terça-feira, 5 de outubro de 2010

O CENTENÁRIO


Ocorre hoje o primeiro centenário da proclamação da República em Portugal.

Ao longo de cem anos, através de diversas vicissitudes, o regime conheceu três variantes: a primeira, de 1910 (constitucionalmente, de 1911) a 1926, caracterizada por grande instabilidade política, apesar da introdução de algumas medidas fundamentais no campo do direito civil, da separação da Igreja relativamente ao Estado e de uma real preocupação com a educação; a segunda (depois do golpe militar de 1926 e após um período de ditadura), de 1933 a 1974, de carácter autoritário e corporativista, que ficou conhecida como Estado Novo, e que teve, entre outras preocupações, o saneamento financeiro do país e o restabelecimento da tranquilidade pública; a terceira (depois do golpe militar de 1974 e após um período de governo para-militar), de 1976 até o presente.

Foi a Primeira República interrompida em 1917 pelo golpe militar de Sidónio Paes, homem superiormente inteligente que, primeiro em ditadura, depois, após eleições gerais de 1918, em democracia, governou o país, no período que ficou conhecido por República Nova. Sidónio, que viria a morrer assassinado em 1918, arcou com as consequências desastrosas da participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial. Durante o seu efémero consulado, criou a "sopa dos pobres" para os mais necessitados, e que eram muitos, iniciativa cuja fama ainda hoje perdura, e promoveu o apaziguamento das relações com a Igreja Católica. A esperança com que o país, farto de revoluções e de penúria, encarou a sua governação, levou Fernando Pessoa a escrever o famoso poema À Memória do Presidente-Rei Sidónio Paes, considerando-o como o "Desejado".

Terminou a Primeira República com o golpe militar de 1926, encabeçado por Gomes da Costa, e que trouxe ao poder outro homem superiormente inteligente, Salazar, que ao longo de cerca de 40 anos dirigiu os destinos do país. Possuidor de grandes virtudes e também defeitos, como todos os grandes homens, senhor de grande ambição política, não soube, não pôde ou não quis tomar algumas medidas indispensáveis à resolução dos problemas decorrentes de novos tempos e ideias, designadamente a questão colonial. Não consta que fosse corrupto, não era aldrabão e, conforme é do conhecimento geral, morreu pobre. O seu sucessor, Caetano, grande administrativista mas mau político, enredado em questões menores e sem golpe de génio, não resistiu aos ventos da história.

Caiu a Segunda República com o golpe militar de 1974, não precisamente na rua mas nas mãos de Spínola, que não teve o poder suficiente para impor o programa que as Forças Armadas se haviam proposto. Renunciou à presidência e o país atravessou um período turbulento até que, em 1976, foi promulgada a Constituição ainda hoje vigente. Cabe em larga medida a Ramalho Eanes, primeiro presidente eleito desta Terceira República, a estabilização da vida política nacional. O segundo presidente, Mário Soares, preocupou-se especialmente com a integração de Portugal na Comunidade (e depois União) Europeia, para não ficarmos de fora da "Europa" e para evitar a tentação de pronunciamentos militares. Dos outros sucessores, não reza especialmente a história.

Vive hoje o país (e também, em geral, toda a Europa, para já não falar do resto do mundo) tempos difíceis.  Assiste-se a uma profunda decadência ética, a uma corrupção devidamente instalada, à ausência dos mais elementares valores cívicos, a começar pela noção de Honra, palavra há muito banida dos vocabulários. A situação financeira degradou-se a extremos que lembram os tempos finais da Primeira República (delapidados que foram os dinheiros públicos), a vida económica é uma ficção (praticamente extintas a agricultura e as pescas e reduzida a indústria a proporções ínfimas), o nível educacional é cada vez mais baixo (também por causa do famigerado processo de Bolonha), a justiça tornou-se (pela sua morosidade, opacidade e complexidade) pouca virtuosa,  a cultura (ressalvadas as honrosas excepções) uma fantasia para gáudio de poucos e sustento de alguns.

Este quadro verdadeiramente negro não é, todavia, exclusivo de Portugal. As novas regras do ultra-liberalismo capitalista, que alastraram a todo o planeta, tornaram os cidadãos em meros consumidores. Mais do que o essencial compra-se o supérfluo, nesta sociedade globalizada de consumo que se ergueu sobre as cinzas do mundo bipolar da segunda metade do século passado. A funesta lógica de produzir e consumir incessantemente, e que terá sem dúvida um termo, pois não poderá progredir ad infinitum, gerou uma sinistra forma de vida, em que, ausentes os valores espirituais, os bens materiais se tornaram o único desígnio dos homens. Tudo (ou quase) tem um preço e o dinheiro é o novo deus deste recente monoteísmo de mercado. Aqueles que tudo lhe sacrificam, esquecem-se de que não o levarão consigo para a cova. 

A sociedade do futuro, a menos que se registe uma improvável inversão dos conceitos dominantes, terminará numa tragédia.

Esperam-nos os piores dias!

1 comentário:

Marquis disse...

Não posso deixar de concordar com tudo, absolutamente com tudo, o que aqui fica dito.
Tempos desgraçados aqueles em que vivemos, em que a dita austeridade é apenas para o povinho e não toca na gordura do Estado nem nos interesses oligárquicos. Os erros cometidos e as oportunidades perdidas conduziram-nos a este beco sem saída
Bem assim, no que toca Educação e a outras matérias tais como, os valores de cidadania, que se tornou numa palavra oca e, de tantas vezes repetida, sem qualquer sentido.
Vem agora o PM e outros afirmarem que as medidas hora tomadas foram um acto de coragem!!!Mas que lata monumental, não tiveram foi outro remédio.
Esta cambada de vigaristas sem escrúpulos e sem qualquer resquício de vergonha merece apenas e só o pelotão de fuzilamento por traição à Pátria.