Concluímos, com a publicação da 3ª parte, a apresentação do texto da conferência do embaixador Fernando Ramos Machado, na Sociedade de Geografia, em 20 de Março passado:
Na verdade,
a vida do Grão-Priorado do Crato parece seguir o seu rumo próprio, sem aparecer
afectada por qualquer ingerência russa. Registam-se, aliás, alguns
desenvolvimentos de relevo.
A 6 de
Novembro, seis dias antes do ofício triunfalista do Ministro russo em Lisboa, o
Príncipe Regente enviara ao Grão-Priorado o Regulamento Provisional que ele
apresentara a Hompesch e que este, como vimos, aprovara em Maio, dois meses
antes de resignar. Com este diploma, procurava-se ultrapassar o impasse criado
pela desestruturação dos organismos centrais da Ordem, no seguimento da
ocupação da Ilha pelos franceses. Era criado, na Corte, um Tribunal do
Venerando Priorado de Portugal, que substituía a Assembleia da Língua de
Castela e Portugal, que, anteriormente, funcionara em Malta, enquanto, numa
fórmula que já encontrámos, se esperava “um feliz resultado de circunstâncias,
em que seja estabelecida a Religião de Malta na sua antiga independência e
unidade”. A primeira reunião teve lugar, a 11 de Novembro, no Palácio da
Bemposta. Como Presidente do Tribunal, foi nomeado o Bailio de Acre e Fregim,
Rodrigo Manuel Gorjão, como “anciano”, isto é, o Cavaleiro mais antigo.
A 27 de
Novembro, D João comunica ao Grão-Priorado que, por motivos políticos, não
poderia usar a Cruz da Ordem, que lhe fora oferecida, permitindo, porém, que
seu filho, o Infante D. Pedro, a recebesse. Quais seriam os motivos políticos,
invocados pelo Regente? Acharia, porventura, que não deveria acumular a Chefia
do Estado com a Chefia do ramo de uma Ordem religiosa? Escrúpulos que, no outro
extremo da Europa, Paulo I não teve.
A 14 de
Dezembro de 1799, D. Pedro, com pouco mais de um ano de idade, recebeu, das
mãos de Frei Francisco de Carvalho Pinto, Gão-Prior de Hibernia, a insígnia de
Grã-Cruz, marcando a sua instalação e reconhecimento como Grão-Prior
hereditário do Crato. Essa dignidade cabia-lhe, já que era filho secundogénito,
mais novo três anos que seu irmão D. António. Na menoridade de D. Pedro, seu
pai seria Administrador do Grão-Priorado.
A Ordem de S. João de Jerusalém e a Ilha de
Malta continuavam, entretanto, a ser objecto de disputas. Ainda em 1798, a
Marinha inglesa, sob o comando de Nelson, impõe um bloqueio à Ilha. A Rússia
tentou, em vão, assumir o domínio de Malta, quer fomentando uma revolta
interna, quer aliando-se a Nápoles. Os franceses vieram a render-se, a 4 de
Setembro de 1800. Os ingleses contaram, em dois períodos, com o apoio de uma
Esquadra portuguesa, sob chefia do Marquês de Niza, tendo a sua actuação
merecido os maiores elogios. Não deixa de ser tristemente irónico que, no ano
seguinte, Portugal tenha sido “persuadido” a aceitar a ocupação da Madeira, por
forças inglesas.
Um
acontecimento imprevisto veio alterar substancialmente a situação na Europa – a
23 de Março de 1801, Paulo I era assassinado. Alexandre I retomou o título de
Protector da Ordem de S. João de Jerusalém, mas procurou pôr termo à situação
irregular em que seu pai a colocara. Desistiu de pretensões sobre a Ilha e, não
pretendendo ser Grão-Mestre, devolveu aos Cavaleiros a escolha do seguinte. Na
impossibilidade, dadas as circunstâncias, de reunir um Capítulo Geral, foi
decidido um procedimento excepcional, submetendo-se ao Papa uma lista de nomes
apresentados pelos Priorados (dela constando os portugueses Rodrigo Manuel
Gorjão e Francisco Carvalho Pinto, já aqui mencionados). Pio VII acabou por
escolher, em Fevereiro de 1803, Giovanni Battista Tommasi.
O Tratado de
Amiens, de 17 de Julho de 1802, entre França e Inglaterra, reconhecia o direito
da Ordem à Ilha de Malta, sob a alta protecção do Rei das Duas Sicílias, mas os
ingleses nunca cumpriram. Quando o Grão-Mestre Tommasi manifestou vontade de se
dirigir para Malta, não foi autorizado, pelo que ficou na Sicília (primeiro
Messina, depois Catânia). Quando morreu, em 1805, Pio VII considerou não
estarem reunidas as condições para a eleição de um Grão-Mestre, pelo que, até
1879, a Ordem de Malta foi dirigida por lugar-tenentes.
O Czar
encerrou o “episódio russo” da Ordem de Malta, confiscando, em 1810-1811, as
propriedades dos dois Grão-Priorados Russos, católico e não-católico, e
confirmou, em 1817, a sua completa dissolução. Todas as associações que,
actualmente, se apresentam como Ordens de Malta, reivindicando uma qualquer
filiação russa ou ortodoxa, são de fantasia, não assentando em nenhum
fundamento histórico ou jurídico.
Foram sendo
formuladas alternativas, para proporcionar uma base territorial à Ordem. Ainda
no final do Séc. XVIII, um Bailio alemão sugeriu a fusão daquela Ordem com a
Teutónica (como, séculos antes, se havia ponderado uma fusão do Templo e do
Hospital), a sua instalação em Ilha adriática pertencente aos Habsburgos e a
criação de uma Língua Russa, aberta aos gregos desejosos de lutar contra o
Império Otomano.
Em Novembro
de 1807, o Príncipe Regente, a Família Real e grande parte do escol dirigente
partem para o Brasil, quando as tropas invasoras napoleónicas já tinham entrado
em Território português. Nove anos antes, ao ocupar Malta, Napoleão não quisera
aprisionar os Cavaleiros, que preferiu expulsar. Agora, Junot via frustrada a
sua intenção de aprisionar o Príncipe Regente, colocando-o numa posição
idêntica à de Carlos IV e do futuro Fernando VII de Espanha. Napoleão não
abolira a Ordem de Malta, mas esta, sem Território e desestruturada, mantinha
apenas uma sombra da sua Soberania. Napoleão podia decretar que a Casa de
Bragança deixava de governar pois, no Brasil, o Príncipe Regente mantinha a
base territorial da Soberania portuguesa.
Com a queda
de Napoleão, o Congresso de Viena ocupou-se em reorganizar a Europa. Portugal
teve uma participação condigna naquele encontro, admitido no círculo das oito
principais Potências. Já a ordem de Malta não conseguiu fazer ouvir a sua voz.
Apresentou um memorial aos Soberanos e Plenipotenciários, no qual figura a seguinte
passagem: ”Tendo a Ordem sempre beneficiado da alta protecção do Príncipe
magnânimo que governa Portugal, podemos recear a perda das Comendas que foram
conservadas pelo Priorado com tanto zelo e vigilância?” É confiança que se
exprime, mas não isenta de dúvida. Com modéstia, afirma-se, no documento, que
não cabe à Ordem, mas aos Soberanos, designar o local dum futuro
estabelecimento, mas adianta-se que não deveria ser muito longe do centro do
Mediterrâneo, ter um porto seguro e capaz de acolher todos os navios, bem como
espaço para um arsenal, um lazareto, uma igreja, um hospital “ essência da
nossa instituição”. Acrescentava ainda: “A Ordem não pede grandes coisas, mas o
estabelecimento tem de ser independente e livre”.
Dois protagonistas do Congresso de Viena, Metternich
e Talleyrand, tinham planos relativamente à Ordem de Malta. O primeiro sugeria
que lhe fosse dada a Ilha de Elba, mas punha a condição de os Habsburgos terem
o direito de nomear os Grão-Mestres. Já Talleyrand, nas instruções que redigiu
para os Embaixadores franceses ao Congresso, afirmava que seria honroso, para a
Inglaterra, juntar-se às Potências católicas, para obter uma reparação para a
Ordem, à qual se “poderia atribuir Corfu, sem comprometer os interesses de
nenhum Estado da Cristandade”. Mas, nem no Congresso de Viena nem, anos depois,
no de Verona, a Ordem de Malta haveria de conseguir obter uma base territorial.
Em 1823, no
quadro da luta dos gregos pela independência, houve um projecto, de contornos
pouco claros, visando restabelecer a Ordem na sua antiga posse sobre Rodes.
Chegou a haver diligências e negociações, mas a iniciativa acabou por
fracassar.
Em 3 de
Julho de 1821, chamado pela Revolução Liberal, D. João VI estava de volta a
Portugal, deixando seu filho D. Pedro no Brasil.
Por cartas
de Janeiro de 1824, dirigidas ao Marquês de Palmela, Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Frei António Busca, Lugar-Tenente do Grão-Mestrado, oferece ao
Rei e ao Infante D. Miguel, futuro Grão-Prior do Crato, a Grâ-Cruz da Ordem, em
sinal de regozijo pelo regresso do Brasil da Família Real. D. João, que um
quarto de século antes, declinara ostentar a Grã-Cruz de Malta, invocando
motivos políticos, recebia-a, agora, a 12 de Janeiro, em cerimónia no Palácio
da Bemposta. Mas, diferentemente do que ocorrera, em Dezembro de 1799, com D.
Pedro, a insígnia não pôde, nesta ocasião, ser entregue a D. Miguel, que se
encontrava em Viena, no seu primeiro exílio.
D. João VI
faleceu naquele mesmo Palácio, a 10 de Março de 1826, muito provavelmente
vítima de envenenamento. Vivera no ocaso do Antigo Regime, do qual, ele
próprio, em certa medida, era também a imagem. Tendo reinado em dois
Continentes, atravessou duas vezes o Atlântico, algo que, jamais, nenhum
Monarca europeu fizera. E, entre todos os Reis portugueses, foi o único a ter
sido, no decurso da sua vida, Rei absoluto e Monarca constitucional. Grão-Prior
do Crato, seguiu atentamente as vicissitudes da Ordem de Malta, num período
atribulado.
Seus filhos,
D. Pedro e D. Miguel, que também assumiram a dignidade de Grão-Prior do Crato
(VII), também reinaram, um como Monarca constitucional, o outro como Rei
absoluto. Uma guerra civil, duplamente fratricida, dividiu o País e, só no
final dela, se pôde considerar abolido, definitivamente, o Antigo Regime, em
Portugal. Em Junho de 1834, D. Miguel parte para o segundo exílio, menos de
quatro meses depois, falecia D. Pedro IV. No quadro do Decreto de 30 de Maio
desse ano, que extinguia as Ordens Religiosas, o Grão-Priorado do Crato fora
abolido e, até ao fim do século, não haveria presença da Ordem de Malta em
Portugal.
Mas, nesse
mesmo ano, 1834, a Ordem de Malta fixava a sua Sede em Roma, onde ainda hoje se
encontra, em instalações que beneficiam da extra-territorialidade. Terminava,
assim, a errância que, desde 1798, levara a Ordem, de Malta, a Trieste e S. Petersburgo,
Messina, Catânia e Ferrara. Era também o termo de uma peregrinação, começada em
Jerusalém quase 800 anos antes Despida do carácter militar que, durante
séculos, assumira tão gloriosamente, a Ordem regressava ao seu propósito
inicial, humanitário, ao serviço dos pobres e dos doentes.
* * * * *
(I) Por uma aparente ironia, não incluo, neste
número, aquele que ficou, na História Portuguesa, como “o” Prior do Crato, D.
António, sendo a razão para tal a circunstância de não ser consensualmente
reconhecido como Rei de Portugal.
(II) A
designação oficial é, actualmente, Ordem Soberana Militar Hospitalária de S.
João de Jerusalém, de Rodes e de Malta.
(III) Outros
cargos eram os de Grão-Preceptor (Provença), Grão-Marechal (Auvergne), Grande
Hospitalário (França), “Drapier” (Aragão), Almirante (Itália), “Turcopilier”
(Inglaterra), Grão-Bailio (Alemanha).
(IV) Gáfete,
Sertã, Amieira, Proença-a-Nova, Cardigos, Oleiros, Belver, Envendos, Gavião,
Tolosa, Carvoeiro e Pedrogão Pequeno.
(V)
Designadamente Leça (Bailiado), Vila Cova, Oliveira do Hospital, Vera Cruz e
Portel, Oleiros, Santa Eulália da Ordem, Águas Santas, Chavão, Ansemil,
Sernancelhe, Barrô, Frossos e Rossas, Rio Medo, Alvações, Freixiel, Abreiro,
Moura Morta, Elvas e Montoito, Fontes, Trancoso.
Num trabalho
recente, de António Brandão de Pinho, reproduzem-se 87 Brasões autárquicos, nos
quais figura a Cruz de Malta, o que ilustra bem a implantação que os
Hospitalários alcançaram no Território português.
(VI) Os
membros do Grão-Priorado, conforme vejo numa relação da altura, seriam 74,
provenientes sempre de famílias com poder e influência. O seu número deveria
ser mais ou menos constante, pois, da leitura de outras listas, verifica-se
que, entre 1692 e 1775, quase 100 portugueses terão sido admitidos na Ordem de
Malta.
(VII) Devo
ao meu caro Colega e Amigo Dr. Paulo Santos, actualmente Conselheiro na nossa
Missão junto da ONU e, anteriormente, na Embaixada em Moscovo, o ter chamado a
minha atenção para esta publicação.
(VIII) Há
alguma indefinição quanto às datas em que D. Pedro e D. Miguel foram
Grão-Priores do Crato. Como vimos, D. Pedro foi investido naquela dignidade a
14 de Dezembro de 1799. Na capa interior da “Lista dos Cavalleiros, Freires
Capellães Conventuais e Serventes D’Armas do Venerando Priorado de Portugal”,
de 1800, figura um retrato do “Sereníssimo Senhor Infante D. Pedro, Grão-Prior
do Crato”. A “Nova História da Militar Ordem de Malta e dos Senhores
Grão-Priores della em Portugal”, de José Anastácio de Figueiredo, também de
1800, porém, é “oferecida a S.A.R. o Grão-Prior actual, o Príncipe Nosso
Senhor”, isto é, o Príncipe Regente; mas D. João seria, mais propriamente,
Administrador do Priorado, dada a menoridade de D. Pedro.
A “Dissertação
Histórico-Jurídica sobre os Direitos e Jurisdições do Grão-Priorado do Crato”,
de 1809, da autoria de Pascoal José de Melo Freire, contém uma passagem, pelo
menos, que aponta noutro sentido: ”mas o Príncipe Nosso Senhor conhecendo que a
ele só, como Grão-Prior na menoridade de S.A.R. o Sereníssimo Senhor Infante D.
Miguel, a quem Deus prospere (…)”. Haveria plausibilidade para tal afirmação –
com a morte de seu irmão mais velho, D. António, em 1801, D. Pedro tornou-se
Príncipe Herdeiro. A seu irmão D. Miguel, nascido em 1802, caberia a
titularidade da Casa do Infantado e do Grão-Priorado, mas tal não se teria
concretizado, em 1809, pelo que haveria um lapso na obra (aliás póstuma, de
Pascoal de Melo).
Dois
documentos de 1821, das Cortes Gerais, saídas da Revolução do ano anterior,
afiguram-se relevantes:
Num debate,
a 9 de Maio, um Deputado, que teve conhecimento que, nesse dia, iria ter lugar
uma reunião do Grão-Priorado do Crato, no Paço da Bemposta, pretende que seja
impedida a sua realização, ainda que a mesma contasse com autorização “de S. Majestade
e do Sereníssimo Príncipe, o Senhor D. Pedro, Grão-Prior do Crato” (a votação
não vai nesse sentido).
A 7 de
Julho, escassos dias após o regresso de D. João VI a Lisboa, as Cortes aprovam
o Decreto nº 103, cujo art.º 6 estipula “Continuará El-Rei no Administração da
Casa do Infantado, consignando ao Sereníssimo Senhor Infante D. Miguel as
mezadas que julgar convenientes”. Estariam, nesse momento dissociadas as duas
titularidades, D. Pedro com o Grão-Priorado, D. Miguel com a Casa do Infantado.
D. João VI manteria a Administração desta última, ou talvez de ambas, mais provavelmente, ainda, no que toca ao Grão-Priorado, quando D. Pedro decidiu ficar no Brasil e quando, pouco depois, D. Miguel partiu para Viena, no seu primeiro exílio. D. Miguel veio a assumir ambas as titularidades, após a morte de seu pai, em 1826, e até ao final do seu Reinado, em 1834.
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