Continuação do texto da conferência do embaixador Fernando Ramos Machado, na Sociedade de Geografia, no passado dia 20 de Março:
Mas a
entrada em cena do então ainda apenas General Napoleão Bonaparte, veio alterar
dramaticamente a situação e trazer novas e sérias ameaças para a Ordem de
Malta. Napoleão não tinha nenhuma simpatia pela Ordem, tendo-a descrito como
“uma instituição para dar apoio, na ociosidade, aos filhos mais jovens das
famílias privilegiadas”; por outro lado, tinha perfeita consciência do valor
estratégico da Ilha.
Ao tomar conhecimento da Convenção entre a Ordem e a
Rússia, que podia ser vista como um acto hostil para com a França (tenha-se
presente que o futuro Luís XVIII e a sua Corte haviam encontrado acolhimento em
Mittau, nos Estados do Czar) Napoleão ordenou, em Abril de 1797, o sequestro
das Comendas da Ordem de Malta nas regiões de Itália que as suas tropas então ocupavam,
assim agravando, ainda mais, a situação financeira da Ordem.
O Grão-Mestre Emmanuel de Rohan morre em Julho
de 1797, sendo eleito, para lhe suceder, Ferdinand von Hompesch, o primeiro
alemão a ascender àquela dignidade. Para exprimir o agradecimento da Ordem,
perante a generosidade de Paulo I, ofereceu-lhe o título de Protector, que o
Czar aceitou, a 10 de Dezembro de 1797.
Em Junho de
1798, uma esquadra francesa, em rota para o Egipto, chega à Ilha de Malta,
atacando as posições da Ordem, a qual, a 12, se rende a Napoleão, sem
praticamente ter oposto resistência. Hompesch parte para Trieste No momento da
rendição, estavam na Ilha 362 Cavaleiros, dos quais 260 franceses; portugueses
seriam, apenas, 8. Alguns Cavaleiros regressam aos seus Países, incluindo 77
franceses, 17 acompanham Hompesch, 53 alistam-se para a expedição ao Egipto,
outros acolhem-se aos Estados do Czar. Uma guarnição francesa fica a ocupar
Malta.
Quando chega
a S. Petersburgo a notícia da queda de Malta, os membros do Grão-Priorado Russo
exprimem a sua indignação, decretando, a 26 de Agosto de 1798, a destituição de
Hompesch, convidando os outros Priorados a aderir a esta decisão.
Finalmente,
a 7 de Novembro do mesmo ano, o Czar vê satisfeito o sonho que há muito acalentava:
todos os Cavaleiros presentes em S. Petersburgo elegem-no Grão-Mestre da Ordem
de S. João de Jerusalém. Pela primeira e única vez na História, um Soberano
tornava-se também Grão-Mestre da Ordem de Malta. Um mês depois, criou, ao lado
do já existente Grão-Priorado Russo, católico, um novo, ortodoxo ou, mais
propriamente, não católico.
A eleição de Paulo I foi, manifestamente,
ilegal, já que o Czar era leigo, casado e ortodoxo. Além disso, o Papa não fora
consultado e Hompesch, em Trieste, não se demitira; acabou por fazê-lo só a 6
de Julho de 1799, forçado pelo Imperador Germânico, Francisco II, de quem, em
última análise, era súbdito e para quem as relações com Paulo I se revestiam da
maior importância.
O Papa,
literalmente prisioneiro dos franceses, mal podia fazer ouvir a sua voz. A
generalidade dos Soberanos não desejaria desagradar ao poderoso Czar de Todas
as Rússias. Apenas do lado da Corte de Madrid, terá havido objecções, e não
deixa de ser extraordinário que a Rússia, em 1800, no quadro das negociações
visando a pôr termo às Guerras da Segunda Coligação, tenha exigido à França que
lhe fosse garantida a posse de Malta e que a Espanha fosse persuadida a reconhecer
o Grão-Mestrado de Paulo I.
Mas, ao
nível dos Priorados propriamente, os Cavaleiros encontravam-se divididos,
perante o evoluir dos acontecimentos. Alain Blondy, a grande autoridade sobre
este Período, resume assim a situação: um forte Partido, dirigido pelo
Cardeal-Decano Albani e agrupando os italianos, os espanhóis e os portugueses,
recusou reconhecer o Mestrado dum cismático, atrás do qual se alinhavam os
alemães, os bávaros e os franceses próximos de Luís XVIII. A iniciativa (…) de
Paulo I conduzia a um grave cisma na Ordem. Os Cavaleiros dos Países do Sul
rejeitavam um pretenso Grão-Mestre, que afastava deles a Sede da Ordem.
Portugal,
porém, encontrava-se numa posição única: A 10 de Fevereiro de 1792, perante a
demência que afectava D. Maria I, D. João assume a regência, embora em nome de
sua mãe, até 15 de Julho de 1799, quando se torna Regente, em nome próprio.
Cabe-lhe, de facto, a governação do Estado e, cumulativamente, mantém-se como
Grão-Prior do Crato.
Voltando ao
artigo fundamental de Maria Inês Versos, pode ler-se: “É assim que no momento
de impasse criado pelos interesses dos imperadores russos, aos quais a Rainha
D. Maria I e o Príncipe D. João tinham manifestado a sua solidariedade, os
membros do Priorado de Portugal afirmam perante o Regente o seu apoio aos
defensores do antigo Grão-Mestre Hompesch e a sua contestação perante os actos
ilegais dos ditos imperadores”. (VI)
Ora, do
primeiro volume, de 2004, da publicação do MNE “Relações Diplomáticas
Luso-Russas – Colectânea Documental Conjunta” (VII) constam alguns documentos
de grande interesse para compreender esta matéria. Conjugados com outras
informações, mostram-nos uma certa duplicidade de D. João, justificada pela
situação. Duplicidade, aliás, a que Diplomacia portuguesa, para preservar a
independência do Reino, se via também obrigada a recorrer, na mesma época, ao
manobrar entre as pressões inglesas e as ameaças francesas.
Como
curiosidade, veja-se que, a 27 de Dezembro de 1798, na assinatura do Tratado de
Amizade, Navegação e Comércio entre os dois Países, um dos Plenipotenciários
russos, o Chanceler, Príncipe Bezborodko, ostenta, entre os seus títulos, o de
Grã-Cruz da Ordem de S. João de Jerusalém, isto menos de dois meses após a
eleição do Czar como Grão-Mestre e imediatamente após a criação do
Grão-Priorado não-católico.
Por despacho
de 6 de Janeiro de 1799, o Secretário de Estado Luís de Sousa Coutinho
transmite ao nosso Ministro em S. Petersburgo, Francisco José de Horta Machado,
cópia da nota que escreveu ao Ministro da Rússia em Lisboa:
“Levei à
Real presença de Sua Majestade o ofício de Vossa Senhoria, em data de 24 de
Dezembro, com a declaração de sua Majestade Imperial de todas as Rússias, a
respeito da Ordem de Malta, datada de 10 de Setembro. A Rainha Fidelíssima viu
com a maior complacência o generoso interesse que sua dita Majestade se digna
manifestar a respeito de uma Ordem ilustre, infeliz e oprimida, tomando-a
debaixo da sua protecção, e Sua Majestade Fidelíssima, seguindo um tão glorioso
exemplo, oferece ao ilustre Priorado de Portugal igual protecção nos seus
Estados, esperando que um resultado feliz de circunstâncias possa restabelecer
a Ordem de Malta na sua antiga independência e unidade e na posse daqueles
domínios que lhe foram tão injustamente usurpados “.
Ao transmitir esta resposta, que afasta, com
elegância mas claramente, que a “protecção” de Paulo I abranja o Priorado do Crato,
o Secretário de Estado acrescenta, para exclusivo conhecimento do nosso
representante em S. Petersburgo, que:
"Não devo porém
omitir (…) o quanto pareceu aqui estranho que um único Priorado da Ordem se
arrogasse a autoridade de depor o seu chefe, sem o concurso dos outros e sem
que fosse citado ou ouvido para defender a sua causa”.
A Corte de
Lisboa teria, pelo menos, dúvidas quando ao comportamento de Paulo para com a
Ordem de Malta, e isto sem ter ainda conhecimento da sua eleição para o cargo
de Grão-Mestre, embora a mesma já tivesse ocorrido há meses. Não quer, contudo,
pôr em risco a aproximação que, desde há algum tempo vinha fazendo à Rússia,
como mostra o Tratado de Amizade, Navegação e Comércio, já mencionado; adopta,
pois, uma atitude prudente.
Entretanto,
ao longo de 1788, depois de ter tido de abandonar Malta, Hompesch, na qualidade
de Grão-Mestre e, em várias ocasiões, escrevera a D. Maria I e a D. João,
pedindo, designadamente, que protestem contra a invasão da Ilha, que sejam
enviados três Comendadores para Trieste, onde se encontrava, e que seja dada
autorização para utilização de parte dos rendimentos do Grão-Priorado do Crato.
A 19 de Maio
de 1799, o Czar envia instruções extensas e detalhadas ao seu Ministro em
Lisboa; quase no final, lê-se:
“Vossa
Excelência sabe do Nosso interesse que sempre manifestámos pela Ordem de S.
João de Jerusalém e ainda mais agora, desde que consentimos em aceitar o título
de Grão-Mestre (…). Não queremos que Vossa Excelência intervenha, sem obter a
Nossa autorização prévia, em quaisquer assuntos que digam respeito a essa Ordem
em Portugal, ficando unicamente autorizado a, onde for preciso, interpretar as
Nossas ideias e disposições directas, que ficam longe de atentar contra as
vantagens ou benefícios de alguém”.
Prudência,
também, por parte de Paulo I.
Na véspera,
18 de Maio de 1799, Hompesch e o Convento interino, em Trieste, haviam aprovado
o “Regulamento Provisional”, proposto por D. João, diploma importante, a que
voltarei.
A 15 de
Julho de 1799, D. João escreve ao Czar, informando-o de que assumiu a Regência
em nome próprio. O Príncipe Regente enumera os seus Títulos, que são os dos
Reis de Portugal desde D. Manuel e ocupam três linhas na carta; os do Czar
ocupam treze linhas, sendo o último deles o de Grão-Mestre da Ordem de S. João
de Jerusalém. Desta forma discreta, Lisboa aceitava a pretensão de Paulo I. Por
que razão o teria feito? A explicação vem noutro documento.
De um
despacho, de 14 de Agosto de 1799, de Luís de Sousa Coutinho para o nosso
Ministro em S. Petersburgo, destaco seguinte parágrafo:
“Nas
ratificações do Tratado de Comércio, ultimamente concluído entre uma e outra
Monarquia (…) não podiam ir todos os títulos do Imperador, por não ser esse
nunca o costume desta Secretaria de Estado (…). Porém, na carta que actualmente
escreve o Príncipe Regente nosso Senhor ao Imperador da Rússia, observará Vossa
Senhoria que se não omitiu de se lhe dar o título de Grão-Mestre de Malta, com
cuja circunstância espero ficarão aplanadas todas as dificuldades que sobre
essa matéria pudessem ocorrer”.
Assim, os
russos teriam exigido, para a ratificação do Tratado de Comércio, que figurasse
nele o título de Grão-Mestre de Malta de Paulo I. Invocando (ou pretextando?) a
prática habitual, o lado português objectou, mas encontrou um hábil expediente
para salvar o Tratado, dando satisfação ao lado russo e utilizando uma via mais
discreta (numa carta e não num tratado) para o reconhecimento do título de
Grão-Mestre.
Em Setembro
de 1799, na assinatura do Tratado de Aliança Defensiva, um dos
Plenipotenciários russos, Conde de Kotschoubey, ostenta o título de Comendador
e, outro, o Conde de Rostopsin, os de Grã-Cruz e Grão-Chanceler da Ordem de S. João
de Jerusalém. Como se recordará, o cargo de Grão-Chanceler pertencia à Língua
de Castela e era exercido, alternadamente, por um português ou por um
castelhano…
Documento
muito relevante é um ofício, de 16 de Novembro de 1799, do Ministro da Rússia,
para Paulo I. Refere um encontro com Luís Pinto de Sousa Coutinho, no qual o
Secretário de Estado, ao abordar o recém-celebrado Tratado de Aliança Defensiva,
exprimiu a apreciação da Corte de Lisboa perante os novos laços de amizade com
a Rússia e disse que ela se apressava a reconhecer o Czar como Grão-Mestre da
Ordem de S. João de Jerusalém. Sousa Coutinho teria acrescentado que o Prior
(provável lapso por Priorado, Prieuré e não Prieur) de Portugal, desunido pelas
desordens anteriores de Malta, voltara a juntar-se e responderia, a todo o
momento, à notificação oficial que lhe fora feita, pelo Vice-Chanceler.
Num
parágrafo que julgo truncado o Plenipotenciário russo menciona, por um lado, as
intrigas da Espanha, dos eclesiásticos daqui e os movimentos dos furiosos da
cabala francesa e, por outro, a firmeza do Príncipe Regente, que presta
homenagem a Paulo I na qualidade de Grão-Mestre, que ele se tinha dignado
aceitar para prosperidade pública.
O Conde
Maltits tece alguns auto-elogios à forma como geriu esta matéria e informa o
Czar que porá aos seus pés as listas dos rendimentos e os nomes de todos os
Cavaleiros portugueses.
Pareceria,
pois que, em contrapartida do Tratado de Aliança, o lado russo teria conseguido
que Portugal lhe desse satisfação no tocante à Ordem de Malta. Mas seria mesmo
assim?
(Continua)
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