sábado, 6 de novembro de 2010

O ÓDIO À DEMOCRACIA


Nestes tempos de discussão sobre as virtudes da democracia é útil reler o livro que o filósofo Jacques Rancière, professor emérito da Universidade de Paris, publicou há cinco anos.

Diz Rancière que o «ódio à democracia não é uma novidade, é tão velho quanto ela, pela simples razão de que a própria palavra é uma expressão de ódio. Antes de tudo, foi um insulto inventado na Grécia antiga por aqueles que viam a ruína de toda a ordem legítima no inominável governo da multidão. E continuou um sinónimo de abominação para os que pensavam que o poder pertencia legitimamente aos que a ele estavam destinados pelo nascimento ou eram chamados pelas suas competências. E ainda o é hoje pelos que fazem da lei divina revelada o único fundamento legítimo da organização das comunidades humanas.»

Acrescenta o filósofo que o novo ódio à democracia não decorre dos modelos referidos já que os seus arautos habitam todos em países que se declaram não apenas Estados democráticos mas democracias "tout court". Não lhes interessa a mecânica das instituições que apaixonava os contemporãneos de Montesquieu, Madison ou Tocqueville. «A democracia para eles não é uma forma de governo corrompida, é uma crise de civilização que afecta a sociedade e o Estado através dela.» ... «Fomos habituados a ouvir que a democracia era o pior dos governos à excepção de todos os outros. Mas o novo sentimento antidemocrático dá da fórmula uma versão mais perturbadora. O governo democrático é mau quando se deixa corromper pela sociedade democrática que quer que todos sejam iguais  e todas as diferenças respeitadas.»...«O novo ódio á democracia pode então resumir-se numa simples tese: há apenas uma boa democracia, a que reprime a catástrofe da civilização democrática.»

Ao longo de 100 páginas, Jacques Rancière desenvolve a sua tese, com a erudição que o caracteriza. Como não é possível sintetizar aqui o seu pensamento, concluiremos com mais uma pequena transcrição: «A democracia, diz-nos Platão no Livro VIII (562d-563d) da República, é um regime político que não o é. Não tem uma constituição por que as tem todas. É um bazar de constituições, um hábito de arlequim como gostam os homens para os quais o consumo dos prazeres e dos direitos é o grande negócio. Mas ela não é apenas o reino dos indivíduos fazendo tudo á sua maneira. É propriamente a inversão de todas as relações que estruturam a sociedade humana: os governantes têm o ar de governados e os governados de governantes; as mulheres são iguais aos homens; o pai habitua-se a tratar o filho como igual; o meteco e o estrangeiro tornam-se iguais ao cidadão; o professor receia e lisonjeia os alunos que, por sua vez, zombam dele; os jovens igualam-se aos velhos e os velhos imitam os jovens; os próprios animais são livres e os cavalos e os burros, conscientes da sua liberdade e da sua dignidade, atropelam na rua os que não lhes cedem a passagem.»

Com este livro provocador, Rancière não pretende extinguir a democracia mas fazer-nos reflectir sobre o estado da sociedade contemporânea. Vale a pena lê-lo.

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