Completam-se hoje 20 anos sobre a morte (16 de Julho de 1989, em Anif, localidade a sul de Salzburg) de Herbert von Karajan, um dos mais notáveis maestros do século XX, que dirigiu a Orquestra Filarmónica de Berlim durante trinta e cinco anos.
Nasceu Karajan em Salzburg, em 5 de Abril de 1908, estudou piano no Mozarteum de Salzburg e, dado o seu evidente talento, foi encorajado pelos professores a seguir a carreira de director de orquestra. Estreou-se em 1929, no Festspielhaus de Salzburg com a Salome, de Strauss, dirigiu em Ulm e fez a sua estreia no Festival de Salzburg em 1933. No ano seguinte, dirigiu pela primeira vez a Wiener Philharmoniker e de 1934 a 1941 foi director da Ópera de Aachen. Em 1935 iniciou uma brilhante carreira internacional, que o levaria às principais salas de ópera e de concerto de todo o mundo e que só terminaria com a sua morte. Regeu pela primeira vez a Berliner Philharmoniker em 1937, da qual viria a ser nomeado director musical vitalício em 1955 (o quarto), sucedendo a Wilhelm Furtwängler, depois de Hans von Bülow e Arthur Nikisch. Por morte de Karajan, foi escolhido para dirigir a Orquestra o maestro Claudio Abbado, que renunciou por motivos de saúde, sendo substituído por Simon Rattle, que é o actual director.
Em 1939, Karajan dirigiu Die Meistersinger em Bayreuth, mas devido ao seu hábito de reger de cor, sem partitura, teve um pequeno lapso que obrigou a interromper a ópera, o que, segundo Winifred Wagner, motivou o desagrado de Adolf Hitler, que assistia ao espectáculo, como era seu hábito, quando decorria o Festival no teatro que fora mandado edificar por Luís II da Baviera. Contudo, devido à admiração que lhe tributava Hermann Göring, Karajan pôde dirigir a Berliner Staatskapelle, a orquestra da Berliner Staatsopera, de 1941 a 1945, onde regeu mais de 150 representações.
Em 16 e 17 de Maio de 1968, Karajan dirigiu em Lisboa, no Coliseu, a Berliner Philharmoniker, inaugurando o XII Festival Gulbenkian de Música, em dois concertos memoráveis, a que tive o inolvidável privilégio de assistir.
Mantém-se ainda hoje a controvérsia quanto às convicções ideológicas e políticas de Karajan. É um facto que o Maestro se inscreveu no Partido Nazi (o NSDAP-Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) em Salzburg, em 8 de Abril de 1933, e embora em Junho desse ano o Partido fosse declarado ilegal pelo governo austríaco a filiação manteve-se válida até 1939, data em que as autoridades centrais do NSDAP a consideraram sem efeito, tendo inscrito retroactivamente Karajan como membro, em Ulm, com data de 1 de Maio de 1933. Todavia, parece hoje evidente que a adesão ao Partido Nazi se deveu principalmente à possibilidade de evolução da sua carreira e não por especiais convicções políticas. Acresce ainda o facto da segunda mulher de Karajan, Anna Maria Sauest, ter um avô judeu, o que o levou a procurar manter-se nas boas graças do regime. Como outros regentes famosos que não se expatriaram durante o período nazi, por exemplo os alemães Hans Knappertsbusch e Wilhelm Furtwängler e os austríacos Clemens Krauss e Karl Böhm, Karajan continuou a dirigir na Alemanha e na Áustria durante o regime do Führer, e ainda regeu um concerto em Berlim em 18 de Fevereiro de 1945, após o que partiu para Milão. Aí, e porque os teatros alemães estavam destruídos ou encerrados, contou com o apoio do seu amigo e eminente maestro italiano Victor de Sabata, que também sofreria alguns incómodos por ter mantido a sua carreira em Itália durante o consulado de Mussolini. Vem a propósito referir que, em 1953, De Sabata dirigiu, na sua única gravação comercial de ópera, uma Tosca, com Maria Callas, Giuseppe di Stefano e Tito Gobbi, que é considerada a obra-prima das gravações operáticas.
Sobre a participação de Furtwängler em espectáculos com a presença de Hitler e as inquirições a que foi sujeito pela chamada Comissão de Desnazificação criada pelos Aliados no pós-Guerra, deve ler-se a peça Taking Sides, de Ronald Harwood, que foi passada ao cinema pelo realizador István Szabó. Em 18 de Maio de 1946, Karajan foi ilibado das acusações que sobre ele pesavam de cumplicidade com o regime de Hitler e retomou a sua carreira de maestro na Alemanha e no mundo.
Para lá da sua presença no palco, dedicou-se também o maestro à gravação discográfica, através de várias editoras, nomeadamente a Deutsche Grammophon, que com ele, e com as mais importantes orquestras e os melhores solistas, produziu dezenas de obras musicais, primeiro em vinil e depois em disco compacto, sendo notáveis as suas interpretações de Beethoven, Wagner, Richard Strauss, Mahler, Bruckner, Verdi, Puccini ou Schoenberg. Durante a sua longa carreira, Karajan recebeu diversas distinções, nomeadamente o grau de doutor honoris causa pela Universidade de Oxford e o Prémio Internacional de Música da UNESCO.
Notabilizou-se Karajan por um estilo muito pessoal de regência e pela sua leitura especial das partituras que, aliás, costumava dirigir de cor, graças a uma extraordinária memória e a um apuradíssimo ouvido musical. Preocupou-se também o maestro com as características técnicas das gravações em disco, sugerindo modificações e exigindo aperfeiçoamentos e materiais novos, um pouco ao jeito do que fizera Leni Riefenstahl, quando pediu à AGFA a criação de um novo tipo de película para os seus filmes. Sustentam os opositores de Karajan que o maestro não tinha uma postura democrática e que se comportava ditatorialmente ao conduzir as orquestras. Importa, por isso, salientar que se há área onde a democracia não funciona é na direcção de uma orquestra; esta toca como um todo, sujeita à orientação de quem a conduz e servindo uma determinada interpretação da obra em causa, e nem poderia ser de outra maneira, sob pena de produzir uma peça híbrida e esteticamente ilegível.
Interessou-se igualmente o maestro pelos desportos e pelas novas máquinas, sendo um exímio condutor de automóveis de alta cilindrada e um apaixonado pela pilotagem de aviões, sendo ele que comandava habitualmente o seu avião particular.
Porque a carreira de Karajan está indissociavelmente ligada à Berliner Philharmoniker, importa fazer algumas referências a esta extraordinária orquestra, por muitos considerada a melhor do mundo.
A orquestra foi fundada em Berlim, em 1882, por 54 músicos, com o nome de Frühere Bilsesche Kapelle (Antiga Orquestra de Bilse), depois de um rompimento com o maestro Benjamin Bilse. Em 1887 teve lugar uma reorganização, sob a direcção financeira de Hermann Wolff e a orquestra assumiu o seu nome actual, sendo confiada a direcção musical a Hans von Bülow.
Foram directores da Orquestra os seguintes maestros:
- Ludwig von Brenner (1882-1887)
- Hans von Bülow (1887-1892)
- Arthur Nikisch (1895-1922)
- Wilhelm Furtwängler (1922-1945)
- Leo Borchard (Maio-Agosto 1945)
- Sergiu Celibidache (1945-1952)
- Wilhelm Furtwängler (1952-1954)
- Herbert von Karajan (1954-1989)
- Claudio Abaddo (1989-2002)
- Simon Rattle (Desde 2002)
Pela Berliner Philharmoniker passaram as mais importantes figuras musicais do século passado, como Hans Richter, Felix von Weingartner, Richard Strauss, Gustav Mahler, Johannes Brahms, Edvard Grieg, Leo Borchard, morto (acidentalmente) em 23 de Agosto de 1945 pelas forças americanas que ocupavam Berlim, Sergiu Celibidache e, já neste século, Daniel Barenboim, Pierre Boulez, e tantos outros que se torna impossível referi-los.
O primeiro auditório da Berliner Philharmoniker foi destruído durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944. A partir de 1963 a Orquestra passou a residir no edifício da Philharmonie, construído entre 1960 e 1963, segundo o projecto pentagonal do arquitecto Hans Scharoun e que fica situado entre a Potsdamerplatz e o Tiergarten, na rua que tem hoje o nome de Herbert von Karajan. Entre 1984 e 1987 foi acrescentada à Philharmonie a Kammermusiksaal, desenhada por Edgar Wisniewski com base nos apontamentos de Scharoun. O conjunto faz lembrar do exterior uma tenda de circo mas trata-se de uma das melhores realizações arquitectónicas europeias de salas de música. Em Maio de 2008 verificou-se um incêndio no telhado mas os danos foram limitados e as actividades puderam prosseguir no mês seguinte.
Em 2007 foi publicado o livro Das Reichsorchester, de Misha Aster, sobre as relações da Berliner Philharmoniker com os dirigentes do Terceiro Reich (de quem era a jóia da coroa), nomeadamente com Joseph Goebbels, ministro do Esclarecimento do Povo e da Propaganda, que tutelava a Cultura, com Hermann Göring e com o próprio Hitler. Estas relações, perigosas mas com certeza inevitáveis, levaram a Orquestra a anunciar que iria investigar o seu papel durante o Regime Nazi.
4 comentários:
Observações várias:
1)Encontram-se à venda gravações de óperas completas do notável De Sabata,pelo menos as seguintes alem da Tosca: a)Macbeth,tambem com a Callas;b)André Chenier;c)Aida;d)Falstaff.
2)A "desculpa" das inscrições no partido nazi por causa da familia da mulher é curiosa. O K. só casou com essa mulher(2º casamento)em Outubro de 42. Inscrever-se em 33,renovar em 39,quando estava casado com outra,mostra dotes de grande premonição...E tambem não vejo porque se tem de "desculpar"o K. a quem não parece que a ideologia nazi tenha jamais incomodado,como aliás aparentemente ao autor do blogue,que trata respeitosamente os facínoras bibliófilos e melómanos que destruiram a Alemanha e parte da Europa(se os deixassem mais tinham destruido).
3)A referência à Democracia na direcção de orquestra é patusca, e presta-se a glosas mais ou menos imbecis, como já apareceram por aí. A Democracia (clássica,digamos)é sumàriamente um sistema de exercício e fiscalização do poder político,que nada tem a ver com o funcionamento de células sociais. É evidente que a Escola,como a orquestra,são instituições que exigem uma estruturação claramente autoritária,e que convive perfeitamente com a Democracia política.Mais autoritário que o K. era o Toscanini,com as suas célebres cóleras,mas que recusou produzir-se na Itália fascista,por cujas milícias chegou a ser agredido. E há escolas mais elitistas e autoritárias do que as "Grandes Écoles" francesas,que atravessaram a 3ª e 4ª Repúblicas incólumes e florescentes? A Democracia política não tem que excluir,pelo contrário,necessita do exercício da autoridade no seu plano próprio,e da criação de elites renovadas.
4)Para concluir,"De la Musique avant toute chose",já dizia o Verlaine. Quanto ao Karajan ser ou não o "máximo": Tambem o ouvi no Festival da Gulbenkian(a 5ª,o D.João,etc.) e gostei muito. Considero apenas que as interpretações a partir do anos 60 começaram a adquirir uma certa "majestade sonora" que contrasta com a leveza da produção do anos 50,o "Cosi",por exemplo,inigualável. Sem discutir os seus méritos musicais e logisticos(a transformação do festival de Salzburgo,p.ex.)sofro no entanto de um "préjugé": o meu deus orquestral chma-se Furtwängler, que considerava o K. como um arrivista e oportunista,e limpou ostensivamente a mão com o lenço quando foi cumprimentado pelo sinistro Goebbels. Mas O.K.,tomáramos nós ter muitos Karajans por aí. E desculpe a franqueza com que me exprimo,mas pelos ditos facínoras tenho um desprezo inultrapassável.
PARA O ANÓNIMO DAS 19:17:
1) Quando me referi à única gravação comercial de ópera do maestro Victor de Sabata, pretendia esclarecer ter sido a única que ele realizou em estúdio. Há outras, aliás poucas, gravações de espectáculos de ópera, por ele dirigidos, que foram mais tarde publicadas, possivelmente depois da sua morte, o que neste momento não posso assegurar.
Para ilustração do autor do comentário devo acrescentar que o seu "notável" De Sabata permaneceu em Itália durante todo o período fascista.
2) A inscrição de Karajan no Partido Nazi em 1933 é, obviamente de sua responsabilidade. Milhões de alemães apoiaram então o NSP, caso contrário Hitler não teria obtido uma votação que lhe permitiu ascender a Chanceler do Reich. A renovação de 1939 foi efectuada, como se refere no post, pelos serviços centrais do Partido, dado que a Áustria passara a fazer parte da Alemanha, e a ela Karajan foi alheio. Quando se alude à família da mulher, isso tem a ver com o facto de Karajan não se ter desvinculado do Partido, depois de 1942, como tantas outras figuras o fizeram. O maestro Karajan não carece de que o autor do post o esteja a desculpar do que quer que seja, era só o que faltava. Também o autor do post não "trata respeitosamente os facínoras bibliófilos e melómanos", pretende apenas ser objectivo, ainda que, no que respeita à melomania, o pudesse fazer se seguisse à letra a opinião do autor do comentário: "De la Musique avant toute chose".
3) A referência à Democracia não é tão patusca como pretende o autor do comentário. Tem a ver com o tipo de acusações normalmente endereçadas a Karajan. Quanto ao resto são divagações que nada têm a ver com o post.
4) Não contesto a excelência de Furtwängler, que aliás detestava Karajan apenas por ser um perigoso concorrente. Ambos foram notáveis maestros e ambos permaneceram na Alemanha durante o Regime Nazi, tal como Knappersbusch, Krauss ou Böhm.
NOTA: É pena que o autor do comentário tenha ficado obcecado com algumas referências à Alemanha Nazi, inevitáveis na biografia de Karajan, e não tenha encontrado qualquer mérito no post, cujo objectivo era recordar Herbert von Karajan como um dos maiores maestros do século XX.
Uma das vantagens da blogosfera é permitir debates animados e de certo modo mais livres que nos "media" tradicionais.Vejamos então.
O comentário anterior consiste numa reacção crítica e veemente a alguns pontos específicos do post e suas interpretações possiveis(uma já presente noutro lado). Não me referi ao conjunto do texto,que tem o evidente mérito de chamar a atenção para a efeméride,de realçar as virtudes musicais do maestro,de propôr exemplos musicais bem escolhidos,etc Não vi aliás em qualquer outro meio de informação (posso estar enganado) referência ao aniversário.
Feita a devida,e merecida, vénia,passemos aos pontos controversos.
-As gravações do Sabata que citei,ao vivo ou em estúdio,estão no comércio.Sei perfeitamente que se manteve na Itália no período mussoliniano,e até que que no imediato post-guerra teve alguns problemas,embora não tão complicados como outros. Admiro-o musicalmente,e vi com respeito o molde das suas mãos e a sua batuta que se encontram(ou encontravam nos anos 80) no pequeno museu anexo ao Scala. Não vejo no meu comentário qualque tendência para subir ou descer o valor artístico dos músicos em função das suas posições políticas ou até pessoais. De outro modo não colocaria o Furtwängler no topo,não apreciaria Strauss ou Böhm como faço,ou noutro registo não gostaria de Gesualdo porque matou a mulher,ou de Caravaggio porque assassinou um qualquer meliante. Estamos esclarecidos.
A "desculpa" da inscrição no partido como protecção à mulher pareceu-me impl
ícita numa passagem do post,mas posso estar enganado. Aliás,a mesma "desculpa" já existe há muito para o R.Strauss,cuja nora era plenamente judaica. Mas teve a coragem de se opôr frontalmente à eliminação da referência ao Stefan Zweig como libretista na estreia da "Mulher Silenciosa",o que lhe acarretou fortes dissabores. Mas aqui estamos a falar das atitudes pessoais e políticas,e obviamente não de qualidades musicais. O seu post é que se espraia nessa tecla,eslarecendo minuciosamente as inscrições e desinscrições do K.,a protecção do Göring,etc.,é natural pois que se reaja a esse plano pessoal.
-Democracia. As minhas "divagações" reagem a uma tendência de confundir Democracia com ausência geral de autoridade,o que aparece no seu comentário à forma como o Karajan ensaiava e dirigia. Não é uma questão inocente,é uma das muitas vias de ataque à forma democrática de regimes políticos,e por isso achei útil comentar um pouco mais desenvolvidamente,mas este espaço,concedo, não é fértil para entendimentos nesta área. E para terminar com outra citação fiquemos com o "Prima la Musica doppo le Parole".
Herberte Von Karajan foi e sempre será um dos maiores maestros do seculo XX. Portanto, os amantes da musica não se interessam por manobras politicas.Ouçam e se deleitem com o som das grandes orquestras dirigidas por este homem que dedicou toda a sua vida a musica.Previlegiados aqueles que podem ouvi-lo!Claudia delfino
Enviar um comentário