segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

NORTE DE ÁFRICA: UMA ÉPOCA PRESTES A TERMINAR

O ataque terrorista contra uma igreja copta em Alexandria, na noite de fim de ano, e as violentas manifestações em Sidi Bouzid e noutras cidades da Tunísia, nos últimos dias, obrigam-nos a dirigir os nossos olhares para o outro lado do Mediterrâneo - aqui tão perto - e com quem a Europa Meridional estabeleceu e pretende alargar parcerias privilegiadas. Paira no ar um cheiro de fim dos tempos de que os políticos europeus não se deram ainda conta. Nem sei se as diplomacias têm nas gavetas planos para enfrentar as crises que se avizinham.

À excepção de Marrocos, governado pelo jovem Mohamed VI, os outros países da África do Norte são dirigidos por cidadãos septuagenários e octogenários. E Marrocos só possui um rei jovem porque seu pai, Hassan II, que teria hoje 81 anos, morreu subitamente em 1999. Caso contrário, a lista seria perfeita.


Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika, de 73 anos, é agora presidente da república, depois de ter exercido durante largos anos, no tempo de Boumedienne, as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros. Regressou, para ser eleito presidente em 1999, prometendo pôr fim à sangrenta guerra civil (religiosa) que custou à nação centenas de milhar de mortos e desaparecidos.


Na Tunísa, Zine El Abidine Ben Ali, de 73 anos, general que fora ministro do Interior, e primeiro-ministro por um mês, assumiu a presidência da república em 1987, através de um golpe de Estado que depôs o presidente Habib Bourguiba, considerado incapaz de continuar a exercer as suas funções por debilidade mental.


Na Líbia, Muammar Al-Qadhafi, de 68 anos, exerce o poder como "guia" da Revolução, desde 1969, data em que, através de um golpe de Estado, depôs o velho rei Idriss El Senussi I.


No Egipto, Muhammad Hosni Mubarak, de 82 anos, é presidente da república desde 1981, quando ascendeu à chefia do Estado em consequência do assassinato do presidente Sadat.

Assim, Bouteflika está no poder há 12 anos, Ben Ali há 23 anos, Qadhafi há 42 anos, Mubarak há 30 anos.

Destes países, aquele onde se registou algum progresso material e espiritual foi a Tunísia, hoje destino favorito anual de milhões de turistas. Mas o subdesenvolvimento de muitas regiões interiores, comparadas exactamente com as regiões favorecidas pelo boom turístico, tem agravado as desigualdades. As várias manifestações de oposição têm sido severamente reprimidas e silenciadas, embora hoje em dia os meios tecnológicos dificultem a ocultação dos acontecimentos. As confrontações de Sidi Bouzid são disso um exemplo.

Na Argélia, ex-colónia e depois província francesa, ainda hoje a contas com a sua história, a descolonização deixou marcas indeléveis que só o tempo, um largo tempo, permitirá apagar. A guerra civil "religiosa", que causou milhares de vítimas abriu cicatrizes ainda não saradas. A descolonização da Argélia foi talvez, para argelinos e franceses, para muitos pied-noir lá nascidos e para os harkis, que acreditaram na França, uma das mais dramáticas da História. Os tempos actuais são mais calmos mas não existe até o presente perfeita tranquilidade, mantendo-se a situação económica muito difícil.

A Líbia é um caso especial. Não constam manifestações contra Qadhafi, um líder promissor que se transformou numa caricatura de si mesmo. A polícia política está vigilante e omnipresente. Porque é um país rico, o nível de vida, para os padrões locais, é razoável.

País multissecular, o Egipto actual, herdeiro das mais brilhantes civilizações da História, sucessivamente cobiçado e conquistado por gregos, árabes, turcos, franceses e ingleses, julgou encontrar com Nasser a via para o socialismo; Sadat inverteu posições. Nasser morreu de repente (não se sabe bem como); Sadat foi assassinado. Mubarak equilibra-se há três décadas mas o seu reinado está prestes a terminar. O turismo (as visitas anuais contam-se por milhões) tem permitido a sobrevivência de alguns numa economia perfeitamente degradada.

Importa referir que estes países são regimes ditatoriais, não democráticos (no sentido tradicionalmente atribuído à palavra) e que dispõem de rigorosos aparelhos policiais. Em todos eles as desigualdades sociais bradam aos céus e, apesar das tentativas desesperadas dos seus dirigentes, desde há alguns anos que estão infiltrados pelo extremismo islâmico, que aproveita  a corrupção dos dirigentes para fomentar a agitação pública e o ódio ao Ocidente.

Muito se tem escrito sobre o Islão e o Mundo Árabe, especialmente desde que Samuel Huntington publicou o célebre The Clash of Civilisations. Aliás, depois da edição do seu livro, tudo se tem agravado no mundo, o que permite formular a pergunta: foi Huntington um profeta da desgraça ou um incentivador do caos? E, em caso afirmativo, com que intenções, qual o móbil das suas teorias? O futuro o dirá, talvez.

Restringindo este texto ao Norte de África, o panorama que se oferece é sobejamente complexo para simplificações. Estão os cinco países do Maghreb e do Mashreq preparados para um sistema democrático "à ocidental"? A reposta é não. Aliás, não só a democracia representativa, como se entende no Ocidente, não se exporta (como pretendia Bush e o seu gang, não sei se por ingenuidade, estupidez ou má-fé?),  como ela, no próprio Ocidente, começa a transformar-se numa reprodução grotesca de si mesma. A imposição de um sistema soi-disant democrático a estes países significaria transformá-los num novo Iraque. Além do que, na conjuntura presente (e abstraindo do factor "invasão" que destruiu o Iraque), os partidos religiosos (islâmicos extremistas) facilmente alcançariam o poder nos países em apreço, instaurando novos regimes ditatoriais sob a capa de repúblicas islâmicas. Por isso, o mundo ocidental tem preferido apoiar os regimes ditatoriais existentes como um mal menor, ou até como um bem maior, já que todas as oligarquias ganham.

Então, e perante o cenário que se prefigura de uma época prestes a terminar, onde os eventuais sucessores dos actuais próceres não passarão de figuras efémeras, qual o futuro que se adivinha para o Norte de África? É um dado adquirido que a situação presente é insustentável por muito mais tempo. A própria idade dos condottieri (quiçá mais velhos do que é indicado, já que nunca se sabe se as datas de nascimento divulgadas oficialmente são correctas) confirma esta asserção. À agitação social junta-se agora a agitação religiosa (talvez sejam uma e a mesma coisa) e, como diria o Comendador do Don Giovanni, "Ah tempo più non v'è".

QUE FAZER? 

O tema constituiria matéria para uma centena de posts.

Deixo-o para reflexão dos leitores.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem analisado. Só é pena que não aprofunde a matéria, pois tanto haveria para dizer. Mas volte ao assunto

UN VOYAGEUR SANS PLACE disse...

Já tive um namorado que era tunisino. Chamava-se Antoine Akbar Bannanour, era da cidade de Bizerte, e tinha duas esposas: Yasmina e Fatima, além de muitos filhos, segundo ele. Eu estava com a idade de 21 anos, e ele tinha já seus 37. Era um charlatão, um enganador, um aproveitador. Porém, por ele me apaixonei cegamente e vivemos juntos por um ano e 16 dias. Isso foi em São Paulo, onde morei entre 2006 e 2009. Hoje, levo ainda na lembrança seus belos olhos castanhos, os cabelos negros e a barba extremamente bem feita, as mãos brancas como a do profeta Mussa (Moisés), que os muçulmanos dizem ter tido as mãos brancas... não sei se o amo ou não, mas algo da sociedade local (a população do Magrebe) aprendi com ele, pois sempre o questionava e fazia questão de ouvir as histórias que ele me dizia.

Nos falávamos em francês, já que nem seu português era bom nem tampouco o meu árabe clássico era satisfatório na época (ele alegava não conhecer o árabe, já que sua etnia era berbere).

Naqueles países (a Tunísia incluída), as pessoas tradicionalmente são avessas à política, limitam-se a observar o desenrolar dos fatos sem interferir de perto no rumo que tomam os acontecimentos.

Não sei quanto à Argélia, porém na Tunísia não acredito que haja espaço para uma revolução sangrenta após a morte de Ben Ali.

Tomara Deus que não aconteça nada. Se acontecer, contudo, assim o quis o destino.