terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O FIM DO JORNALISMO NO MUNDO LIVRE




Tomei conhecimento, pelo editorial de  Jean Daniel no nº 2714 de "l'Obs" (10/11/2016), da edição de  Le monde libre, de Aude Lancelin, ex-subdirectora desta revista, livro galardoado com o Prémio Renaudot-Ensaio 2016, recentemente atribuído, e que me havia passado despercebido, tal o descrédito que merecem hoje os prémios literários.

Não posso deixar de estar grato a Jean Daniel pelo texto em que pretende desagravar-se do tremendo libelo acusatório de que ele e "l'Obs" são alvo, e de uma maneira geral a "Esquerda" política e intelectual francesa. Não fora esta prosa do quase eterno director e fundador da revista, e provavelmente não teria lido o livro, tal o silêncio que se fez "ouvir" na imprensa francesa após a sua publicação.


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Aude Lancelin (n. 1973) trabalhou duas vezes em "l'Obs", a primeira de 2000 a 2011, cobrindo especialmente a área cultural, e a segunda a partir de 2014, quando foi convidada a regressar como subdirectora, até ter sido despedida nos princípios de 2016. No intervalo, foi directora-adjunta da revista "Marianne".

O livro Le monde libre é um ajuste de contas pessoal e político com o establishment jornalístico francês e o seu vergonhoso comportamento e também com a entourage do Partido Socialista, de que "l'Obs", durante décadas, foi de alguma forma o porta-voz oficial e oficioso e cuja leitura atenta e reverente era indispensável ao povo de Esquerda.

Neste livro, Aude Lancelin confia-nos as suas memórias da coabitação tempestuosa com a versão desta Esquerda "moderna", cada vez mais à Direita, veiculada pela revista, sob a égide do seu fundador, director durante décadas, e hoje editorialista, Jean Daniel, que com 90 anos é ainda a figura tutelar de "l'Obs", influenciando a sua orientação conforme as conveniências do "meio" socialista, e transformando a publicação, ano após ano, numa imagem pálida e distorcida da vocação original, de acordo com a viragem neo-liberal que vem assombrando o mundo.

Ao publicar o seu libelo, a autora altera os nomes das figuras convocadas, mas um elementar conhecimento da vida política e cultural francesa permite descodificar facilmente a identidade dos visados.

Comecemos pelo passado recente. Le Monde libre é uma sociedade que detém 64% do capital do grupo de imprensa francês Le Monde. A sociedade é propriedade do trio BNP (Pierre Bergé, Xavier Niel e Matthieu Pigasse) e do grupo espanhol Prisa (15%). Em 2014, devido a perdas substanciais, "L'Obs" é adquirido a 65% pelo trio, o que significou o afastamento parcial de um dos fundadores e principal accionista Claude Perdriel.

Vejamos como Aude Lancelin define os três accionistas da revista:

- Pierre Bergé: «L'un devait sa fortune colossale à la haute couture, une des dernières sphères où l'astre français n'avait pas encore pâli, et ne se distinguait plus guère publiquement que par le mécénat de prix littéraires ou par quelques saillies amères sur tel journaliste du groupe qui l'avait indisposé pour des raisons le plus souvent obscures ou anecdotiques...Ses nombreuses relations avec des hommes de pouvoir, l'amitié qui l'avait autrefois uni au président Mitterrand, la respectabilité de gauche qui entourait encore son nom, avaient néanmoins été formidablements utiles à son associé, l'ogre des télécoms, qui, sans cette "savonnette à vilain" n'aurait sans doute jamais pu accéder à la propriété du "Monde".» (p. 17) - Pierre Bergé (86 anos) chegou a Paris aos 18 anos, começou a negociar em livros antigos e conheceu aos 20 anos o célebre pintor Bernard Buffet de quem se tornou amante e colaborador durante oito anos [Encontra-se neste momento, no Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris uma retrospectiva de Bernard Buffet, aberta até 26 de Fevereiro próximo]. Em 1958, estabelece uma relação com Yves Saint-Laurent com quem passa a viver até ao fim da vida deste e com quem cria a famosa casa de alta costura e outros produtos da moda. Entre os muitos lugares que ocupou, foi presidente da Ópera Nacional de Paris de 1988 a 1994, sendo hoje seu presidente de honra. Militante da causa homossexual, fundou a revista gay "Têtu". A fortuna de Pierre Bergé está avaliada em 180 milhões de euros.

Xavier Niel - «Un personnage venu de l'univers des télécommunications et des centres d'appels, ces nouveaux bagnes où des esclaves d'un nouveau type trimaient pour offrir des services low-cost à d'à peine plus fortunés qu'eux. À l'animosité ancienne de mes ennemis, l'ogre de la connexion Internet bradée offrit un débouché simple et sans appel, qui les laissa eux-mêmes sidérés par sa brutalité inespérée, dans un monde de la presse où, il y a peu encore, un moelleux paternalisme réglait les rares conflits sociaux qui pointaient... À ce personnage tentaculaire, dont le passé était notoirement trouble, la presse dite de "progrès" s'était gracieusement vendue en quelques années à peine pour un plat de lentilles et quelques bouchées de pain» (p. 15) - Xavier Niel (49 anos) começou a estudar o potencial do Minitel quando ainda estava no liceu. Criou depois os serviços de Minitel rose e investiu mais tarde nas peep shows e nas sex-shops. Funda depois uma empresa de serviços pornográficos por Minitel, tornando-se milionário aos 24 anos. A seguir, cria a empresa Iliad e adquire sucessivamente a maior parte dos negócios de telecomunicações e de internet em França. Em 2004 esteve preso durante um mês por proxenetismo agravado, mas o processo foi arquivado pelo juiz Renaud Van Ruymbeke. Em 2006 foi condenado a dois anos de prisão com pena suspensa por uso indevido de bens sociais. Divorciado, vive com Delphine Arnault, também divorciada, filha do magnate Bernard Arnault, proprietário de LVMH (Louis Vuitton/Moët Hennessy) e segunda fortuna de França. A fortuna de Xavier Niel está avaliada em 9 mil milhões de euros.

- Matthieu Pigasse: «L'autre était un banquier d'affaires à l'intelligence très vive. Étrange et fort jalousé, à l'évidence travaillé par des forces violemment antagonistes, il aimait diviser sur un monde en plein effondrement, citer des poètes, s'enflammer pour des samizdats révolutionnaires. Avec la même enérgie, il s'enthousiasmait pour des caudillos de la gauche radicale ou des groupes culte du rock, et passait néanmoins sa vie à se couler amoureusement dans les circuits d'argent, entre les tableaux de chasse vieillots des salles à manger de Lazard Frères, et la tour du siège new-yorkais de sa banque, d'où il dominait tristement Central Park.» (p. 17) -Matthieu Pigasse (48 anos) diplomado por Sciences Po e pela ENA, começou a sua carreira na política e na banca. É responsável pelas fusões/aquisições do Banco Lazard e director-geral delegado de Lazard em França. Passou por vários gabinetes ministeriais socialistas e é proprietário ou participante de numerosas empresas de jornais, de rádio e de televisão. É íntimo de toda a actual nomenclatura do Partido Socialista e organizou em 2011, com Pierre Bergé, o célebre concerto de homenagem a François Mitterrand na Praça da Bastilha, que contou com 70.000 pessoas. A  fortuna de Matthieu Pigasse é estimada em várias dezenas de milhões de euros.

Dos três elementos do Trio, o mais citado pela autora ao longo da obra é Xavier Niel, sempre designado como o Ogre. As outras personagens citadas à clé são Jean Daniel (Jean Joël), Claude Perdriel (Claude Rossignel), Laurent Joffrin (Laurent Môquet), Matthieu Croissandeau (Matthieu Lunedeau) e a própria revista "l'Obs", referida como "l'Obsolète". Marine Le Pen é referida como La Fille du Diable.

Tracemos rapidamente a história de "l'Obs", que não figura no livro de Aude Lancelin. Em 1950, foi criado um semanário com o título "L'Observateur politique, économique et littéraire", por Gilles Martinet, Roger Stéphane, Claude Bourdet e Hector de Galard, com a colaboração de Jean-Paul Sartre. A revista passou a chamar-se "l'Observateur aujourd'hui", em 1953 e "France Observateur", em 1954, com uma tiragem de mais de 100.000 exemplares. Nos princípios da década de 60, sofre prejuízos e vem a ser maioritariamente adquirida, em 1964, pelo riquíssimo industrial de louça sanitária e apaixonado pela imprensa, Claude Perdriel e pelo jornalista e escritor Jean Daniel, passando a designar-se "le Nouvel Observateur". A sua definição de publicação de esquerda não comunista fica oficialmente consagrada nos estatutos.

Na década de 70, a revista atinge a tiragem de 400.000 exemplares e torna-se a publicação francesa, com projecção internacional, de referência cultural e política da esquerda social-democrata. Com a eleição de François Mitterrand em 1981, a revista aproxima-se mais do Partido Socialista francês, orientação que perdurará até aos nossos dias. Essa proximidade determinará um decréscimo das vendas (a revista era lida por toda a elite francesa) e, em 1984, devido a dificuldades financeiras, Claude Perdriel aumenta a sua participação de capital e torna-se o accionista maioritário. Verifica-se então a primeira mudança do estilo da revista, o que não significou necessariamente uma transformação para pior.

Em 1995, le "Nouvel Observateur" torna-se a primeira revista de actualidade francesa, ficando à frente de "L'Express", que eu também comprava e continuei ainda a comprar durante mais uns anos.

Em 2008, Jean Daniel que assegurara a direcção da revista desde a sua aquisição em 1964, é substituído nessas funções por Denis Olivennes, sendo este substituído em 2011 por Laurent Joffrin, entre as suas idas e vindas entre "le Nouvel" e "Libération". Entretanto, com a prossecução de um desejo de modernidade, a revista vai perdendo as suas características e também os seus leitores, que não percebem a miopia intelectual das direcções e redacções que se sucedem.

Em fins de 2013, a seguir a um prejuízo de cerca de 10 milhões de euros, "le Nouvel Observateur" procura um comprador. Em 2014, o Trio, já proprietário de "Le Monde", adquire 65% do "Nouvel" por 13,4 milhões de euros. Em desacordo com os novos accionistas, Laurent Joffrin demite-se, sendo substituído na direcção por Matthieu Croissandeau. Em Outubro de 2014, "le Nouvel Observateur" passa a chamar-se "l'Obs", uma mudança de nome que se afigura de perfeita estupidez, como as progressivas e subsequentes transformações operadas pelo novo director, que tornam a revista quase ilegível. Como é óbvio, as vendas não param de diminuir.

Em Setembro de 2016, face a prejuízos de três milhões de euros, e com as vendas em queda livre, especialmente depois do despedimento de Aude Lancelin, no princípio deste ano, a direcção apresentou um plano de reestruturação, que passa pela redução de 40 jornalistas em 180.

Ao longo de meio século li esta revista com interesse. Ela correspondia àquilo que sobre cultura e política me interessava em França e no Mundo. E até hoje, que me recorde, só não li dois números que, por razões de greve em França, não foram distribuídos em Portugal. Mas as transformações operadas nos últimos anos mais não têm feito do que descaracterizá-la. Certamente na perspectiva de manter os leitores habituais e conquistar novos para substituir os que por uma razão ou outra se foram afastando. Todavia, esta tentativa de conquistar um público supostamente diferente tem sido prosseguida da forma mais estúpida que é possível conceber. E pelos resultados das vendas se pode avaliar que não só não tem obtido leitores de perfil distinto como tem alienado a pouco e pouco os seus fiéis leitores.

A verdade é que "l'Obs" é hoje um verdadeiro albergue espanhol que tudo acolhe. Depois dos domínios tradicionais da política e da cultura acolheu a economia, a seguir a moda. E na ânsia de servir a todos os senhores inclui já (para além da compreensível -mas alguma despropositada - publicidade), o imobiliário, os desportos, a hotelaria, os champagnes e vinhos, a gastronomia, e por aí fora. Endoideceram de vez!

Feito o historial, a traços muito largos, de "l'Obs", regressemos ao livro Le monde libre.

Esta inconsequente e progressiva modificação do perfil da revista é uma das críticas de Aude Lancelin no seu livro. Mas também a sua descaracterização ideológica. Sendo uma publicação de orientação social-democrata, a sua aproximação do Partido Socialista, considerando a viragem "neo-liberal" do Partido verificada desde Mitterrand, provocou também a complacência de "l'Obs" com as ideias e a prática da nova liderança "socialista", especialmente a partir da eleição do inenarrável François Hollande para a presidência da República. Essa transigência, Aude Lancelin não a perdoa, especialmente a Jean Daniel, que, assumindo-se sempre como o detentor dos princípios do projecto fundador, tem sacrificado esses valores (por convicção ou condescendência) no altar dos interesses do novo capitalismo especulativo global.

Mas, evidentemente, não é apenas a pessoa de Jean Daniel que é visada no livro. Apesar de "l'Obs" registar tão só um editorial com o seu protesto, que reproduzimos, e nenhuma reacção dos demais atingidos pela pena de Lancelin.

Um dos alvos principais é Bernard-Henri Lévy, personagem sinistra que se instalou, graças ao dinheiro e a cumplicidades várias, no panorama cultural francês, desde o "tempo de glória" dos Nouveaux Philosophes [Dans ce cloaque de la pensée appelé "nouvelle philosophie", il y avait toutefois autre chose encore que la maestria mafieuse à nulle autre pareille de ce personage pour aimanter les maîtres de "l'Obsolète" (p. 54)]. Lévy é uma figura abjecta e as suas intervenções na política, quando sai do seu sumptuoso riyadh de Marrakech, são uma tragédia para os povos. Foi assim na ex-Jugoslávia. E mais recentemente na Líbia, numa ânsia patológica de protagonismo. Foi ele que convenceu Hollande (e este convenceu os seus pares) a proceder à invasão da Líbia, originando a situação caótica em que hoje se encontra aquele país. Mesmo o escritor Pierre Assouline, também judeu como Lévy mas indignado com as suas posições, não hesitou em chamar-lhe "Lévy d'Arabie", em alusão ao célebre "Lawrence d'Arabie", o promotor da revolta árabe de 1916. E Lancelin chama-lhe, a propósito do seu livro sobre o assassinato do jornalista Daniel Pearl no Paquistão, o "Malraux d'Islamabad" (p. 126).

No decorrer de 200 páginas, Aude Lancelin escalpeliza as transigências da revista e a reverência face a personalidades eticamente discutíveis como Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut ou Pierre Nora e François Furet, comentários amplamente documentados pelos factos registados. Aliás, para um público razoavelmente informado essas denúncias não constituem propriamente novidade.

As razões que determinaram a queda em desgraça de Lancelin foram as suas entrevistas a personalidades menos do gosto do pensamento único de "l'Obs", pessoas de esquerda que não sacrificavam no ideário da presente "nova esquerda" francesa. Destaca-se a conversa com o filósofo Alain Badiou, contra o qual Phillippe Sollers publicara um libelo assassino, recheado de acusações extremamente graves. Pelas razões aduzidas, Badiou tornara-se o inimigo público número um. «Seuls les jeunes gens sont généralement sensibles sans restrictions à ses sortilèges intelectuels, un phénomène bien identifié depuis le IVe siècle avant J.-C., lorsque la démocratie athénienne, plus énergique que la nôtre, se crut dans l'obligation de condamner à mort un fameux corrupteur de la jeunesse.» (p. 69)

Também o inenarrável Manuel Valls, ex-primeiro-ministro e agora candidato presidencial, expoente um pouco ridículo do socialismo neo-liberal em França, é devidamente tratado no livro.

Não é possível referir aqui a maior parte das interessantíssimas revelações de Aude Lancelin, que os leitores do livro poderão apreciar. É a história das cumplicidades dos últimos anos que nos é revelada com abundância de pormenores. Em particular a tentativa da autora de fazer ouvir as vozes discordantes do pensamento dominante de "l'Obs", que acabou por determinar o seu despedimento. Além da circunstância de o seu companheiro, Frédéric Lordon, ser um dos animadores do movimento "La Nuit Debout", que ocupou durante semanas a Praça da República e assustou o governo francês. E do facto da cobertura dessa manifestação ter irritado os proprietários do jornal.

Resumindo, poderíamos dizer que a apropriação pelo grande capital das sociedades detentoras de jornais, com o objectivo de silenciá-los quando incómodos ou transformá-lo num instrumento destinado a veicular as opiniões que sirvam os seus interesses, representa o fim da liberdade de imprensa em França. E é lamentável constatar que muitos jornalistas se têm prestado a colaborar com os ogres da alta finança e a avalizar as suas pretensões, se não mesmo a incentivá-los na prossecução deste projecto destinado a colocar a informação ao serviço dos mais inconfessáveis desígnios.

Curiosa a reflexão de Aude Lancelin sobre a sua decisão de tornar-se jornalista: «La plupart des écrivains que je révérais portaient pourtant un regard terrible sur le journalisme, activité louche, à laquelle la prostitution ou l'usure semblaient de loin preéférables. "Encore un siècle de journalisme et la langue elle-même puera", écrivait Nietzsche, sans parler de Debord, pour qui les journalistes étaient ni plus ni moins que les intouchables de notre temps.» (p. 38)

Em 25 de Maio de 2016, mais de quarenta intelectuais publicaram em "Libération" uma carta aberta de protesto contra o despedimento de Aude Lancelin.


1 comentário:

António disse...

E que dizer da imprensa e demais media portugueses?