sexta-feira, 4 de junho de 2010

HOMOSSEXUAIS NO ESTADO NOVO


Foi publicado há dias o livro Homossexuais no Estado Novo, da autoria de São José Almeida. Tinha esta jornalista apresentado na revista "Pública" do jornal PÚBLICO, em 12 de Julho de 2009, um dossier com o título "Homossexuais - Perseguidos no Estado Novo", a que fiz referência no meu post do dia 13. Manifestei então a opinião de que me parecia exagerado falar de "perseguição", pelo menos enquanto a prática de relações homossexuais não fosse ostensiva, pois interessava ao regime manter as aparências, isto é, cobrir a nudez forte da verdade com o manto diáfano da fantasia. É claro que a lei punia a homossexualidade e que as pessoas de mais baixa condição social estavam mais expostas à repressão policial e penal do que os estratos de nível mais elevado. Embora, Salazar tivesse mantido sempre junto de si muitos homossexuais, mesmo no Governo, e sendo impossível admitir que não conhecesse as suas orientações sexuais.

Por isso, escrevi que seria desejável que o tema do dossier fosse aprofundado e publicado em livro, o que veio agora a acontecer. E devo confessar que o livro recém-editado constituiu uma agradável surpresa. Há sempre o perigo destas matérias resvalarem para alguma bisbilhotice ou privilegiarem o fait-divers. Não é o caso, a começar pelo notável prefácio da professora Teresa Pizarro Beleza, directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

Nesta obra, São José Almeida consegue traçar, pela primeira vez em Portugal, uma panorâmica da vida homossexual masculina e feminina durante o Estado Novo. Investigando documentação, recolhendo depoimentos, cruzando informações de alguns dos actores da cena gay e lésbica do tempo do anterior regime e ainda vivos (a maioria dos protagonistas mais evidentes já morreu), este livro será para muitos uma revelação e para alguns (happy few) a confirmação de um trabalho sério e empenhado de divulgação de assuntos que, ainda hoje, e mesmo em democracia, constituem matéria sensível, já que as mentalidades não evoluem com a rapidez dos progressos tecnológicos.

Cita o livro muitas "personalidades" e alguns "anónimos", quase todos mortos, pois que dos vivos são apenas referidos os que se dispuseram a falar com a autora e assumiram publicamente a sua orientação. Refere também locais, factos, documentos, quase sem inexactidões. Constitui, assim, um contributo valioso não só para a história da homossexualidade na época em questão mas igualmente para a história social de Portugal no período do Estado Novo. É claro que que em matéria de nomes dos "famosos" se registam muitas omissões, algumas pelo óbvio facto de ainda estarem vivos, outras por desconhecimento ou esquecimento da autora. Mas o que está releva já de um trabalho aturado de pesquisa e de organização do discurso. 

Apenas duas notas: quando, a páginas 180, se fala da peça Ecos, de Peter Shaffer, deveria estar escrito Equus. E entre os habituais frequentadores da Cervejaria Reimar e do Café Monte Carlo, considero injusto não estar citado o pintor Francisco Relógio, artista notável que morreu em 1997 e de quem hoje pouco se fala. 

Escreve São José Almeida na Introdução que "Este é um livro inacabado, um princípio de trabalho, um abrir de porta possível para dar início a um caminho que a sociedade portuguesa tem de trilhar, o de revisitar a sua história, o de se reencontrar consigo mesma. A história e as histórias da homossexualidade portuguesa fazem parte da história de Portugal."  

Por isso, este livro, tratando de um passado recente, é indispensável para a compreensão da sociedade portuguesa contemporânea.

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