quinta-feira, 9 de julho de 2009

O GUARDADOR DE PAPÉIS

Com organização de um pessoano devotado e especializado, o colombiano Jerónimo Pizarro, foram agora publicados em volume os textos (reelaborados) de oito comunicações proferidas no ciclo de conferências «O Guardador de Papéis», no âmbito das celebrações dos 120 anos do nascimento de Fernando Pessoa (1888-2008) que tiveram lugar na Casa Fernando Pessoa.

Revestindo todas as intervenções muito valia e oportunidade, julgo, contudo, dever salientar-se as comunicações relativas à biblioteca de Pessoa e ao paralelo entre as bibliotecas de Fernando Pessoa e de Friedrich Nietzsche. O conteúdo de uma biblioteca suscita sempre a maior curiosidade, e quando se trata de figuras como as referidas o interesse é redobrado.

A propósito de Nietzsche, refere Carla Gago no seu texto como a irmã do escritor manipulou alguns dos seus escritos e como o livro Wille zur Macht (A Vontade de Poder) não é uma criação original mas antes uma invenção de Elisabeth Förster-Nietzsche, composto a partir de quatrocentas notas e apontamentos do irmão, tendo o próprio título sido extraído de um comentário de Nietzsche à margem de uma página da obra Über die scheinbaren und die wirklichen Ursachen des Geschehens in der Welt ( Sobre as causas aparentes e reais dos acontecimentos mundiais), de Maximilian Drossbach. Também a famosa e polémica expressão Übermensch (Super-homem), que foi objecto de utilizações políticas posteriores seria mais correctamente traduzida de forma literal, segundo a autora da comunicação, por "Sobre-homem". Acrescente-se que a obra do filósofo, de quem Hitler era grande admirador, esteve proibida nas duas Alemanhas do pós-Guerra até à década de 80 e, nas poucas bibliotecas que dispunham de obras suas, era necessária a apresentação de uma autorização especial.

Assim, o estudo de Nietzsche desenvolveu-se mais no estrangeiro do que na sua pátria, onde só nos últimos anos a sua obra começou a ser sistematicamente divulgada. A maior parte dos seus livros encontra-se na Biblioteca Herzogin Anna Amalia, tal como os livros da biblioteca de Pessoa, mas só parte, se encontram na Casa Fernando Pessoa.

Apesar de uma certa manipulação do pensamento original do irmão, Elisabeth Förster-Nietzsche desenvolveu todos os esforços para que a sua obra não caísse no esquecimento, promovendo nomeadamente a criação do Nietzsche-Archiv, em Weimar, em 1896. Depois da morte do marido, o militante anti-semita Bernhard Förster, que se suicidou na sequência do fiasco do seu projecto ariano da «Nova Germania» no Paraguay (e não no Panamá, como é referido neste livro), Elisabeth reuniu todos os manuscritos e livros de Friedrich na casa da família, em Naumburg.

Embora tivessem muitas leituras comuns, não existe qualquer testemunho de Nietzsche na biblioteca de Pessoa, apesar do ascendente daquele na poética pessoana. Outro tanto não se dirá de Schopenhauer, que ocupava um lugar primordial na obra de Nietzsche e também na de Pessoa, mas do qual este só possuía, em tradução francesa, o Essai sur le Libre Arbitre.

2 comentários:

Anónimo disse...

É curioso como o regime nazi "faute de mieux" aproveitou as parentas de grandes figuras culturais para as manipular e delas se servir com a perícia propagandística nunca desmentida.E enquanto o carácter bárbaro do regime mais se revelava,conduzindo ao exílio o que de mais relevante culturalmente havia na Alemanha (eu sei, ficaram algumas excepções à regra como Furtwängler ou Heisenberg) e não só judeus,como a familia Mann,foram buscar as irmãs ou as noras para dar uma ajuda. Ao menos a Winnifred Wagner,embora recebesse o Ogre com chás e bolinhos e o deixasse brincar com as criancinhas da família,não distorceu nem manipulou a obra do sogro,e até serviu para um dos melhores filmes-entrevistas,o do Syberberg. Nunca deve ter recordado ao Mefisto que Wagner escolheu para dirigir a estreia do Parsifal um seu amigo de longa data,Hermann Levi,judeu e filho de rabino,o que mostra os limites,pelo menos no plano pessoal,do seu anti-semitismo. O caso da Förster,aqui tratado,é obviamente mais perverso,pois ficou com os manuscritos do mano à disposição,e tratou de os manipular sem vergonha para servir os interesses dos Átilas no poder.Não só não consta que Nietzsche fosse contaminado pelo virus anti-semita,como até no "Contra Wagner",ataca o compositor pelos seus escritos(poucos,mas alguns)nessa linha. As referidas manipulações terão justificado a censura à difusão dos textos "arranjados" do filósofo de Sils-Maria,de que não tinha conhecimento,mas aguardando a revisão e restituição dos originais. Duas observações finais: 1)Valendo o que vale,como especulação,não creio que, como homem civilizado que era Nietzsche, pudesse apoiar o regime filisteu(como ele diria) dos coveiros da Europa.2)Embora não seja um pessoano institucionalizado,não vejo relações ou influências nitzscheanas na obra do Poeta,muito influenciado pelos anglo-saxónicos,e talvez um pouco pelo pessimismo Schopenhaueriano.Mas Nietzsche? Pode explicar melhor?

cfdill disse...

Embora haja inúmeros pontos de contacto entre Pessoa e Nietzsche (nao esquecer que, no tempo de Pessoa, a figura de Nietzsche era muitíssimo forte), creio que o artigo compara essencialmente a história da biblioteca pessoal dos dois autores, focando mais a de Nietzsche, que devido às vississitudes relacionadas com a história da Alemanha na 1a metade do século XX, sem dúvida que foi mais sacrificada que a do Pessoa.