terça-feira, 27 de março de 2018

D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME (III)

 


Concluímos, com a publicação da 3ª parte, a apresentação do texto da conferência do embaixador Fernando Ramos Machado, na Sociedade de Geografia, em 20 de Março passado:



Na verdade, a vida do Grão-Priorado do Crato parece seguir o seu rumo próprio, sem aparecer afectada por qualquer ingerência russa. Registam-se, aliás, alguns desenvolvimentos de relevo.

A 6 de Novembro, seis dias antes do ofício triunfalista do Ministro russo em Lisboa, o Príncipe Regente enviara ao Grão-Priorado o Regulamento Provisional que ele apresentara a Hompesch e que este, como vimos, aprovara em Maio, dois meses antes de resignar. Com este diploma, procurava-se ultrapassar o impasse criado pela desestruturação dos organismos centrais da Ordem, no seguimento da ocupação da Ilha pelos franceses. Era criado, na Corte, um Tribunal do Venerando Priorado de Portugal, que substituía a Assembleia da Língua de Castela e Portugal, que, anteriormente, funcionara em Malta, enquanto, numa fórmula que já encontrámos, se esperava “um feliz resultado de circunstâncias, em que seja estabelecida a Religião de Malta na sua antiga independência e unidade”. A primeira reunião teve lugar, a 11 de Novembro, no Palácio da Bemposta. Como Presidente do Tribunal, foi nomeado o Bailio de Acre e Fregim, Rodrigo Manuel Gorjão, como “anciano”, isto é, o Cavaleiro mais antigo.

A 27 de Novembro, D João comunica ao Grão-Priorado que, por motivos políticos, não poderia usar a Cruz da Ordem, que lhe fora oferecida, permitindo, porém, que seu filho, o Infante D. Pedro, a recebesse. Quais seriam os motivos políticos, invocados pelo Regente? Acharia, porventura, que não deveria acumular a Chefia do Estado com a Chefia do ramo de uma Ordem religiosa? Escrúpulos que, no outro extremo da Europa, Paulo I não teve.
 
 
Palácio dos Grão-Mestres da Ordem de Malta, em La Valetta

A 14 de Dezembro de 1799, D. Pedro, com pouco mais de um ano de idade, recebeu, das mãos de Frei Francisco de Carvalho Pinto, Gão-Prior de Hibernia, a insígnia de Grã-Cruz, marcando a sua instalação e reconhecimento como Grão-Prior hereditário do Crato. Essa dignidade cabia-lhe, já que era filho secundogénito, mais novo três anos que seu irmão D. António. Na menoridade de D. Pedro, seu pai seria Administrador do Grão-Priorado.

A Ordem de S. João de Jerusalém e a Ilha de Malta continuavam, entretanto, a ser objecto de disputas. Ainda em 1798, a Marinha inglesa, sob o comando de Nelson, impõe um bloqueio à Ilha. A Rússia tentou, em vão, assumir o domínio de Malta, quer fomentando uma revolta interna, quer aliando-se a Nápoles. Os franceses vieram a render-se, a 4 de Setembro de 1800. Os ingleses contaram, em dois períodos, com o apoio de uma Esquadra portuguesa, sob chefia do Marquês de Niza, tendo a sua actuação merecido os maiores elogios. Não deixa de ser tristemente irónico que, no ano seguinte, Portugal tenha sido “persuadido” a aceitar a ocupação da Madeira, por forças inglesas.

Um acontecimento imprevisto veio alterar substancialmente a situação na Europa – a 23 de Março de 1801, Paulo I era assassinado. Alexandre I retomou o título de Protector da Ordem de S. João de Jerusalém, mas procurou pôr termo à situação irregular em que seu pai a colocara. Desistiu de pretensões sobre a Ilha e, não pretendendo ser Grão-Mestre, devolveu aos Cavaleiros a escolha do seguinte. Na impossibilidade, dadas as circunstâncias, de reunir um Capítulo Geral, foi decidido um procedimento excepcional, submetendo-se ao Papa uma lista de nomes apresentados pelos Priorados (dela constando os portugueses Rodrigo Manuel Gorjão e Francisco Carvalho Pinto, já aqui mencionados). Pio VII acabou por escolher, em Fevereiro de 1803, Giovanni Battista Tommasi.

O Tratado de Amiens, de 17 de Julho de 1802, entre França e Inglaterra, reconhecia o direito da Ordem à Ilha de Malta, sob a alta protecção do Rei das Duas Sicílias, mas os ingleses nunca cumpriram. Quando o Grão-Mestre Tommasi manifestou vontade de se dirigir para Malta, não foi autorizado, pelo que ficou na Sicília (primeiro Messina, depois Catânia). Quando morreu, em 1805, Pio VII considerou não estarem reunidas as condições para a eleição de um Grão-Mestre, pelo que, até 1879, a Ordem de Malta foi dirigida por lugar-tenentes.

O Czar encerrou o “episódio russo” da Ordem de Malta, confiscando, em 1810-1811, as propriedades dos dois Grão-Priorados Russos, católico e não-católico, e confirmou, em 1817, a sua completa dissolução. Todas as associações que, actualmente, se apresentam como Ordens de Malta, reivindicando uma qualquer filiação russa ou ortodoxa, são de fantasia, não assentando em nenhum fundamento histórico ou jurídico.

Foram sendo formuladas alternativas, para proporcionar uma base territorial à Ordem. Ainda no final do Séc. XVIII, um Bailio alemão sugeriu a fusão daquela Ordem com a Teutónica (como, séculos antes, se havia ponderado uma fusão do Templo e do Hospital), a sua instalação em Ilha adriática pertencente aos Habsburgos e a criação de uma Língua Russa, aberta aos gregos desejosos de lutar contra o Império Otomano.

Em 1806, Gustavo IV da Suécia que, numa visita a S. Petersburgo, havia, de Paulo I, recebido a Grã-Cruz, veio colocar, à disposição da Ordem, a Ilha de Gotland, no Báltico, que, na Idade Média, chegara a ser momentaneamente ocupada pela Ordem Teutónica. A oferta foi declinada, pois os Cavaleiros ainda conservavam a esperança de recuperar Malta.                                                                          
Em Novembro de 1807, o Príncipe Regente, a Família Real e grande parte do escol dirigente partem para o Brasil, quando as tropas invasoras napoleónicas já tinham entrado em Território português. Nove anos antes, ao ocupar Malta, Napoleão não quisera aprisionar os Cavaleiros, que preferiu expulsar. Agora, Junot via frustrada a sua intenção de aprisionar o Príncipe Regente, colocando-o numa posição idêntica à de Carlos IV e do futuro Fernando VII de Espanha. Napoleão não abolira a Ordem de Malta, mas esta, sem Território e desestruturada, mantinha apenas uma sombra da sua Soberania. Napoleão podia decretar que a Casa de Bragança deixava de governar pois, no Brasil, o Príncipe Regente mantinha a base territorial da Soberania portuguesa.

 
Co-Catedral de S. João, em La Valetta

Com a queda de Napoleão, o Congresso de Viena ocupou-se em reorganizar a Europa. Portugal teve uma participação condigna naquele encontro, admitido no círculo das oito principais Potências. Já a ordem de Malta não conseguiu fazer ouvir a sua voz. Apresentou um memorial aos Soberanos e Plenipotenciários, no qual figura a seguinte passagem: ”Tendo a Ordem sempre beneficiado da alta protecção do Príncipe magnânimo que governa Portugal, podemos recear a perda das Comendas que foram conservadas pelo Priorado com tanto zelo e vigilância?” É confiança que se exprime, mas não isenta de dúvida. Com modéstia, afirma-se, no documento, que não cabe à Ordem, mas aos Soberanos, designar o local dum futuro estabelecimento, mas adianta-se que não deveria ser muito longe do centro do Mediterrâneo, ter um porto seguro e capaz de acolher todos os navios, bem como espaço para um arsenal, um lazareto, uma igreja, um hospital “ essência da nossa instituição”. Acrescentava ainda: “A Ordem não pede grandes coisas, mas o estabelecimento tem de ser independente e livre”.

Dois protagonistas do Congresso de Viena, Metternich e Talleyrand, tinham planos relativamente à Ordem de Malta. O primeiro sugeria que lhe fosse dada a Ilha de Elba, mas punha a condição de os Habsburgos terem o direito de nomear os Grão-Mestres. Já Talleyrand, nas instruções que redigiu para os Embaixadores franceses ao Congresso, afirmava que seria honroso, para a Inglaterra, juntar-se às Potências católicas, para obter uma reparação para a Ordem, à qual se “poderia atribuir Corfu, sem comprometer os interesses de nenhum Estado da Cristandade”. Mas, nem no Congresso de Viena nem, anos depois, no de Verona, a Ordem de Malta haveria de conseguir obter uma base territorial.

Em 1823, no quadro da luta dos gregos pela independência, houve um projecto, de contornos pouco claros, visando restabelecer a Ordem na sua antiga posse sobre Rodes. Chegou a haver diligências e negociações, mas a iniciativa acabou por fracassar.

Em 3 de Julho de 1821, chamado pela Revolução Liberal, D. João VI estava de volta a Portugal, deixando seu filho D. Pedro no Brasil.    

Por cartas de Janeiro de 1824, dirigidas ao Marquês de Palmela, Ministro dos Negócios Estrangeiros, Frei António Busca, Lugar-Tenente do Grão-Mestrado, oferece ao Rei e ao Infante D. Miguel, futuro Grão-Prior do Crato, a Grâ-Cruz da Ordem, em sinal de regozijo pelo regresso do Brasil da Família Real. D. João, que um quarto de século antes, declinara ostentar a Grã-Cruz de Malta, invocando motivos políticos, recebia-a, agora, a 12 de Janeiro, em cerimónia no Palácio da Bemposta. Mas, diferentemente do que ocorrera, em Dezembro de 1799, com D. Pedro, a insígnia não pôde, nesta ocasião, ser entregue a D. Miguel, que se encontrava em Viena, no seu primeiro exílio.

 
Paço da Bemposta

D. João VI faleceu naquele mesmo Palácio, a 10 de Março de 1826, muito provavelmente vítima de envenenamento. Vivera no ocaso do Antigo Regime, do qual, ele próprio, em certa medida, era também a imagem. Tendo reinado em dois Continentes, atravessou duas vezes o Atlântico, algo que, jamais, nenhum Monarca europeu fizera. E, entre todos os Reis portugueses, foi o único a ter sido, no decurso da sua vida, Rei absoluto e Monarca constitucional. Grão-Prior do Crato, seguiu atentamente as vicissitudes da Ordem de Malta, num período atribulado.

Seus filhos, D. Pedro e D. Miguel, que também assumiram a dignidade de Grão-Prior do Crato (VII), também reinaram, um como Monarca constitucional, o outro como Rei absoluto. Uma guerra civil, duplamente fratricida, dividiu o País e, só no final dela, se pôde considerar abolido, definitivamente, o Antigo Regime, em Portugal. Em Junho de 1834, D. Miguel parte para o segundo exílio, menos de quatro meses depois, falecia D. Pedro IV. No quadro do Decreto de 30 de Maio desse ano, que extinguia as Ordens Religiosas, o Grão-Priorado do Crato fora abolido e, até ao fim do século, não haveria presença da Ordem de Malta em Portugal.

Mas, nesse mesmo ano, 1834, a Ordem de Malta fixava a sua Sede em Roma, onde ainda hoje se encontra, em instalações que beneficiam da extra-territorialidade. Terminava, assim, a errância que, desde 1798, levara a Ordem, de Malta, a Trieste e S. Petersburgo, Messina, Catânia e Ferrara. Era também o termo de uma peregrinação, começada em Jerusalém quase 800 anos antes Despida do carácter militar que, durante séculos, assumira tão gloriosamente, a Ordem regressava ao seu propósito inicial, humanitário, ao serviço dos pobres e dos doentes.

* * * * *

 (I) Por uma aparente ironia, não incluo, neste número, aquele que ficou, na História Portuguesa, como “o” Prior do Crato, D. António, sendo a razão para tal a circunstância de não ser consensualmente reconhecido como Rei de Portugal.

(II) A designação oficial é, actualmente, Ordem Soberana Militar Hospitalária de S. João de Jerusalém, de Rodes e de Malta.

(III) Outros cargos eram os de Grão-Preceptor (Provença), Grão-Marechal (Auvergne), Grande Hospitalário (França), “Drapier” (Aragão), Almirante (Itália), “Turcopilier” (Inglaterra),  Grão-Bailio (Alemanha).

(IV) Gáfete, Sertã, Amieira, Proença-a-Nova, Cardigos, Oleiros, Belver, Envendos, Gavião, Tolosa, Carvoeiro e Pedrogão Pequeno.
(V) Designadamente Leça (Bailiado), Vila Cova, Oliveira do Hospital, Vera Cruz e Portel, Oleiros, Santa Eulália da Ordem, Águas Santas, Chavão, Ansemil, Sernancelhe, Barrô, Frossos e Rossas, Rio Medo, Alvações, Freixiel, Abreiro, Moura Morta, Elvas e Montoito, Fontes, Trancoso. 

Num trabalho recente, de António Brandão de Pinho, reproduzem-se 87 Brasões autárquicos, nos quais figura a Cruz de Malta, o que ilustra bem a implantação que os Hospitalários alcançaram no Território português.

(VI) Os membros do Grão-Priorado, conforme vejo numa relação da altura, seriam 74, provenientes sempre de famílias com poder e influência. O seu número deveria ser mais ou menos constante, pois, da leitura de outras listas, verifica-se que, entre 1692 e 1775, quase 100 portugueses terão sido admitidos na Ordem de Malta.

(VII) Devo ao meu caro Colega e Amigo Dr. Paulo Santos, actualmente Conselheiro na nossa Missão junto da ONU e, anteriormente, na Embaixada em Moscovo, o ter chamado a minha atenção para esta publicação.

(VIII) Há alguma indefinição quanto às datas em que D. Pedro e D. Miguel foram Grão-Priores do Crato. Como vimos, D. Pedro foi investido naquela dignidade a 14 de Dezembro de 1799. Na capa interior da “Lista dos Cavalleiros, Freires Capellães Conventuais e Serventes D’Armas do Venerando Priorado de Portugal”, de 1800, figura um retrato do “Sereníssimo Senhor Infante D. Pedro, Grão-Prior do Crato”. A “Nova História da Militar Ordem de Malta e dos Senhores Grão-Priores della em Portugal”, de José Anastácio de Figueiredo, também de 1800, porém, é “oferecida a S.A.R. o Grão-Prior actual, o Príncipe Nosso Senhor”, isto é, o Príncipe Regente; mas D. João seria, mais propriamente, Administrador do Priorado, dada a menoridade de D. Pedro.

A “Dissertação Histórico-Jurídica sobre os Direitos e Jurisdições do Grão-Priorado do Crato”, de 1809, da autoria de Pascoal José de Melo Freire, contém uma passagem, pelo menos, que aponta noutro sentido: ”mas o Príncipe Nosso Senhor conhecendo que a ele só, como Grão-Prior na menoridade de S.A.R. o Sereníssimo Senhor Infante D. Miguel, a quem Deus prospere (…)”. Haveria plausibilidade para tal afirmação – com a morte de seu irmão mais velho, D. António, em 1801, D. Pedro tornou-se Príncipe Herdeiro. A seu irmão D. Miguel, nascido em 1802, caberia a titularidade da Casa do Infantado e do Grão-Priorado, mas tal não se teria concretizado, em 1809, pelo que haveria um lapso na obra (aliás póstuma, de Pascoal de Melo).

Dois documentos de 1821, das Cortes Gerais, saídas da Revolução do ano anterior, afiguram-se relevantes:

Num debate, a 9 de Maio, um Deputado, que teve conhecimento que, nesse dia, iria ter lugar uma reunião do Grão-Priorado do Crato, no Paço da Bemposta, pretende que seja impedida a sua realização, ainda que a mesma contasse com autorização “de S. Majestade e do Sereníssimo Príncipe, o Senhor D. Pedro, Grão-Prior do Crato” (a votação não vai nesse sentido).

A 7 de Julho, escassos dias após o regresso de D. João VI a Lisboa, as Cortes aprovam o Decreto nº 103, cujo art.º 6 estipula “Continuará El-Rei no Administração da Casa do Infantado, consignando ao Sereníssimo Senhor Infante D. Miguel as mezadas que julgar convenientes”. Estariam, nesse momento dissociadas as duas titularidades, D. Pedro com o Grão-Priorado, D. Miguel com a Casa do Infantado.  

D. João VI manteria a Administração desta última, ou talvez de ambas, mais provavelmente, ainda, no que toca ao Grão-Priorado, quando D. Pedro decidiu ficar no Brasil e quando, pouco depois, D. Miguel partiu para Viena, no seu primeiro exílio. D. Miguel veio a assumir ambas as titularidades, após a morte de seu pai, em 1826, e até ao final do seu Reinado, em 1834.


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