quinta-feira, 21 de outubro de 2010

LYAUTEY E MARROCOS


Em post publicado anteontem, no seu blogue "La république des livres", http://passouline.blog.lemonde.fr/, refere-se Pierre Assouline à figura do Marechal Lyautey,  a propósito do próximo centenário do estabelecimento do protectorado francês em Marrocos (1912). Considera o escritor e jornalista que a data é particularmente embaraçosa para os marroquinos, já que Lyautey, embora representante de um poder colonial, foi uma figura de extraordinária importância no desenvolvimento do país.


Primeiro Residente-Geral da França em Marrocos (1912-1925), Louis Hubert Gonzalve Lyautey (17 Novembro 1854 - 27 Julho 1934)  conciliou a sua acção de "pacificador"  com um profundo respeito pelas tradições e costumes do país, através da legislação que fez publicar. Deve-se-lhe o desenvolvimento do urbanismo moderno na periferia das medinas, a interdição aos "infiéis" da entrada nas mesquitas - medida certamente discutível, e hoje extendida à Argélia e à Tunísia, já que o islão não proíbe aos não-muçulmanos a entrada nos seus templos (podem visitar-se as mesquitas da Líbia, do Egipto, da Síria, do Líbano, da Turquia, etc.) - e a contribuição para o apaziguamento das tensões existentes no território.  Monárquico convicto (embora representante de uma república) num país monárquico, católico fervoroso (embora representante de uma França laica) num país religioso, sempre invocou Lyautey estas duas qualidades como causa do seu êxito na difícil missão que desempenhou. Estávamos no tempo em que o marechal podia exortar a França a tornar-se "uma grande potência muçulmana", sem que isso surpreendesse ou chocasse. Existem, porém, outras razões, que Assouline omite, voluntariamente que não por desconhecimento, e a que importa aludir. Falaremos delas adiante.


Numa obra em três volumes (cerca de 1.000 páginas), o historiador francês Daniel Rivet percorre o tempo do protectorado francês em Marrocos e a vida de Lyautey, já que ambos são inseparáveis. Paralelamente à aplicação de medidas respeitantes ao progresso material do país, preocupou-se o Residente-Geral com a educação dos marroquinos, e o liceu francês de Casablanca mantém ainda hoje, meio século após a independência (1956) a designação de Lycée Lyautey, continuando o seu busto a ornamentar o recinto. Diga-se que deste liceu saíram algumas das mais ilustres figuras da vida marroquina e também das elites francesas, como, por exemplo, o actual ministro da Emigração do governo Sarkozy, Éric Besson.

A vida militar de Hubert Lyautey decorreu quase exclusivamente nas colónias, primeiro na Argélia, depois na Indochina, onde serviu sob as ordens do futuro marechal Joseph Gallieni, a seguir em Madagáscar e finalmente em Marrocos. Detentor de numerosas condecorações, Lyautey foi promovido a marechal em 1921. Era também membro da Academia Francesa, eleito em 1912, foi ministro da Guerra em 1916/17, durante a Primeira Guerra Mundial, comissário-geral da Exposição Colonial Internacional de 1931, em Paris e presidente de honra dos escuteiros de França.



A chave do sucesso de Lyautey reside, entre outras razões, na sua profunda atracção pelos marroquinos. Num livro profundamente documentado, Lyautey-Charlus, Christian Gury refere-se à homossexualidade do marechal e não hesita em afirmar que Lyautey foi mesmo o modelo que serviu a Marcel Proust para compor a personagem do Barão de Charlus, o célebre homossexual da não menos célebre obra À la Recherche du Temps Perdu.


Georges Clemenceau, que foi primeiro-ministro francês à época, afirmaria ironicamente a propósito de Lyautey: «Voilà un homme admirable, courageux, qui a toujours eu des couilles au cul... même quand ce n'étaient pas les siennes!».  Dispenso-me de traduzir.

Poderia aliás dizer-se, a propósito do marechal, que ele foi - utilizando uma expressão de Frédéric Mitterrand, no seu livro La Mauvaise vie - um precursor daquilo que o actual ministro francês da Cultura classificou de "tentation arabe". Quantos franceses, e não franceses, escritores e artistas, seguiram as suas pisadas no norte de África, na Argélia mas especialmente em Marrocos e na Tunísia. Para apenas mencionar alguns citaria Gide, Genet, Barthes, Foucault, Paul Bowles, Tennessee Williams, Montherlant, Peyrefitte, William Burroughs, Pasolini, Visconti, Gore Vidal, o nosso Teixeira Gomes e mais não escrevo.



No seu livro Auprès de Lyautey, o diplomata e académico Wladimir d'Ormesson (tio do académico e escritor Jean d'Ormesson, ainda vivo) descreve a sua relação de amizade com o marechal, que nutriu por ele uma ardente paixão quando aquele foi, durante o serviço militar, seu oficial às ordens.

Também o jovem Maurice Rostand (filho do dramaturgo Edmond Rostand, autor de Cyrano de Bergerac) foi objecto das atenções de Lyautey, vindo a consignar as solicitações do marechal num livro, dedicado à vida literária, artística e sexual do seu tempo, Confession d'un Demi-Siécle.


Não é possível resumir no espaço de um post a multifacetada carreira do marechal Lyautey nem a influência que a homossexualidade desempenhou na sua conduta, por vezes bizarra (como fazer-se acompanhar de um piano através do deserto e obrigar os seus jovens ajudantes que sabiam música a tocar dentro de tendas até de madrugada) mas sempre orientada pelo sentido do dever. A sedução que lhe despertaram as culturas "exóticas" acompanhou-o até ao fim da vida, como aconteceu a outros seus compatriotas, tal o académico Pierre Loti que, retirado da Marinha e da sua amada Turquia, acabou por mandar construir uma mesquita "doméstica" na casa para onde se retirou nos últimos anos de vida. No caso de Lyautey, já a Indochina, aonde esteve no princípio da carreira, lhe despertara particular atenção, como despertaria mais tarde a outro oficial, o marechal De Lattre de Tassigny, herói da França, que aí foi alto-comissário e comandante em chefe das forças francesas em 1950, e que conseguiu formar um exército nacional vietnamita e bater por três vezes o general Giap. Afinidades electivas dos marechais de França, embora nada conste de concreto sobre o marechal Philippe Pétain, ainda que se trate de uma matéria acerca da qual nunca existem certezas absolutas.

Hubert Lyautey foi sepultado na Igreja des Cordeliers, de Nancy, sendo mais tarde inumado em Rabat e repousando o seu corpo, desde 1961,  no Hotel des Invalides, em Paris, aonde também se encontra o túmulo de Napoleão Bonaparte.

1 comentário:

Anónimo disse...

O Marechal Lyautey que era um homossexual bem conhecido em França e em Marrocos, era igualmente um militar da mais alta craveira e um administrador de reconhecido mérito. Respeitou sempre a soberania nominal do sultão e as tradições do país, enquanto Residente-Geral. Estou convencido que só o amor, no mais amplo sentido da palavra, que nutriu pelos marroquinos, lhe possibilitou a realização de uma missão que ainda hoje é reconhecida em todo o Marrocos. Talvez os fundamentalistas a queiram apagar mas será difícil e o integrismo islâmico também passará de moda.