No passado dia 20 de Março, o embaixador Fernando Ramos Machado apresentou, na Sociedade de Geografia de Lisboa, uma comunicação intitulada "D. João VI e a Ordem de Malta no Ocaso do Antigo Regime". Por se tratar de um assunto de relevante interesse, e dada a inquestionável qualidade da investigação do conferencista, que é também membro da Ordem de Malta, transcrevemos, com a devida autorização, o referido texto, que, dada a sua extensão, será apresentado em três posts sucessivos:
D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO
OCASO DO ANTIGO REGIME
Em 2018,
passam 200 anos sobre a Aclamação, como Rei, de D. João VI no, Rio de Janeiro,
pelo que é apropriado evocar a sua memória. Mas, por que razão, associar D.
João VI e a Ordem de Malta?
D. João VI
presidiu ao ramo português da Ordem de Malta, na sua qualidade de Grão-Prior do
Crato. Dos 34 Reis de Portugal, só quatro foram Grão-Priores do Crato, sendo um
deles D João VI e, dos outros três, um foi seu Pai, D. Pedro III, e, os outros
dois, seus filhos, D Pedro IV e D. Miguel. (I)
Mas esta
situação pessoal, única, não é a principal motivação do presente trabalho.
Portugal e a
Ordem do Hospital, geralmente designada, desde meados do Séc. XVI, como Ordem
de Malta (II) mantêm relações muito antigas e estreitas, tanto bilateralmente,
como sujeitos de Direito Internacional, também pela participação de portugueses
nos Órgãos de Governo da Ordem e, ainda, pela presença da Ordem no Território
português. Ora, durante mais de metade da vida de D. João VI (nasceu em 1767 e
faleceu em1826) tanto o nosso País, como a Ordem, sofreram duramente o impacto
das sequelas da Revolução Francesa, iniciada em 1789, e das Guerras
Napoleónicas. Ambos viram a própria existência ameaçada, mas sobreviveram,
atravessando os anos turbulentos do fim do Antigo Regime e emergindo,
renovados, nos Tempos Modernos. Por outro lado, para além dos choques externos,
também as dinâmicas internas haveriam de alterar as relações entre Portugal e a
Ordem de Malta, neste período e nos anos imediatamente subsequentes.
Mal previa
eu, contudo, que iria ser confrontado com vários pontos obscuros que
precisarão, pelo menos, de mais algum tempo, mais investigação e mais reflexão,
para serem deslindados, tarefas a que me proponho dedicar, e, por agora,
fico-me pelo juntar de alguns factos, mais ou menos conhecidos, contando com a
indulgência dos presentes para com a modéstia deste trabalho.
A presença
da Ordem em Território português é muito antiga, remontando à segunda década do
Séc. XII, sendo anterior, portanto, à Fundação do Reino. Os nossos Governantes
foram fazendo sucessivas concessões aos Hospitalários, a primeira das quais um
mosteiro já construído, em Leça. Foram-se instituindo numerosas Comendas que,
no seu conjunto, integravam o Priorado de Portugal, conhecido comummente, a
partir do Séc. XIV, como Priorado, ou Grão-Priorado do Crato.
A Ordem teve
origem, na segunda metade do Séc XI, em Jerusalém. A Santa Sé, há mais de 900
anos, reconheceu-lhe a independência perante todas as outras autoridades
religiosas e temporais. A partir da conquista de Rodes, em 1310, tornou-se
soberana, qualidade que mantém até aos dias de hoje. Não tendo transferido a
sua Sede para a Europa Continental (diferentemente do que fizeram os Templários
e se lhes tornou fatal) a Ordem do Hospital constituiu, durante séculos, uma
Potência naval de primeiro relevo no Mediterrâneo, combatendo o expansionismo
otomano e os piratas do Norte de África.
De carácter multinacional e supranacional, a
Ordem estruturava-se nas chamadas Nações ou Línguas: França, Provença,
Auvergne, Itália, Alemanha, Inglaterra e Espanha. Esta última subdividiu-se, no
Séc. XV, nas de Aragão (que incluía Navarra) e de Castela (que incluía
Portugal); a de Inglaterra foi suprimida no Séc. XVI, sendo, no final do séc.
XVIII, criada a Anglo-Bávara. A cada Língua cabia, de Direito, um cargo na
estrutura governativa da Ordem, sendo que à de Castela pertencia o de Grão
Chanceler, exercido, alternadamente, por um castelhano e por um português.
(III)
A posição
suprema na Ordem, a de Grão-Mestre, era (e é) electiva e vitalícia. Até ao Séc.
XVIII, apenas dois portugueses exerceram aquela função, e por períodos muito
curtos - Afonso de Portugal, filho natural de D. Afonso Henriques (1202-1206) e
Luís Mendes de Vasconcelos (1622-1623). O Séc. XVIII, contudo, já foi designado
“ O Século português de Malta “. O prestígio alcançado pela participação
portuguesa na Batalha Naval de Matapão, em 1717, terá sido relevante na eleição
de António Manoel de Vilhena, em 1722, como Grão-Mestre da Ordem de Malta, à
frente da qual ficou até 1736, sendo a sua governação objecto de consensual
aplauso. Ainda mais longo e igualmente brilhante, foi o Grão-Mestrado de Manuel
Pinto da Fonseca (1741-1773); foi ele que consolidou os títulos de Príncipe,
Alteza Eminentíssima, e fez encimar o escudo das suas armas com uma coroa
fechada, como a dos Reis. Porém, como por vezes acontece, o pináculo do
esplendor antecedeu, apenas em alguns anos, a ruína da Ordem de Malta.
Entretanto,
em Portugal, e como uma face da centralização do Poder, os Reis tinham
procurado subordinar as Ordens Religiosas Militares, cerceando, drasticamente,
a sua autonomia. Tal processo pode-se considerar concluído, em 1551, no tocante
às Ordens de Cristo, Aviz e Santiago, com a união perpétua dos Mestrados à
Coroa, tornando-se o Rei Governador e Administrador das mesmas. Não teve lugar,
porém, no tocante ao ramo português da Ordem de Malta, por se reconhecer o
carácter “estrangeiro” da mesma. Mas, em todo o caso, não deixaram os Soberanos
de procurar trazer aquele ramo para a sua órbita, designadamente pela
indigitação de familiares seus para o cargo de Prior do Crato. Tal ocorreu em
relação ao Infante D. Luís (o primeiro que se intitulou Grão-Prior), filho de
D. Manuel e irmão de D. João III, e em relação ao filho natural de D. Luís, D.
António, “o” Prior do Crato.
Após a
Restauração, D. João IV instituiu a Casa do Infantado, dotada de um substancial
património, com vista a garantir uma situação financeira mais confortável aos
Filhos Segundos dos Reis. A intenção do Monarca era que o Senhor da Casa do
Infantado acumulasse, com aquela posição, a dignidade de Grão-Prior do Crato. A
indigitação do Infante D. Pedro (futuro Rei D. Pedro II) não foi aceite pelas
instâncias da Ordem. Mas, em 1675, a Santa Sé reconheceu aos Reis de Portugal o
direito de nomear os Infantes Grão-Priores do Crato, sem interferência do
Grão-Mestre; isso veio a concretizar-se com o filho de D. Pedro II, o Infante
D. Francisco (Grão-Prior de 1695 a 1742) e com o Infante D. Pedro, filho de D.
José e futuro Rei D. Pedro III, pelo seu casamento com D. Maria I (Grão-Prior
de 1742 a 1786).
E chegámos,
assim, à altura do nascimento do futuro D. João VI, a 13 de Maio de 1767, em
Queluz. Era filho, pois, da Princesa D. Maria, futura Rainha D. Maria I, e do
Infante D. Pedro, tio dela, Senhor da Casa do Infantado e Grão-Prior do Crato,
futuro Rei D. Pedro III. Em Malta, Pinto da Fonseca reinaria ainda por mais
seis anos e, em Portugal, D José, e o seu poderoso Ministro, por mais dez;
estava-se em pleno Despotismo Esclarecido.
D. João era filho
segundo, não se previa que viesse a reinar; o futuro Soberano deveria ser o
Príncipe D. José, mais velho que ele seis anos. A D. João caberia, entre outros
títulos, os de Senhor da Casa do Infantado e de Grão-Prior do Crato. D. Pedro
III conservou aquelas duas posições, até à morte, em 1786; sucedeu-lhe nelas D.
João, o qual, com a morte de seu irmão, o Príncipe D. José, dois anos depois,
viria a ocupar o primeiro lugar na linha de sucessão ao Trono.
Um
desenvolvimento muito relevante teve lugar então, quanto à situação da Ordem de
Malta em Portugal. O Papa Pio VI, dando satisfação a um pedido formulado por D.
Maria I, decreta (Bula Expedit Quam
Maxime, de 24 de Novembro de 1789) por um lado, a automática acumulação das
posições de Senhor da Casa do Infantado e de Grão-Prior do Crato e, por outro,
que “fique unida e incorporada ao património e Casa do Infantado, acima dita, a
Administração do dito Priorado do Crato”. E, pela Bula Quoniam Ecclesiasticum, de 8 de Janeiro de 1793, confirma a
independência, perante Malta, da Administração do Grão-Priorado do Crato, no
domínio temporal, e declara a sua dependência exclusiva perante a Santa Sé, no
tocante à jurisdição espiritual.
Tem sido
discutido a alcance daquelas medidas, sendo uma das opiniões a de que, com as
decisões papais de 1789 e 1793, “se deu a separação plena e perpétua do
Grão-Priorado do Crato da Soberania da Ordem de Malta”. Mesmo sem este
radicalismo, afirma-se com frequência que o Grão-Priorado do Crato “ficou
independente de Malta e integrado na Casa do Infantado”. A aceitar-se esta
interpretação, não seria compreensível a História das quatro décadas
subsequentes. Ora, para Maria Inês Versos, que estudou este assunto em
profundidade, o braço português da Ordem de Malta foi sempre, formalmente,
reconhecido como parte de uma estrutura internacional. E, quanto à integração,
na Casa do Infantado, da Administração, sublinho, da Administração do
Grão-Priorado, Maria Inês Versos destaca que dizia respeito apenas à Comenda
Prioral, isto é, à Comenda associada à dignidade de Grão-Prior; era
opulentíssima, abrangendo, além da Vila do Crato, doze povoações (IV) mas não
constituía a totalidade do Priorado, o qual compreendia, ainda, mais de uma
vintena de Comendas (V) que continuariam a ser administradas pela Ordem, como
até ali. Contra a tese da separação, refira-se que a Bula Expedit Quam Maxime estipula responsões , isto é, os montantes com
que os ramos nacionais estavam obrigados a contribuir para o Tesouro Comum,
fixando-os em 7.500 Cruzados, em Moeda Portuguesa, por ano, mais 400 mil Reis,
por Annata e Mortorio. E os próprios termos em que a Bula recorda o que se
passara com as Ordens de Aviz e Santiago parecem indiciar que, no tocante à
Ordem de Malta, a solução adoptada era bastante diferente – às decisões de seus
predecessores, quando “separaram as Ordens Militares de Aviz, e de Santiago de
Velles, no Reino de Castela, e concederam perpetuamente a Administração, e
Grão-Mestrado delas, e da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo; aos Reis
de Portugal”, Pio VI contrapõe - “pelo teor das presentes; unimos,
incorporamos, ordenamos e declaramos que fique unida e incorporada ao
Património, e Casa do Infantado, acima dita, a Administração do dito Priorado
do Crato, do referido Hospital”.
Assim,
afigura-se que, nos casos de Aviz e Santiago houvera dois momentos: primeiro,
numa lógica nacional, a separação dos ramos portugueses dos troncos castelhanos
e, depois, em 1551, numa lógica política e financeira, a incorporação dos
respectivos Mestrados na Coroa. No caso da Ordem de Malta, não se verificou um
corte com o Grão-Mestrado, mas a incorporação, e apenas parcial, do património
da Ordem em Portugal na Casa do Infantado.
A Expedit Quam Maxime, de Novembro de 1789
terá produzido algum abalo nas finanças da Ordem. Mas nada teve de comparável
com o processo que, quatro meses antes, começara com a tomada da Bastilha. Para
a Ordem de Malta, a Revolução Francesa teve o efeito de um terramoto e de modo
não circunscrito aos aspectos financeiros. No caso português, o Papa acedera ao
pedido de uma Rainha, devota e Fidelíssima, no sentido de fortalecer a sua
Família, em termos principalmente económicos, no culminar de séculos de
progressiva centralização do poder real. Já em França, a Ordem de Malta sofria
os ataques desferidos pelos revolucionários, contra as instituições de carácter
religioso e/ou aristocrático. A Ordem de Malta era vista como representativa do
Antigo Regime, do Trono e do Altar, como então se dizia. Se o respeito pelo
carácter “estrangeiro” ainda funcionou como travão, durante algum tempo, em
1792 foram-lhe confiscados todos os bens. Foi um golpe quase fatal, pois era em
França que a Ordem de Malta obtinha mais de metade do seu rendimento total. A
urgência de compensar aquela perda iria ter, e a muito curto prazo, sérias
consequências.
A Espanha,
em particular nos tempos de Carlos V e Felipe II, e a França, de Luís XIV e
Luís XV, tinham mantido estreitas relações com a Ordem de Malta, o que era
normal, tratando-se de Potências católicas e bem presentes no Mediterrâneo. Um
parceiro imprevisível iria surgir agora – a Rússia. Para o compreender, há que
recuar alguns anos.
Uma longa
disputa jurídico-política, na Polónia, tivera o seu termo, em 1774, de forma
muito satisfatória para a Ordem de Malta, com a criação de um Grão-Priorado
Polaco. Ora, em 1793, o território em que se situavam estes domínios, Ostrog,
na actual Ucrânia, passaram para a posse da Rússia, nos termos da Segunda Partilha
da Polónia. Para a Ordem, afectada pelas recentes perdas em França, era vital
negociar com S. Petersburgo, para garantir o rendimento das suas propriedades
polacas. Mas Catarina II não mostrou pressa. Albergava possivelmente algum
ressentimento contra a Ordem que, ainda que com habilidade diplomática,
repelira as aproximações da Imperatriz (as primeiras das quais datadas de 1764,
ainda no tempo de Pinto da Fonseca). Catarina procurara arrastar a Ordem de
Malta para uma suposta aliança contra a Turquia (quando o perigo otomano já se
desvanecera) e, sobretudo, pretendera que os navios de guerra russos pudessem
ter direito de entrada permanente no porto de La Valletta. Conseguira, apenas,
que o Grão-Mestre Rohan enviasse a S. Petersburgo, para apoiar tecnicamente a
renovação da Armada russa, o Bailio Giulio Litta, aristocrata lombardo que, com
seu irmão Lorenzo, Núncio em Varsóvia, haveria de desempenhar um papel de
destaque, ainda que mais que controverso, nos acontecimentos que se
seguiram.
Estes viriam
a precipitar-se a grande velocidade, o que, aliado à lentidão das comunicações,
originou não poucos mal-entendidos. Catarina II morreu em Novembro de 1796. A
Ordem terá considerado como uma bênção providencial que lhe sucedesse seu filho
Paulo; diferentemente de Catarina, o novo Czar não teria particular interesse
pela posição estratégica da Ilha, mas, desde muito novo, nutria uma admiração
sem limites pela Ordem de Malta. As negociações, conduzidas, do lado maltês,
pelo Bailio Giulio Litta, concluíram-se de um modo que excedia as expectativas
mais optimistas da Ordem – logo em Janeiro de 1797 é assinada uma Convenção,
pela qual Paulo I reconhece à Ordem a propriedade virtual das suas antigas
possessões polacas, no quadro de um Grão-Priorado russo que criava, com
rendimento anual de 300 mil Florins, isto é, 2,5 vezes superior ao que fora
previsto aquando da constituição do Grão-Priorado polaco. Para o cargo de
Grão-Prior, designa o Príncipe de Condé e nomeia Cavaleiros numerosos emigrados
da Corte do futuro Luís XVIII.
(Continua)
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