domingo, 11 de março de 2018
A BALANÇA DA EUROPA
Carlos Gaspar, especialista de relações internacionais, publicou recentemente A Balança da Europa, onde analisa os acontecimentos verificados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, a grande guerra civil europeia.
Trata-se de uma obra sintética que, todavia, não impede o autor de fazer referências pormenorizadas à evolução política do Velho Continente, aos tratados, alianças, guerras, protagonismos, etc. Sendo evidentemente um europeísta, Carlos Gaspar não se exime a criticar atitudes e decisões erradas e funestas que os políticos europeus assumiram neste longo meio século.
O livro está dividido em quatro capítulos: 1) O fim da Europa; 2) A reconstrução da Europa; 3) A reinvenção da Europa; 4) O declínio da Europa. A quantidade de informação, cronologicamente apresentada, torna esta obra de muito útil consulta para recordar como após a queda do III Reich o continente europeu se organizou para recuperar dos escombros do conflito e para fazer uma barreira ao comunismo soviético que se instalara a leste.
No último capítulo, o autor trata do declínio da Europa, um tema hoje recorrente. Ainda há dias comentei neste blogue o livro de Michel Onfray, Décadence, onde o filósofo francês anuncia o fim da civilização ocidental. Escreve Gaspar que a Guerra Fria terminou duas vezes, a primeira com a queda do Muro de Berlim, a segunda com os atentados contra New York e Washington em 11 de Setembro de 2001. «A queda do Muro anuncia o fim da União Soviética e da divisão bipolar, o "11 de Setembro" antecipa o termo do "momento unipolar" e a reconfiguração da balança entre potências conservadoras e potências revisionistas, onde está em jogo a ordem do internacionalismo liberal que prevalece na primeira década do pós-Guerra Fria.» (p. 119) E mais: «O "terrorismo catastrófico" e a surpresa estratégica - o "11 de Setembro" é comparado a Pearl Harbour - conjugam-se para negar o triunfalismo do "fim da história" e revelar o "revisionismo hegemónico" dos Estados Unidos.» (p. 119). É claro que Carlos Gaspar não comunga da tese de que não houve verdadeiramente qualquer surpresa nestes dois casos. Sobre Pearl Harbour, o académico e ministro francês Alain Decaux, já falecido, afirma no seu livro Nouveaux dossiers secrets de l'Histoire (1967), que Roosevelt teve conhecimento prévio do ataque japonês a Pearl Harbour e não tentou evitá-lo, pois um tal evento seria o pretexto para justificar ao povo americano a sua decisão de entrar na Segunda Guerra Mundial. Quanto ao ataque de 11 de Setembro existe vastíssima literatura sobre o assunto, por exemplo James Gourley ou Thierry Meyssan, em que se afirma que o ataque da Al-Qaida, uma organização chefiada por um antigo agente da CIA, Osama bin Laden, teve lugar com a cumplicidade das autoridades norte-americanas e a própria realidade do evento não correspondeu à forma como foi descrito pela "comunidade internacional". Assim, como em Pearl Harbour, os EUA necessitavam de um acontecimento choque que os habilitasse a conduzir uma intervenção extremamente impopular, mesmo aos olhos de muitos governos europeus, como foi a invasão do Iraque, sob o falso pretexto da existência de armas de destruição maciça. Creio que os americanos se deverão precaver contra estas "habilidades", pois no futuro casos semelhantes dificilmente serão levados a sério.
A rejeição do Tratado Constitucional por franceses e holandeses (2005) é realçada por Gaspar que salienta a Cimeira do G-20, em 2008, sem resultados aparentes quanto aos fins em vista, bem como a intervenção russa na Geórgia, que pretendia (bem como a Ucrânia) entrar na NATO. O Ocidente havia prometido a Yeltsin respeitar os limites da União Soviética e suas zonas de influência, mas rapidamente a NATO (e a União Europeia) se estendeu aos países de Leste e mesmo à Estónia, á Letónia e à Lituânia. Com a invasão da Geórgia, Putin colocou um travão à expansão oriental da Aliança e deixou um claro aviso à Ucrânia. Também em 2008, a falência do Lehman Brothers precipitou uma crise do sistema financeiro internacional, cujas consequências ainda estamos a sofrer. A chamada "Primavera Árabe" de 2010 perturba a já conturbada ordem internacional, com manifestações na Tunísia, Egipto, Iémen, Bahrein, Líbia e Síria, e alguma agitação em Marrocos e na Argélia. O movimento na Tunísia parece ter sido inicialmente espontâneo, mas logo foi aproveitado pelos dirigentes ocidentais para o estenderem a outros países árabes, com apoio em dinheiro, armas e logística. «Os neoconservadores dos dois lados do Atlântico quiseram impor manu militari a democracia no "Grande Médio Oriente", mas nem os Estados Unidos, nem os seus aliados europeus estão preparados para a "Primavera Árabe".» (p. 126)
[Esta obsessão dos Estados Unidos de impor a democracia aos outros, é uma ingenuidade e uma mentira. Em primeiro lugar os EUA estão-se nas tintas, é o termo, para se preocuparem se há ou não democracia nos outros países, o que verdadeiramente lhes importa é impor o capitalismo na sua forma mais crua, e alargar a esfera do imperialismo americano. Aliás, só teoricamente os Estados Unidos são uma democracia; ainda há poucos anos as mulheres e os negros não tinham direito de voto, e com a divisão Republicanos/Democratas (as duas faces d mesma moeda), só conseguem alcançar a Presidência ou os lugares da Administração os candidatos apoiados pelo poder financeiro, que não pelo povo. Depois, a democracia não é coisa que se imponha, ela decorre da evolução política dos países. A ideia peregrina de George W. Bush de levar a democracia ao Iraque, cujo regime os americanos apoiaram activamente durante anos (para lá do embuste das armas de destruição maciça), só se compreende quando se percebe que essa exportação da democracia não passava do apropriamento dos poços de petróleo. Houve até quem escrevesse, por causa da Questão Palestiniana, que o caminho para Jerusalém passava por Baghdad, não me recordo se Robert Kagan, se William Kristol, afirmação que contou com o apoio entusiástico do execrável jornalista português José Manuel Fernandes, então no jornal PÚBLICO. A revolução na Tunísia, que se saldou pela fuga de Ben Ali, provocou as maiores convulsões no país, houve sérias confrontações, o partido islamista Ennhada tentou tomar o poder, facilitaram-se os atentados jihadistas, como no Museu do Bardo e em Sousse, a economia caiu, o turismo quase desapareceu, o desemprego aumentou. Tem havido agora alguns esforços de recuperação, mas a situação continua tensa. Na Líbia, o grande arauto da revolução contra Qaddafi foi o pseudo-filósofo francês e agente sionista Bernard-Henri Lévy, que contou com o apoio de Sarkozy, Obama e Cameron. Como predissera Qaddafi, que acabou assassinado, a Líbia transformou-se num caos, que perdura e abriu caminho à incontrolável emigração em massa não só de líbios mas de gentes do Sahel para a Europa. No Egipto, depois da experiência islamista de Morsi, que sucedeu ao deposto Mubarak, alguma ordem só voltou ao país com o golpe de Estado (neste caso bem aceite pelo Ocidente, devido a interesses estratégicos), do marechal Abdelfattah Al-Sisi, que governa de facto ditatorialmente, com mão muito mais dura do que a de Mubarak. O Iémen continua mergulhado numa profunda guerra civil. Na Síria, Bashar Al-Assad decidiu resistiu, e apesar da interferência de americanos, franceses, ingleses, turcos, sauditas e outros, enfrentou a rebelião de uma chamada oposição civil, rapidamente irmanada com os terroristas do Daesh. Neste duro combate, em que há a lamentar milhões de vítimas, valeu-lhe o apoio de Vladimir Putin (não totalmente desinteressado mas eficaz), do Irão e do Hizb'allah libanês. Uma parte da Síria está destruída - e valha-nos que não se concretizou uma intervenção ocidental formal, como pretendiam Hollande (esse miserável francês que foi presidente da República) e Cameron (um primeiro-ministro britânico abaixo de qualquer suspeita), - destruída materialmente, artisticamente, economicamente mas não moralmente, aguardando a reconstrução do que for possível, já que não se pode ressuscitar os mortos, restabelecer os estropiados físicos e mentais, reconstituir as famílias, restaurar todos os monumentos. E há ainda um longo caminho a percorrer, o da reconciliação nacional, onde talvez o caso da Argélia possa servir de exemplo. É por causa deste descrédito nas supostas democracias ocidentais e nos seus concupiscentes dirigentes que os povos, através de eleições livres se vão distanciando dos partidos do sistema e procurando outras soluções governativas, talvez inencontráveis no quadro dos actuais regimes. Atente-se nas recentes eleições na Áustria, onde Sebastian Kurz, do Partido Popular Austríaco é chanceler e da Itália, onde o Movimento Cinco Estrelas foi agora o partido mais votado, juntamente com a coligação de direita que engloba a Liga (do Norte), a Frente Nacional e os Irmãos de Itália. Mesmo na Alemanha, o novo governo de Angela Merkel é uma solução precária numa situação de um progressivo desequilíbrio das forças tradicionais. Mas vou fechar o parêntese para regressar a Gaspar.]
O autor refere depois a ingerência ocidental, especialmente americana e alemã na Ucrânia, a fuga do presidente Viktor Yanukovych, a farsa da Praça Maidan e a instalação de um poder anti-russo em Kiev que levou o presidente Putin a anexar a Crimeia e a sustentar a secessão da região de Donetsk e Luhansk.
Também o Tratado de Lisboa, de 2007, que substituiu o fracassado Tratado Constitucional, foi rejeitado (2008) pelos irlandeses, tendo de ser repetida a votação em 2009, para obter finalmente aprovação. A táctica da União Europeia é a de ir repetindo votações até ver se consegue decisões favoráveis dos povos. «Com efeito, os projectos originais da Constituição europeia partem do princípio de uma ruptura com o modelo westfaliano que criou o sistema de Estados nacionais. Para Jurgen Habermas, a tendência dominante na conjuntura internacional é a substituição do sistema de Estados por uma constelação global pós-estatal, que deve começar a ser realizada por uma vanguarda, com a unificação da Europa num regime continental. O sistema de Estados é considerado como o responsável pelas guerras que dominam a história europeia, mas a integração torna possível transcender os Estados, "constitucionalizar a balança do poder" e transformar a identidade dos povos da Europa continental, vinculados a um "patriotismo constitucional" pós-nacional. Esse projecto neo-kantiano, embora vinculado à defesa dos valores do direito e da paz, tem afinidades perigosas com a teoria anti-kantiana da ordem hemisférica, enunciada por Carl Schmitt para legitimar o Grossraum europeu do Reich nazi, no triplo sentido em que se propõe edificar uma ordem regional pós-westfaliana na Europa continental, que exclui a Grã-Bretanha e se opõe à hegemonia dos Estados Unidos. O projecto europeu de Habermas separa-se da tradição schmittiana pela sua subordinação à regra da constituição republicana, pela rejeição da dominação imperialista e pela defesa dos direitos humanos como valores universais. Mas também diverge da visão original de Kant, cuja federação republicana é uma aliança entre soberanos, não uma sociedade pós-estatal e pós-nacional, e cuja definição dos deveres cosmopolíticos se limita à obrigação da hospitalidade para receber refugiados políticos perseguidos pelas autocracias. O projecto kantiano, parte integrante da identidade europeia como uma comunidade republicana liberal, não implica a superação do modelo westfaliano. Para Jean-Marc Férry, a construção de um Estado europeu é a finalidade do projecto de integração como um processo político gradual, que começa com a consolidação de uma aliança de Estados (Staatenbund) para evoluir no sentido de uma união política constitucional entre os Estados membros, sem ter de chegar à formação de um "Estado dos povos" (Volkerstaat), que transcende os Estados nacionais, como defendem os modelos de organização política do espaço continental de Schmitt e de Habermas.» (pp. 134-5)
A crise financeira de 2008, entendida inicialmente como uma crise americana, rapidamente alastra à Europa. A Grécia está na bancarrota, a Irlanda, Portugal e a Espanha correm o risco de lhe seguir o caminho e mesmo a Itália não está imune à crise. No Conselho Europeu de Maio de 2008, Merkel decide que uma troika formada pelo BCE, a Comissão Europeia e o FMI deve decidir as condições do Programa de Assistência à Grécia, cujo resgate é estimado em 110 mil milhões de euros. Os acontecimentos posteriores são do nosso conhecimento. A queda do governo grego, o novo governo do Syriza, a rejeição por este das condições desumanas de austeridade impostas pela troika, o diktat de Berlim [no melhor estilo nazi] e a aceitação final pelo Syriza das condições alemãs, para evitar a saída do euro. A partir daqui começa a desintegração acelerada da Europa potenciada pelas crises nos países árabes e pelo êxodo de milhões de pessoas, convertidas em refugiados. E também pelos atentados na Europa, atribuídos ao fundamentalismo islâmico. Portugal e a Irlanda "beneficiam" também de um programa de assistência da troika com pesadíssimos custos para as populações. O "Brexit", inesperado para muitos, converte-se numa realidade e leva o primeiro-ministro Cameron [um idiota] a demitir-se, sendo substituído por Theresa May [outra idiota]. A eleição de Donald Trump também constitui uma surpresa, pelo menos na Europa, que não no seu próprio país.
O último sub-capítulo do capítulo IV (O declínio da Europa), intitula-se "O fim das ilusões". «Desde o "11 de Setembro", entre o regresso da barbárie com o totalitarismo pan-islâmico e a deriva imperialista norte-americana na guerra sem fim contra o "Eixo do Mal", os limites da tese hegeliana tornam-se evidentes. O modelo ocidental do Estado de direito prevalece contra o nazismo e o comunismo, mas a ordem democrática da sociedade aberta e da economia de mercado é contestada pelos autoritarismos pós-totalitários da Rússia e da China. A comunidade internacional continua a ser uma ficção e as Nações Unidas não só não conseguem garantir a segurança colectiva como continuam subordinadas ao jogo das grandes potências.» (p. 145)
Não discorro sobre os acontecimentos mais recentes referidos por Carlos Gaspar, como a eleição de Macron [uma vitória sobre o vazio dos partidos tradicionais, que em breve se esbaterá], as consequências do "Brexit", a radicalização do Labour, de Jeremy Corbin, as posições "anti-europeias" da Polónia e da Hungria, etc., porque este texto já vai longo.
Termino com a transcrição do último parágrafo: «O declínio da Europa é real, mas não é irreversível se for possível assegurar o empenho dos cidadãos na defesa dos valores ocidentais em que assenta a sociedade dos Estados e a continuidade da balança europeia. As lições da História mostram que "a balança do poder só dura enquanto alguém estiver preparado para correr riscos para a manter, e que a ordem internacional só pode ser assegurada pelos que estão preparados para fazer sacrifícios para a construir e impor.» (p. 158)
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