segunda-feira, 5 de março de 2018

A VIDA SEXUAL EM MARROCOS




Por mero acaso, veio parar-me às mãos, literalmente, o livro da escritora marroquina Leila Slimani, Sexe et Mensonges - La vie sexuelle au Maroc (2017). Trata-se da recolha de depoimentos de 15 mulheres e um homem marroquinos, sobre os constrangimentos da vida sexual no país.

Devido às pressões sociais, à opressão religiosa e também à legislação civil, a actividade sexual fora dos limites impostos pelas regras sócio-religiosas é uma falta grave, um pecado, ou um crime. O status estabelece que os actos sexuais só devem ter lugar dentro do casamento, donde as relações extra-conjugais, a homossexualidade feminina e masculina e o aborto serem actos penalizados.

É evidente que as transgressões estão generalizadas, nomeadamente entre os homens mas também entre as mulheres, em especial nas gerações mais novas. Não se está a ver os rapazes marroquinos guardarem castidade até ao casamento, e para muitas raparigas dos nossos dias as relações começam bem novas, excluindo algumas vezes a conclusão normal, por receio de não chegarem virgens ao casamento, o que introduz uma desclassificação social imediata. Quantos hímens não são reconstruídos, o que se tornou também num negócio. A dificuldade de acesso às mulheres leva os homens à homossexualidade (que é muito natural no mundo árabe) e ao recurso à prostituição feminina, à violação, a casamentos arranjados pelas famílias. Curiosamente, os pregadores islâmicos não condenam a masturbação feminina e masculina, considerando-a preferível à prática de outros actos. Neste universo de tabus, floresce também a prostituição masculina, ainda que a autora se debruce quase exclusivamente sobre as mulheres. O único homem entrevistado é um polícia, e neste caso não se trata de recolher a sua experiência sexual mas de registar as suas declarações enquanto agente da autoridade.

Deve dizer-se que o livro é bastante repetitivo, quer pela forma como está organizado, quer pela pouca originalidade das entrevistas. Não conheço o resto da obra de Leila Slimani, que tem 36 anos, tendo-se tornado conhecida por ter sido galardoada em 2016 com o Prémio Goncourt pelo livro Chanson douce.

Uma conclusão apontada por Slimani, e essa é bem real, é que a vida sexual em Marrocos é caracterizada pela hipocrisia e que quase tudo se pode fazer desde que às escondidas, sendo mais fácil para as pessoas de estatuto social médio ou alto e nomeadamente para os homens. E que o suborno às polícias é uma prática corrente, ainda que nem sempre bem sucedido. Mas é pena que a autora não tenha entrevistado tantos homens quanto mulheres para ficarmos com um panorama equilibrado, pois assim obtemos uma visão parcial de um problema global. Leila Slimani preferiu cavalgar a onda feminista.

A autora salienta as pregações dos fundamentalistas, como a de Abdellah Nhari, imam em Oudja, que apelou ao assassínio do jornalista Mokhtar Laghzioui que se exprimiu numa cadeia de televisão a favor da liberdade sexual. E para ilustrar a hipocrisia dos próprios dirigentes religiosos cita o caso de Fatima Nejjar (62 anos) e de Moulay Omar Benhammad (63 anos) que foram encontrados num velho Mercedes, perto de uma praia de Mohammedia, em evidente prática sexual. Uma situação como esta, que acontece todos os dias em Marrocos, teve o aspecto insólito de ambos os participantes serem figuras respeitadas do Movimento da Unicidade e Reforma (MUR), ramo ideológico do PJD (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), no poder, e ambos combaterem tenazmente o vício e a depravação. O caso, apesar das tentativas para o abafar, provocou o maior gozo no país.

O Código Penal marroquino prevê no seu artigo 489º que toda a «conduta tendenciosa ou contra natura entre duas pessoas do mesmo sexo é punida de seis meses a três anos de prisão.» E o artigo 490º estabelece «a prisão de um mês a um ano para todas as pessoas de sexo diferente que, não estando unidas pelos laços do casamento, tenham entre si relações sexuais.» O artigo 491º dispõe que «qualquer pessoa casada convicta de adultério» arrisca um a dois anos de prisão. Se estas disposições fossem cumpridas rigorosamente, pelo menos metade da população marroquina estaria na cadeia.

O mundo árabe sempre celebrou o sexo, como se comprova não só pela história dos costumes como pela abundante literatura erótica, uma das riquezas da civilização islâmica. É curioso que uma visão puritana do islão começou com o declínio intelectual e politico e com a colonização ocidental. Curiosamente, o artigo 489º do Código Penal marroquino, que reprime a homossexualidade, é uma cópia exacta do antigo artigo 331º do Código Penal francês, abolido em 1982. E a condenação da homossexualidade nas ex-colónias britânicas é um resquício da legislação puritana vitoriana que a independência dos países não revogou.

Este livro não acrescenta propriamente novidades às pessoas que conhecem razoavelmente o Marrocos, antes confirmando a ideia existente. Tem o mérito de ser escrito por uma marroquina, embora já hoje bastantes pessoas no país denunciem uma situação pouco sadia, onde a vida diária é alicerçada sobre mentiras no que toca ao sexo. A autora refere os trabalhos de alguns escritores árabes em que a matéria é tratada cientificamente.

Julgo, contudo, que a inversão deste estado de coisas não é possível a curto prazo, porque mesmo um abrandamento da repressão legal não impediria a censura social (cultural) que só o tempo poderá alterar. Ainda que nos últimos anos se tenham registado alguns progressos, como, por exemplo, a possibilidade de discussão pública de matérias ligadas ao sexo.


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