Don Carlo (Finale): Teatro Alla Scala, Milão, 1992 - Direcção musical de Riccardo Muti - Encenação de Franco Zeffirelli. Com Luciano Pavarotti, Samuel Ramey, Daniela Dessì, Paolo Coni, Luciana d'Intino e Alexander Anisimov
O Teatro Nacional de São Carlos inaugurou a presente temporada com a ópera Don Carlo, de Verdi, apresentada em 7 récitas, entre 8 e 23 de Outubro.
É Don Carlo uma das principais óperas de Verdi, se não de todo o repertório operático. Que exige não só uma boa prestação dos cantores e da orquestra como uma encenação que traduza (é para isso que servem as encenações) o plot que decorre em cena. Especialmente quando se trata de um tema cujo peso histórico é determinante para a compreensão do drama. Infelizmente, nada disto aconteceu em São Carlos, e quando comparo o actual espectáculo com aquele a que assisti o ano passado em Munique, e que referi neste blogue, a diferença é abissal.
Começo pelo aspecto vocal. A cantora portuguesa Elisabete Matos, com notável curriculum internacional mas que raramente canta em Portugal, foi uma Elisabetta de Valois convincente, embora a albanesa Enkelejda Shkosa, em Eboli, não lhe tenha ficado atrás. Nos papéis masculinos, o jovem chileno Giancarlo Monsalve, em Don Carlo, com uma boa presença física e uma voz potente, não conseguiu imprimir, nem ao desempenho cénico do protagonista nem à parte vocal o mínimo que seria exigível. O italiano Enrico Iori, também com boa voz, e relativamente certo, carece por completo do perfil para interpretar Filippo II. O grego Dimitri Platanias encarnou Rodrigo de Posa, cantando regularmente mas sem compreender a personagem. A pior interpretação foi a do arménio Ayk Martirossian que, em Grande Inquisidor, nem vocal nem cenicamente esteve à altura do papel.
Uma palavra para a Orquestra Sinfónica Portuguesa e para o Coro do Teatro Nacional de São Carlos. Pode dizer-se que o seu desempenho esteve dentro do aceitável, dadas as limitações destes dois grupos, o mesmo não se podendo afirmar quanto à direcção musical do maestro - e director artístico do Teatro de São Carlos - Martin André, cuja condução foi arrastada e mesmo por vezes desfasada dos cantores.
O ultimo comentário é para a encenação de Stephen Langridge. Se me tivessem contado o que ocorreu no palco do São Carlos, não teria acreditado. Langridge tem algum curriculum internacional mas dele só conhecia, em dvd, a gravação de um Otello no Festival de Salzburg, em 2008. Com estultas pretensões "modernistas" mas não particularmente chocante.
Deste Don Carlo direi que a encenação (e obviamente cenários e figurinos) são inenarráveis. Langridge, com presumíveis veleidades de avant-garde, destruiu por completo o efeito que esta obra tem sobre o espectador. Certas óperas são susceptíveis de aguentar uma encenação localizada no tempo presente, desde que o espectáculo tenha um propósito e uma coerência e não seja um amontoado de soluções gratuitas, destinadas a evidenciar a suposta capacidade do encenador para um aggiornamento do tema. Assim aconteceu em 1976, com Patrice Chéreau, quando montou em Bayreuth (com algum escândalo, na altura) a "Tetralogia" de Wagner. Actualizou mas, como homem de cultura e de teatro, sabia o que estava a fazer.
A encenação concebida por Langridge para este Don Carlo (se é que concebeu alguma encenação) é simplesmente miserável. Está ao nível de um espectáculo de circo, de mau circo. Ignorando a dimensão histórica do poema dramático de Schiller (ainda que este não respeite integralmente a verdade dos factos) e a correspondente tradução musical que Verdi dele fez, esta abominável encenação esquece que a acção decorre na corte de Filipe II de Espanha e que toda a obra está impregnada do ambiente insubstituível da Casa de Áustria e da sua etiqueta, do peso tremendo da Igreja Católica (e da Santa Inquisição) e dos sinistros compromissos entre o Trono e o Altar. Para além das relações pessoais não explicitadas no texto mas que nele figuram implícitas (e na música também) e que Langridge certamente nem percebeu.
Assisti durante 40 anos, à excepção de umas três ou quatro, a todas as óperas cantadas no Teatro de São Carlos, só nos últimos anos me tendo afastado de espectador habitual. Tenho assistido igualmente a muitos espectáculos de ópera no estrangeiro, até em países de fracos recursos e com poucas tradições.
Pior, em termos de encenação, nunca vi.
Se Verdi, por milagre, tivesse ressuscitado e assistisse a este espectáculo, morreria novamente antes do pano cair sobre o último acto.
5 comentários:
Mil apoiados, também fui a essa ópera. A encenação é uma merda e o encenador não deveria ser autorizado a fazer mais nenhum espectáculo
Pela descrição, um encenador como Langridge, que destrói uma obra-prima, é um chulo da cultura. Quem o contratou no S. Carlos para vir cá fazer essa merda?
Já assisti a vários "Don Carlos", mas nenhum como este, com um guarda-roupa da rainha de Espanha entre o trajo de gala e a saia e casaco e Filipe II ora de farda tipo GNR ou de fato completo. E com um pajem com uma farda de aluno do Colégio Militar, se não erro, ou talvez de antigo condutor da Carris. E com o próprio Don Carlos de calças justas e camisa branca desapertada com o peito todo à mostra, estilo de chulo a engatar no Bairro Alto. E o Grande Inquisidor numa cadeira de rodas evoca um Fausto cantado em 2009 também no São Carlos, que se passava num lar de idosos,e em que o protagonista também se deslocava numa cadeira de rodas.
Parece que é o Teatro de São Carlos que já está numa cadeira de rodas.
Eu assisti e gostei dos cantores e do coro. Da orquestra nem tanto. Da encenação não me pareceu tão trágica como pretendem. Se acham que isto é o pior é porque não assistiram ao último "Morcego".
Concordo que o guarda roupa esteve mal, mas Rodrigo foi fantástico e Eboli também, tal como Filipe II. É claro que cantar uma ária daquelas a vestir as calças não é muito apropriado. O inquisidor foi o que mais me desiludiu.
A sombra de Carlos V esteve sempre presente, tal como Verdi o entendeu.
Apesar de tudo foi um grande espectáculo, como há muito se não via em S. Carlos.
Quanto ao resto, percebe-se a crítica por não ter sido tão evidenciado o anticlericalismo de Verdi. Pena é que a libertação da Flandres, que interessou à reforma protestante, com feitos tão sinistros na altura como os da inquisição, e ao nascimento do capitalismo, tenha ficado esquecida quer por Schiller, quer por Verdi (romantismos nacionalistas com os resultados que se viram). No entanto o auto de fé deu uma imagem que impressiona certamente qualquer público. E se a imposição do inquisidor ao povo que protesta não resultou, a culpa foi mais do actor que do encenador.
PARA XICO:
Não posso estar, obviamente, de acordo consigo. Não sei qual a sua "experiência" de ópera, mas este "Don Carlo" foi dos piores espectáculos que vi. Terei assistido na minha vida a cerca de 1.000 espectáculos de ópera ao vivo, em Portugal e no estrangeiro, fora gravações áudio e vídeo.
Esta produção é simplesmente lamentável e, como escrevi, não deixa entender praticamente nada, salvo para os conhecedores do argumento, do que se desenvolve no palco (que supõe uma encenação que deixe entrever o que não está evidenciado na ópera, para mais sem o 1º acto, que, de resto, não é geralmente apresentado).
Nem todas as óperas se prestam a "modernizações" e as que se prestam devem ser bem concebidas, como o caso do "Anel", de Wagner, que referi.
Ainda vi ontem um dvd com o "Don Carlo" do Covent Garden de 2008, com uma encenação de Hytner, com cenário moderno mas figurinos da época e perfeitamente coerente no seu todo.
Os "Don Carlo" que vi no passado em São Carlos foram bem melhores do que este, para não falar da produção a que assisti, deslumbrado, em Munique, o ano passado.
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