quinta-feira, 22 de março de 2018

INSTANTÂNEOS





Acabou de ser editado em língua portuguesa, com o título Instantâneos, o livro de Claudio Magris,  Instantanee (2016), uma colectânea de 48 textos breves, datados de 1999 a 2016, que presumo tenham sido publicados em jornais italianos, mas o livro em português é omisso, o que é lamentável, quanto à origem destas crónicas.

Claudio Magris nasceu em Trieste, em 1939, essa cidade mágica de literatos e artistas, hoje italiana, mas que foi já jugoslava, eslovena e até independente. Autor de vasta e notável obra, onde se conta o famoso romance Danubio (1986), Magris é um dos mais representativos escritores da Mitteleuropa, de que Trieste constitui um símbolo.

Nos textos agora dados à estampa na nossa língua, ressalta um humor muito inteligente, que  reflecte frequentemente quanto é efémera a nossa existência terrena. E o autor mostra também claramente a importância que atribui aos mais vulgares factos do quotidiano, que são afinal verdadeiras experiências de vida.

Como contribuição para um melhor conhecimento de Claudio Magris entre nós, transcrevemos algumas passagens da obra:


«(...) Morrer faz parte dos óbvios riscos do ofício de viver. Como disse um escritor polaco, Stanislaw Lec - que ele nunca leu, mas com quem certamente concordará inteiramente, embora não o saiba -, seja como for, viver é perigoso e quem vive morre.» (p. 15)

«(...) No programa televisivo fala-se, com insistência - naturalmente sem mencionar nomes, o esoterismo requer segredo - de importantíssimos banqueiros que participariam em ritos satânicos, missas obscuras, liturgias diabólicas e assim por diante, talvez parodiando cultos de outras civilizações que, no seu contexto, fazem sentido, mas, reciclados noutra parte qualquer, ficam desvirtuados, tal como certos objetos sacros reduzidos a bibelôs nas casas dos novos-ricos. Até há poucas noites, acreditava que os banqueiros se ocupavam de finanças; a maior parte deles honestamente e um ou outro, como acontece nas melhores famílias, fraudulentamente. É certo que se, pelo contrário, se dedicam a essas diaboliquices patetas, compreende-se que até o principal trapaceiro de meia-tigela o seja às claras. Se o principal responsável pelas burlas sofridas por muitos de nós é aquele mesmo Satanás de banda desenhada, temo sinceramente que não haja esperança para nós, aqueles que fazem poupanças, pois não me parece que ele seja solvente.» (pp. 54-5)

«EM ISTAMBUL, NO CANTO NORDESTE da Cisterna da Basílica, com a frescura da sua misteriosa água subterrânea e a simetria - inquietante como toda a simetria - das suas doze filas de colunas na sombra, duas delas estão apoiadas sobre grandes cabeças de Medusa, deitadas de lado ou invertidas, com a sua melena de serpentes emaranhadas e os seus olhos que no mito transformam em pedra quem os fita, por dizerem o insustentável e escuro horror de existir. Quando Justiniano, no século VI, mandou erigir a basílica, os mármores das esculturas pagãs foram evidentemente usados como matéria-prima de construção, talvez até com um certo gosto em humilhar as divindades antigas. (...) Aquela estrutura vertical é também a estratificação das civilizações que se foram sucedendo no tempo, sem que tais sucessões impliquem necessariamente um progresso ou uma ordem hierárquica, mas antes tão-só um alternar-se de mundos e de estratos de terra ou de folhas caídas, sem nunca desaparecerem definitivamente, nem tampouco se  transporem. As cúpulas islâmicas cobrem um universo que não é somente turco ou muçulmano, mas é também grego, latino, bizantino, genovês, veneziano, tradicionalista, modernista; um amálgama e uma mistura de culturas, línguas, religiões. Lá em baixo, com a cabeça torta ou virada ao contrário, a Medusa, mais do que petrificar, pisca-nos o olho.» (pp. 59-60)

«(...) Tudo isto é nada em relação àquilo que acontece quando, por exemplo, se perde a bagagem no aeroporto Kennedy de Nova Iorque, se telefona para o número indicado e uma voz gravada diz velozmente para nos dirigirmos ao número tal se o voo for proveniente da Europa, ao número tal se o voo for proveniente de outra cidade dos Estados Unidos e ainda mais uns tantos números de acordo com a companhia aérea em que se viajou, números que nem tampouco se consegue memorizar ou escrever, ao mesmo tempo que o telefone - não verde, mas a pagamento - interrompe a comunicação. Os humanistas podem saltar de alegria, mesmo que a mala perdida pese mais do que o credo filosófico, porque descobrem que a máquina ainda não substituiu o Homem, neste caso um ou uma telefonista de carne e osso.» (pp. 64-5)

«O ASSESSOR DA CÂMARA MUNICIPAL de Trieste para o pelouro das Obras Públicas, Franco Bandelli, estigmatizou, com a aprovação de muitos concidadãos, o hábito - cada vez mais disseminado na minha cidade - de fazer xixi na rua, a moda que instiga "os jovens mal-educados de boas famílias a urinar contra as paredes, nos portões e nas viaturas estacionadas". Tudo isto é consequência não tanto do progressivo desaparecimento dos velhos e gloriosos urinóis, engolidos pelas requalificações e pelas obras públicas, mas sobretudo de diversos outros fatores: o crescente consumo de cerveja, uma menor sensibilidade moral em relação à micção ao ar livre (que deixou de ser sentida como transgressão, a par de outros hábitos outrora reprovados socialmente e agora socialmente aceites) e o número insuficiente de forças de segurança pública (em particular, da polícia municipal) predispostas à repressão da infração, isto é, à inflição das multas recentemente estabelecidas pela Câmara de Trieste para quem mija na via pública. (...) Das três principais causas do deplorável costume, o declínio do urinol é talvez o mais importante. (...) Desaparecido ou cada vez mais raro "o velho templo verde" - além do mais deploravelmente machista, pois oferecia "alívio unicamente ao homem de pé" -, as autoridades milanesas da época, assediadas como um castelo medieval a partir do fosso cada vez mais cheio de chorume e ante a afanosa procura de remédios, pensaram a certa altura em adquirir as novíssimas casas de banho eletrónicas instaladas na Paris de Chirac, à época presidente da Câmara da Ville Lumière. (...) Todavia, Trieste tem um problema adicional relativamente a Milão: o mar, lugar por excelência onde urinar é tacitamente aceite, mas nem por isso menos inconveniente, enquanto profanação daquela paisagem e elemento do  mundo que, mais do que qualquer outro, evoca o infinito, o eros, o divino. De acordo com uma antiga tradição portuguesa, fazer xixi no mar é pecado, mesmo que venial. Mas como identificar os transgressores?» (pp. 73, 74, 76)

«(...) Pão e vinho, que sobre uma mesa fraternamente posta estreitam a humanidade, tornam-se assim obsceno banquete no empanturramento dos poderosos que, ao partirem o bolo, julgam repartir entre si o mundo, como aconteceu em Moscovo, quando Churchill e Estaline partilharam não só um soberbo esturjão, mas também as desventuradas nações balcânicas, setenta e cinco por cento da Roménia destinada à influência soviética e vinte e cinco à inglesa; com a Grécia fez-se o contrário e assim por diante, quando Churchill, ao mesmo tempo que corta um apurado naco de comida, cede territórios que, confessará mais tarde, não sabe sequer bem onde se situam exatamente, como a Bessarábia. Dez anos mais tarde, na edição de 1954, a introdução coletiva ao Livro da Comida Saborosa e Saudável diz que, a bem do país, é "necessário introduzir o sumo de tomate como bebida de massas".» (pp. 82-3)

«(...) Existe uma brutal indiferença ou uma irritação dos saudáveis em relação aos doentes e uma conspiração dos doentes contra os saudáveis.» (p. 129)

«(...) Os nossos cemitérios são cidades, necrópoles e metrópoles de mármore, majestosos triunfos da morte e da sua ordem; trazem à lembrança mais a especulação imobiliária do que a vida eterna.» (p. 136)

«(...) Amar significa também compreender e proteger aquela solidão de que o outro precisa; compreender que ele ou ela pode querer almoçar fora de casa não só porque tem um banal e sempre respeitado almoço de trabalho que não ofende nenhum casamento, mas porque naquele dia precisa de estar unicamente com os seus pensamentos, com o seu vagabundear rafeiro, e perder-se. E, por sua vez, diz um verso de Rilke "Os próprios amantes [...] não deparam constantemente com limites?"» (p. 142)

«NA ÉPOCA DA SECULARIZAÇÃO, a publicidade substitui por vezes os taciturnos pregadores da chamada idade das trevas, fustigadores da carne entusiasmados por recordar que por baixo de um par de gloriosos seios está um esqueleto destinado a desfazer-se em pó. (...) É preciso reconhecer que a publicidade televisiva, se por um lado é com certeza uma chatice que dá cabo do honesto descanso de quem só quer ver um programa, por outro é também uma espécie de grande pregadora quaresmal, a herdeira da universalidade dos Mistérios medievais em que toda a beleza, riqueza e poder acabam por se reduzir a pó. Se não fossem as empresas que produzem desodorizantes, cremes depilatórios, pensos higiénicos e champô, quem se lembraria ainda de que está destinado ao pó?» (pp. 152-3)

* * * * *

Não li o original italiano mas a tradução parece-me fluente, ainda que algumas expressões tenham provocado a minha perplexidade. O que verdadeiramente se dispensava era a opção editorial de publicar o livro utilizando o sinistro Acordo Ortográfico ilegalmente vigente. Tragédias do Portugal contemporâneo.

1 comentário:

Anónimo disse...

Todas as crónicas foram publicadas no Corriere della Sera