisas a respeito de António Ferro, mas este livro, qual "janela indiscreta", lança um olhar sobre aspectos até aqui ignorados, ou silenciados, da sua vida. E ninguém melhor para o fazer do que Rita Ferro, além de neta, escritora, e senhora de grande perspicácia. Muito interessante a forma como é referida a relação entre Ferro e sua mulher Fernanda de Castro: grande cumplicidade mas vivências diferentes, a ponto de habitarem aposentos distintos na mesma casa da Calçada dos Caetanos. Também de assinalar a referência às visitas da casa, pessoas que não obedeciam, quer no plano político, quer no dos costumes, à norma vigente na época e que causavam certa estranheza a Salazar.

As relações de Ferro com as gentes do "Orpheu" são tratadas com algum desenvolvimento, nomeadamente quando Rita Ferro alude a que a actividade literária do avô pode ter sido ensombrada pelas figuras tutelares que se agigantavam à sua volta (p. 119), em especial Fernando Pessoa, com quem esfriaria provisoriamente relações, depois do que este escrevera sobre o pretenso atentado contra Afonso Costa. Também o Manifesto que Almada Negreiros publicara contra Júlio Dantas provoca descontentamento em Ferro. Júlio Dantas, mestre da língua portuguesa, fora objecto de um ataque violento, ainda por cima com erros de ortografia, por parte de Almada, embora este pretextasse que apenas pretendia atingir o establishment literário. Tratou-se de uma atitude irreverente, própria de um Almada que toda a vida cultivou o exibicionismo e a oscilação de convicções ideológicas, e cujo objectivo era não só atingir a Academia, que Dantas exemplarmente representava, mas obter para si mesmo uma centelha de notoriedade. É curioso que os intelectuais que mais se encarniçam contra as academias são aqueles que estão sempre à espera de uma primeira oportunidade para nelas ingressarem. Estas atitudes de Pessoa e Almada levaram Ferro (segundo a neta), a afastar-se da revista, que entretanto acabaria a sua existência (foram publicados apenas dois números) por falta de financiamento do pai de Mário de Sá-Carneiro.

Também os pintores Carlos Botelho e Eduardo Malta, que tanto deveram a Ferro, não hesitaram em manifestar a sua ingratidão, o segundo em duas cartas a Oliveira Salazar em que se apouca a figura de Ferro (pp. 309 e 457)

Personagem central no livro é obviamente o próprio Salazar, a quem Ferro protestaria sempre a sua indefectível adesão, mesmo quando não se identificava completamente com a orientação do presidente do Conselho de Ministros. António Ferro, homem de pensamento e de acção, propõe-se entrevistar Salazar para dar a conhecer ao país as ideias do que era, no seu entender, o Homem Providencial, depois do período agitado da Primeira República. As entrevistas foram um sucesso e Ferro sugere a criação de um órgão para divulgar a obra do Estado Novo, então nos primórdios, e para desenvolver uma Política do Espírito (segundo a expressão de Paul Valéry). E ninguém melhor do que ele para essa missão. É assim criado o Secretariado da Propaganda  Nacional (1933), chefiado por Ferro, que passou a designar-se em 1945 Secretariado Nacional de Informação. Tudo isto é do conhecimento público e não me deterei em pormenores. Em 1947, António Ferro, (supostamente) cansado de mais de dez anos de actividade e de incompreensões e calúnias, pede a Salazar um posto no estrangeiro, de preferência Paris. Salazar envia-o para Berna (1950), lugar que intimamente detesta. Em 1954, é nomeado ministro plenipotenciário em Roma, vindo a falecer em Lisboa, em 1956, na sequência de uma intervenção cirúrgica.

Como a autora evidencia, a relação de Salazar com António Ferro aproveitou a ambos. O presidente do Conselho aproveitou-se de Ferro para a propaganda do Regime, através de um campo que lhe era alheio, as manifestações culturais, ainda que a palavra "propaganda" não tivesse então a precisa conotação política que mais tarde lhe foi atribuída. António Ferro aproveitou-se de Salazar para realizar uma obra de divulgação cultural, acção que lhe era particularmente cara, ultrapassando largamente a missão política de que estava incumbido, incentivando o modernismo, apoiando os criadores, desenvolvendo uma actividade que cobria os mais variados géneros, do teatro e do cinema, às artes plásticas e à literatura, sem esquecer o turismo. Foi a obra de António Ferro que emprestou algum brilho à aridez da política salazarista, prioritariamente ocupada com os aspectos financeiros.

Há quem, por miopia política ou má-fé, acuse António Ferro de "comprar" com os seus subsídios os artistas mais notáveis da época para que as suas obras contribuíssem para o engrandecimento do Regime. Esquecem-se de que sem o apoio do Secretariado muitos desses artistas jamais teriam alcançado a projecção que posteriormente vieram a adquirir.

Já escrevi várias vezes sobre António Ferro neste blogue, nomeadamente aqui, aquiaqui. Não repetirei, por isso, o que disse nos posts anteriores. As linhas que aqui deixo pretendem tão só dar notícia do livro agora publicado e chamar a atenção do leitor para uma obra diferente na bibliografia passiva de António Ferro.

O livro refere também curiosos aspectos da vida de Fernanda de Castro, sua mulher, e especiais referências de António Quadros, seu filho, figura grada do pensamento filosófico português do nosso tempo, autor de uma obra ainda não suficientemente divulgada e de quem tive o privilégio de ser amigo.

Mas mais importante do que digo acima será provavelmente tudo o que não escrevi.

3 comentários:

Rita disse...

Não sei com quem falo, mas mando desde aqui um abraço reconhecido. Só vi hoje, 13 de Março de 2017. E que bom foi encontrar-me com um espírito objectivo e não preconceituoso. Obrigada a quem!

Rita Ferro

Rita disse...

Ah, vi agora que pertence a Júlio Magalhães, distracção minha. Outro abraço!

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Cara Rita

Conhecemo-nos há muitos anos, desde que eu apresentei, com o apoio de seu pai, de quem guardo as mais vivas recordações, o "Mar Alto" no Teatro Primeiro Acto de Algés.

Depois disso encontrámo-nos algumas vezes, a última das quais, creio, numa sessão evocativa de António Ferro na Sociedade de Geografia.

Nunca é demais enaltecer o que o país deve à acção de António Ferro, para lá de questiúnculas políticas que o tempo tende a esbater.

Um abraço.