terça-feira, 27 de março de 2018

D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME (II)





Continuação do texto da conferência do embaixador Fernando Ramos Machado, na Sociedade de Geografia, no passado dia 20 de Março:



Mas a entrada em cena do então ainda apenas General Napoleão Bonaparte, veio alterar dramaticamente a situação e trazer novas e sérias ameaças para a Ordem de Malta. Napoleão não tinha nenhuma simpatia pela Ordem, tendo-a descrito como “uma instituição para dar apoio, na ociosidade, aos filhos mais jovens das famílias privilegiadas”; por outro lado, tinha perfeita consciência do valor estratégico da Ilha. 

Ao tomar conhecimento da Convenção entre a Ordem e a Rússia, que podia ser vista como um acto hostil para com a França (tenha-se presente que o futuro Luís XVIII e a sua Corte haviam encontrado acolhimento em Mittau, nos Estados do Czar) Napoleão ordenou, em Abril de 1797, o sequestro das Comendas da Ordem de Malta nas regiões de Itália que as suas tropas então ocupavam, assim agravando, ainda mais, a situação financeira da Ordem.

O Grão-Mestre Emmanuel de Rohan morre em Julho de 1797, sendo eleito, para lhe suceder, Ferdinand von Hompesch, o primeiro alemão a ascender àquela dignidade. Para exprimir o agradecimento da Ordem, perante a generosidade de Paulo I, ofereceu-lhe o título de Protector, que o Czar aceitou, a 10 de Dezembro de 1797.

Em Junho de 1798, uma esquadra francesa, em rota para o Egipto, chega à Ilha de Malta, atacando as posições da Ordem, a qual, a 12, se rende a Napoleão, sem praticamente ter oposto resistência. Hompesch parte para Trieste No momento da rendição, estavam na Ilha 362 Cavaleiros, dos quais 260 franceses; portugueses seriam, apenas, 8. Alguns Cavaleiros regressam aos seus Países, incluindo 77 franceses, 17 acompanham Hompesch, 53 alistam-se para a expedição ao Egipto, outros acolhem-se aos Estados do Czar. Uma guarnição francesa fica a ocupar Malta.

Quando chega a S. Petersburgo a notícia da queda de Malta, os membros do Grão-Priorado Russo exprimem a sua indignação, decretando, a 26 de Agosto de 1798, a destituição de Hompesch, convidando os outros Priorados a aderir a esta decisão.

Finalmente, a 7 de Novembro do mesmo ano, o Czar vê satisfeito o sonho que há muito acalentava: todos os Cavaleiros presentes em S. Petersburgo elegem-no Grão-Mestre da Ordem de S. João de Jerusalém. Pela primeira e única vez na História, um Soberano tornava-se também Grão-Mestre da Ordem de Malta. Um mês depois, criou, ao lado do já existente Grão-Priorado Russo, católico, um novo, ortodoxo ou, mais propriamente, não católico.

 
La Valetta vista do mar

A eleição de Paulo I foi, manifestamente, ilegal, já que o Czar era leigo, casado e ortodoxo. Além disso, o Papa não fora consultado e Hompesch, em Trieste, não se demitira; acabou por fazê-lo só a 6 de Julho de 1799, forçado pelo Imperador Germânico, Francisco II, de quem, em última análise, era súbdito e para quem as relações com Paulo I se revestiam da maior importância.

O Papa, literalmente prisioneiro dos franceses, mal podia fazer ouvir a sua voz. A generalidade dos Soberanos não desejaria desagradar ao poderoso Czar de Todas as Rússias. Apenas do lado da Corte de Madrid, terá havido objecções, e não deixa de ser extraordinário que a Rússia, em 1800, no quadro das negociações visando a pôr termo às Guerras da Segunda Coligação, tenha exigido à França que lhe fosse garantida a posse de Malta e que a Espanha fosse persuadida a reconhecer o Grão-Mestrado de Paulo I.

Mas, ao nível dos Priorados propriamente, os Cavaleiros encontravam-se divididos, perante o evoluir dos acontecimentos. Alain Blondy, a grande autoridade sobre este Período, resume assim a situação: um forte Partido, dirigido pelo Cardeal-Decano Albani e agrupando os italianos, os espanhóis e os portugueses, recusou reconhecer o Mestrado dum cismático, atrás do qual se alinhavam os alemães, os bávaros e os franceses próximos de Luís XVIII. A iniciativa (…) de Paulo I conduzia a um grave cisma na Ordem. Os Cavaleiros dos Países do Sul rejeitavam um pretenso Grão-Mestre, que afastava deles a Sede da Ordem.

Portugal, porém, encontrava-se numa posição única: A 10 de Fevereiro de 1792, perante a demência que afectava D. Maria I, D. João assume a regência, embora em nome de sua mãe, até 15 de Julho de 1799, quando se torna Regente, em nome próprio. Cabe-lhe, de facto, a governação do Estado e, cumulativamente, mantém-se como Grão-Prior do Crato.

Voltando ao artigo fundamental de Maria Inês Versos, pode ler-se: “É assim que no momento de impasse criado pelos interesses dos imperadores russos, aos quais a Rainha D. Maria I e o Príncipe D. João tinham manifestado a sua solidariedade, os membros do Priorado de Portugal afirmam perante o Regente o seu apoio aos defensores do antigo Grão-Mestre Hompesch e a sua contestação perante os actos ilegais dos ditos imperadores”. (VI)

 
Castelo da Ordem de Malta, em Rhodes

Ora, do primeiro volume, de 2004, da publicação do MNE “Relações Diplomáticas Luso-Russas – Colectânea Documental Conjunta” (VII) constam alguns documentos de grande interesse para compreender esta matéria. Conjugados com outras informações, mostram-nos uma certa duplicidade de D. João, justificada pela situação. Duplicidade, aliás, a que Diplomacia portuguesa, para preservar a independência do Reino, se via também obrigada a recorrer, na mesma época, ao manobrar entre as pressões inglesas e as ameaças francesas.

Como curiosidade, veja-se que, a 27 de Dezembro de 1798, na assinatura do Tratado de Amizade, Navegação e Comércio entre os dois Países, um dos Plenipotenciários russos, o Chanceler, Príncipe Bezborodko, ostenta, entre os seus títulos, o de Grã-Cruz da Ordem de S. João de Jerusalém, isto menos de dois meses após a eleição do Czar como Grão-Mestre e imediatamente após a criação do Grão-Priorado não-católico.

Por despacho de 6 de Janeiro de 1799, o Secretário de Estado Luís de Sousa Coutinho transmite ao nosso Ministro em S. Petersburgo, Francisco José de Horta Machado, cópia da nota que escreveu ao Ministro da Rússia em Lisboa:

“Levei à Real presença de Sua Majestade o ofício de Vossa Senhoria, em data de 24 de Dezembro, com a declaração de sua Majestade Imperial de todas as Rússias, a respeito da Ordem de Malta, datada de 10 de Setembro. A Rainha Fidelíssima viu com a maior complacência o generoso interesse que sua dita Majestade se digna manifestar a respeito de uma Ordem ilustre, infeliz e oprimida, tomando-a debaixo da sua protecção, e Sua Majestade Fidelíssima, seguindo um tão glorioso exemplo, oferece ao ilustre Priorado de Portugal igual protecção nos seus Estados, esperando que um resultado feliz de circunstâncias possa restabelecer a Ordem de Malta na sua antiga independência e unidade e na posse daqueles domínios que lhe foram tão injustamente usurpados “.
  
Ao transmitir esta resposta, que afasta, com elegância mas claramente, que a “protecção” de Paulo I abranja o Priorado do Crato, o Secretário de Estado acrescenta, para exclusivo conhecimento do nosso representante em S. Petersburgo, que:

"Não devo porém omitir (…) o quanto pareceu aqui estranho que um único Priorado da Ordem se arrogasse a autoridade de depor o seu chefe, sem o concurso dos outros e sem que fosse citado ou ouvido para defender a sua causa”.

A Corte de Lisboa teria, pelo menos, dúvidas quando ao comportamento de Paulo para com a Ordem de Malta, e isto sem ter ainda conhecimento da sua eleição para o cargo de Grão-Mestre, embora a mesma já tivesse ocorrido há meses. Não quer, contudo, pôr em risco a aproximação que, desde há algum tempo vinha fazendo à Rússia, como mostra o Tratado de Amizade, Navegação e Comércio, já mencionado; adopta, pois, uma atitude prudente.

Entretanto, ao longo de 1788, depois de ter tido de abandonar Malta, Hompesch, na qualidade de Grão-Mestre e, em várias ocasiões, escrevera a D. Maria I e a D. João, pedindo, designadamente, que protestem contra a invasão da Ilha, que sejam enviados três Comendadores para Trieste, onde se encontrava, e que seja dada autorização para utilização de parte dos rendimentos do Grão-Priorado do Crato.

 
Manuel Pinto da Fonseca

A 19 de Maio de 1799, o Czar envia instruções extensas e detalhadas ao seu Ministro em Lisboa; quase no final, lê-se:

“Vossa Excelência sabe do Nosso interesse que sempre manifestámos pela Ordem de S. João de Jerusalém e ainda mais agora, desde que consentimos em aceitar o título de Grão-Mestre (…). Não queremos que Vossa Excelência intervenha, sem obter a Nossa autorização prévia, em quaisquer assuntos que digam respeito a essa Ordem em Portugal, ficando unicamente autorizado a, onde for preciso, interpretar as Nossas ideias e disposições directas, que ficam longe de atentar contra as vantagens ou benefícios de alguém”. 

Prudência, também, por parte de Paulo I.

Na véspera, 18 de Maio de 1799, Hompesch e o Convento interino, em Trieste, haviam aprovado o “Regulamento Provisional”, proposto por D. João, diploma importante, a que voltarei.

A 15 de Julho de 1799, D. João escreve ao Czar, informando-o de que assumiu a Regência em nome próprio. O Príncipe Regente enumera os seus Títulos, que são os dos Reis de Portugal desde D. Manuel e ocupam três linhas na carta; os do Czar ocupam treze linhas, sendo o último deles o de Grão-Mestre da Ordem de S. João de Jerusalém. Desta forma discreta, Lisboa aceitava a pretensão de Paulo I. Por que razão o teria feito? A explicação vem noutro documento.

De um despacho, de 14 de Agosto de 1799, de Luís de Sousa Coutinho para o nosso Ministro em S. Petersburgo, destaco seguinte parágrafo:

“Nas ratificações do Tratado de Comércio, ultimamente concluído entre uma e outra Monarquia (…) não podiam ir todos os títulos do Imperador, por não ser esse nunca o costume desta Secretaria de Estado (…). Porém, na carta que actualmente escreve o Príncipe Regente nosso Senhor ao Imperador da Rússia, observará Vossa Senhoria que se não omitiu de se lhe dar o título de Grão-Mestre de Malta, com cuja circunstância espero ficarão aplanadas todas as dificuldades que sobre essa matéria pudessem ocorrer”.

Assim, os russos teriam exigido, para a ratificação do Tratado de Comércio, que figurasse nele o título de Grão-Mestre de Malta de Paulo I. Invocando (ou pretextando?) a prática habitual, o lado português objectou, mas encontrou um hábil expediente para salvar o Tratado, dando satisfação ao lado russo e utilizando uma via mais discreta (numa carta e não num tratado) para o reconhecimento do título de Grão-Mestre. 

Em Setembro de 1799, na assinatura do Tratado de Aliança Defensiva, um dos Plenipotenciários russos, Conde de Kotschoubey, ostenta o título de Comendador e, outro, o Conde de Rostopsin, os de Grã-Cruz e Grão-Chanceler da Ordem de S. João de Jerusalém. Como se recordará, o cargo de Grão-Chanceler pertencia à Língua de Castela e era exercido, alternadamente, por um português ou por um castelhano…

 
António Manoel de Vilhena

Documento muito relevante é um ofício, de 16 de Novembro de 1799, do Ministro da Rússia, para Paulo I. Refere um encontro com Luís Pinto de Sousa Coutinho, no qual o Secretário de Estado, ao abordar o recém-celebrado Tratado de Aliança Defensiva, exprimiu a apreciação da Corte de Lisboa perante os novos laços de amizade com a Rússia e disse que ela se apressava a reconhecer o Czar como Grão-Mestre da Ordem de S. João de Jerusalém. Sousa Coutinho teria acrescentado que o Prior (provável lapso por Priorado, Prieuré e não Prieur) de Portugal, desunido pelas desordens anteriores de Malta, voltara a juntar-se e responderia, a todo o momento, à notificação oficial que lhe fora feita, pelo Vice-Chanceler.

Num parágrafo que julgo truncado o Plenipotenciário russo menciona, por um lado, as intrigas da Espanha, dos eclesiásticos daqui e os movimentos dos furiosos da cabala francesa e, por outro, a firmeza do Príncipe Regente, que presta homenagem a Paulo I na qualidade de Grão-Mestre, que ele se tinha dignado aceitar para prosperidade pública.

O Conde Maltits tece alguns auto-elogios à forma como geriu esta matéria e informa o Czar que porá aos seus pés as listas dos rendimentos e os nomes de todos os Cavaleiros portugueses.

Pareceria, pois que, em contrapartida do Tratado de Aliança, o lado russo teria conseguido que Portugal lhe desse satisfação no tocante à Ordem de Malta. Mas seria mesmo assim?


 (Continua)

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