terça-feira, 27 de março de 2018

D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME (I)





No passado dia 20 de Março, o embaixador Fernando Ramos Machado apresentou, na Sociedade de Geografia de Lisboa, uma comunicação intitulada "D. João VI e a Ordem de Malta no Ocaso do Antigo Regime". Por se tratar de um assunto de relevante interesse, e dada a inquestionável qualidade da investigação do conferencista, que é também membro da Ordem de Malta, transcrevemos, com a devida autorização, o referido texto, que, dada a sua extensão, será apresentado em três posts sucessivos:



D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME



Em 2018, passam 200 anos sobre a Aclamação, como Rei, de D. João VI no, Rio de Janeiro, pelo que é apropriado evocar a sua memória. Mas, por que razão, associar D. João VI e a Ordem de Malta?

D. João VI presidiu ao ramo português da Ordem de Malta, na sua qualidade de Grão-Prior do Crato. Dos 34 Reis de Portugal, só quatro foram Grão-Priores do Crato, sendo um deles D João VI e, dos outros três, um foi seu Pai, D. Pedro III, e, os outros dois, seus filhos, D Pedro IV e D. Miguel. (I)

Mas esta situação pessoal, única, não é a principal motivação do presente trabalho.

Portugal e a Ordem do Hospital, geralmente designada, desde meados do Séc. XVI, como Ordem de Malta (II) mantêm relações muito antigas e estreitas, tanto bilateralmente, como sujeitos de Direito Internacional, também pela participação de portugueses nos Órgãos de Governo da Ordem e, ainda, pela presença da Ordem no Território português. Ora, durante mais de metade da vida de D. João VI (nasceu em 1767 e faleceu em1826) tanto o nosso País, como a Ordem, sofreram duramente o impacto das sequelas da Revolução Francesa, iniciada em 1789, e das Guerras Napoleónicas. Ambos viram a própria existência ameaçada, mas sobreviveram, atravessando os anos turbulentos do fim do Antigo Regime e emergindo, renovados, nos Tempos Modernos. Por outro lado, para além dos choques externos, também as dinâmicas internas haveriam de alterar as relações entre Portugal e a Ordem de Malta, neste período e nos anos imediatamente subsequentes.

Mal previa eu, contudo, que iria ser confrontado com vários pontos obscuros que precisarão, pelo menos, de mais algum tempo, mais investigação e mais reflexão, para serem deslindados, tarefas a que me proponho dedicar, e, por agora, fico-me pelo juntar de alguns factos, mais ou menos conhecidos, contando com a indulgência dos presentes para com a modéstia deste trabalho.

A presença da Ordem em Território português é muito antiga, remontando à segunda década do Séc. XII, sendo anterior, portanto, à Fundação do Reino. Os nossos Governantes foram fazendo sucessivas concessões aos Hospitalários, a primeira das quais um mosteiro já construído, em Leça. Foram-se instituindo numerosas Comendas que, no seu conjunto, integravam o Priorado de Portugal, conhecido comummente, a partir do Séc. XIV, como Priorado, ou Grão-Priorado do Crato.

A Ordem teve origem, na segunda metade do Séc XI, em Jerusalém. A Santa Sé, há mais de 900 anos, reconheceu-lhe a independência perante todas as outras autoridades religiosas e temporais. A partir da conquista de Rodes, em 1310, tornou-se soberana, qualidade que mantém até aos dias de hoje. Não tendo transferido a sua Sede para a Europa Continental (diferentemente do que fizeram os Templários e se lhes tornou fatal) a Ordem do Hospital constituiu, durante séculos, uma Potência naval de primeiro relevo no Mediterrâneo, combatendo o expansionismo otomano e os piratas do Norte de África.
  
 
D. João VI


De carácter multinacional e supranacional, a Ordem estruturava-se nas chamadas Nações ou Línguas: França, Provença, Auvergne, Itália, Alemanha, Inglaterra e Espanha. Esta última subdividiu-se, no Séc. XV, nas de Aragão (que incluía Navarra) e de Castela (que incluía Portugal); a de Inglaterra foi suprimida no Séc. XVI, sendo, no final do séc. XVIII, criada a Anglo-Bávara. A cada Língua cabia, de Direito, um cargo na estrutura governativa da Ordem, sendo que à de Castela pertencia o de Grão Chanceler, exercido, alternadamente, por um castelhano e por um português. (III)

A posição suprema na Ordem, a de Grão-Mestre, era (e é) electiva e vitalícia. Até ao Séc. XVIII, apenas dois portugueses exerceram aquela função, e por períodos muito curtos - Afonso de Portugal, filho natural de D. Afonso Henriques (1202-1206) e Luís Mendes de Vasconcelos (1622-1623). O Séc. XVIII, contudo, já foi designado “ O Século português de Malta “. O prestígio alcançado pela participação portuguesa na Batalha Naval de Matapão, em 1717, terá sido relevante na eleição de António Manoel de Vilhena, em 1722, como Grão-Mestre da Ordem de Malta, à frente da qual ficou até 1736, sendo a sua governação objecto de consensual aplauso. Ainda mais longo e igualmente brilhante, foi o Grão-Mestrado de Manuel Pinto da Fonseca (1741-1773); foi ele que consolidou os títulos de Príncipe, Alteza Eminentíssima, e fez encimar o escudo das suas armas com uma coroa fechada, como a dos Reis. Porém, como por vezes acontece, o pináculo do esplendor antecedeu, apenas em alguns anos, a ruína da Ordem de Malta.

Entretanto, em Portugal, e como uma face da centralização do Poder, os Reis tinham procurado subordinar as Ordens Religiosas Militares, cerceando, drasticamente, a sua autonomia. Tal processo pode-se considerar concluído, em 1551, no tocante às Ordens de Cristo, Aviz e Santiago, com a união perpétua dos Mestrados à Coroa, tornando-se o Rei Governador e Administrador das mesmas. Não teve lugar, porém, no tocante ao ramo português da Ordem de Malta, por se reconhecer o carácter “estrangeiro” da mesma. Mas, em todo o caso, não deixaram os Soberanos de procurar trazer aquele ramo para a sua órbita, designadamente pela indigitação de familiares seus para o cargo de Prior do Crato. Tal ocorreu em relação ao Infante D. Luís (o primeiro que se intitulou Grão-Prior), filho de D. Manuel e irmão de D. João III, e em relação ao filho natural de D. Luís, D. António, “o” Prior do Crato.

Após a Restauração, D. João IV instituiu a Casa do Infantado, dotada de um substancial património, com vista a garantir uma situação financeira mais confortável aos Filhos Segundos dos Reis. A intenção do Monarca era que o Senhor da Casa do Infantado acumulasse, com aquela posição, a dignidade de Grão-Prior do Crato. A indigitação do Infante D. Pedro (futuro Rei D. Pedro II) não foi aceite pelas instâncias da Ordem. Mas, em 1675, a Santa Sé reconheceu aos Reis de Portugal o direito de nomear os Infantes Grão-Priores do Crato, sem interferência do Grão-Mestre; isso veio a concretizar-se com o filho de D. Pedro II, o Infante D. Francisco (Grão-Prior de 1695 a 1742) e com o Infante D. Pedro, filho de D. José e futuro Rei D. Pedro III, pelo seu casamento com D. Maria I (Grão-Prior de 1742 a 1786).


D. Pedro IV


E chegámos, assim, à altura do nascimento do futuro D. João VI, a 13 de Maio de 1767, em Queluz. Era filho, pois, da Princesa D. Maria, futura Rainha D. Maria I, e do Infante D. Pedro, tio dela, Senhor da Casa do Infantado e Grão-Prior do Crato, futuro Rei D. Pedro III. Em Malta, Pinto da Fonseca reinaria ainda por mais seis anos e, em Portugal, D José, e o seu poderoso Ministro, por mais dez; estava-se em pleno Despotismo Esclarecido. 

D. João era filho segundo, não se previa que viesse a reinar; o futuro Soberano deveria ser o Príncipe D. José, mais velho que ele seis anos. A D. João caberia, entre outros títulos, os de Senhor da Casa do Infantado e de Grão-Prior do Crato. D. Pedro III conservou aquelas duas posições, até à morte, em 1786; sucedeu-lhe nelas D. João, o qual, com a morte de seu irmão, o Príncipe D. José, dois anos depois, viria a ocupar o primeiro lugar na linha de sucessão ao Trono.

Um desenvolvimento muito relevante teve lugar então, quanto à situação da Ordem de Malta em Portugal. O Papa Pio VI, dando satisfação a um pedido formulado por D. Maria I, decreta (Bula Expedit Quam Maxime, de 24 de Novembro de 1789) por um lado, a automática acumulação das posições de Senhor da Casa do Infantado e de Grão-Prior do Crato e, por outro, que “fique unida e incorporada ao património e Casa do Infantado, acima dita, a Administração do dito Priorado do Crato”. E, pela Bula Quoniam Ecclesiasticum, de 8 de Janeiro de 1793, confirma a independência, perante Malta, da Administração do Grão-Priorado do Crato, no domínio temporal, e declara a sua dependência exclusiva perante a Santa Sé, no tocante à jurisdição espiritual.

Tem sido discutido a alcance daquelas medidas, sendo uma das opiniões a de que, com as decisões papais de 1789 e 1793, “se deu a separação plena e perpétua do Grão-Priorado do Crato da Soberania da Ordem de Malta”. Mesmo sem este radicalismo, afirma-se com frequência que o Grão-Priorado do Crato “ficou independente de Malta e integrado na Casa do Infantado”. A aceitar-se esta interpretação, não seria compreensível a História das quatro décadas subsequentes. Ora, para Maria Inês Versos, que estudou este assunto em profundidade, o braço português da Ordem de Malta foi sempre, formalmente, reconhecido como parte de uma estrutura internacional. E, quanto à integração, na Casa do Infantado, da Administração, sublinho, da Administração do Grão-Priorado, Maria Inês Versos destaca que dizia respeito apenas à Comenda Prioral, isto é, à Comenda associada à dignidade de Grão-Prior; era opulentíssima, abrangendo, além da Vila do Crato, doze povoações (IV) mas não constituía a totalidade do Priorado, o qual compreendia, ainda, mais de uma vintena de Comendas (V) que continuariam a ser administradas pela Ordem, como até ali. Contra a tese da separação, refira-se que a Bula Expedit Quam Maxime estipula responsões , isto é, os montantes com que os ramos nacionais estavam obrigados a contribuir para o Tesouro Comum, fixando-os em 7.500 Cruzados, em Moeda Portuguesa, por ano, mais 400 mil Reis, por Annata e Mortorio. E os próprios termos em que a Bula recorda o que se passara com as Ordens de Aviz e Santiago parecem indiciar que, no tocante à Ordem de Malta, a solução adoptada era bastante diferente – às decisões de seus predecessores, quando “separaram as Ordens Militares de Aviz, e de Santiago de Velles, no Reino de Castela, e concederam perpetuamente a Administração, e Grão-Mestrado delas, e da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo; aos Reis de Portugal”, Pio VI contrapõe - “pelo teor das presentes; unimos, incorporamos, ordenamos e declaramos que fique unida e incorporada ao Património, e Casa do Infantado, acima dita, a Administração do dito Priorado do Crato, do referido Hospital”.

Assim, afigura-se que, nos casos de Aviz e Santiago houvera dois momentos: primeiro, numa lógica nacional, a separação dos ramos portugueses dos troncos castelhanos e, depois, em 1551, numa lógica política e financeira, a incorporação dos respectivos Mestrados na Coroa. No caso da Ordem de Malta, não se verificou um corte com o Grão-Mestrado, mas a incorporação, e apenas parcial, do património da Ordem em Portugal na Casa do Infantado. 


D. Miguel


A Expedit Quam Maxime, de Novembro de 1789 terá produzido algum abalo nas finanças da Ordem. Mas nada teve de comparável com o processo que, quatro meses antes, começara com a tomada da Bastilha. Para a Ordem de Malta, a Revolução Francesa teve o efeito de um terramoto e de modo não circunscrito aos aspectos financeiros. No caso português, o Papa acedera ao pedido de uma Rainha, devota e Fidelíssima, no sentido de fortalecer a sua Família, em termos principalmente económicos, no culminar de séculos de progressiva centralização do poder real. Já em França, a Ordem de Malta sofria os ataques desferidos pelos revolucionários, contra as instituições de carácter religioso e/ou aristocrático. A Ordem de Malta era vista como representativa do Antigo Regime, do Trono e do Altar, como então se dizia. Se o respeito pelo carácter “estrangeiro” ainda funcionou como travão, durante algum tempo, em 1792 foram-lhe confiscados todos os bens. Foi um golpe quase fatal, pois era em França que a Ordem de Malta obtinha mais de metade do seu rendimento total. A urgência de compensar aquela perda iria ter, e a muito curto prazo, sérias consequências.

A Espanha, em particular nos tempos de Carlos V e Felipe II, e a França, de Luís XIV e Luís XV, tinham mantido estreitas relações com a Ordem de Malta, o que era normal, tratando-se de Potências católicas e bem presentes no Mediterrâneo. Um parceiro imprevisível iria surgir agora – a Rússia. Para o compreender, há que recuar alguns anos.

Uma longa disputa jurídico-política, na Polónia, tivera o seu termo, em 1774, de forma muito satisfatória para a Ordem de Malta, com a criação de um Grão-Priorado Polaco. Ora, em 1793, o território em que se situavam estes domínios, Ostrog, na actual Ucrânia, passaram para a posse da Rússia, nos termos da Segunda Partilha da Polónia. Para a Ordem, afectada pelas recentes perdas em França, era vital negociar com S. Petersburgo, para garantir o rendimento das suas propriedades polacas. Mas Catarina II não mostrou pressa. Albergava possivelmente algum ressentimento contra a Ordem que, ainda que com habilidade diplomática, repelira as aproximações da Imperatriz (as primeiras das quais datadas de 1764, ainda no tempo de Pinto da Fonseca). Catarina procurara arrastar a Ordem de Malta para uma suposta aliança contra a Turquia (quando o perigo otomano já se desvanecera) e, sobretudo, pretendera que os navios de guerra russos pudessem ter direito de entrada permanente no porto de La Valletta. Conseguira, apenas, que o Grão-Mestre Rohan enviasse a S. Petersburgo, para apoiar tecnicamente a renovação da Armada russa, o Bailio Giulio Litta, aristocrata lombardo que, com seu irmão Lorenzo, Núncio em Varsóvia, haveria de desempenhar um papel de destaque, ainda que mais que controverso, nos acontecimentos que se seguiram.  

Estes viriam a precipitar-se a grande velocidade, o que, aliado à lentidão das comunicações, originou não poucos mal-entendidos. Catarina II morreu em Novembro de 1796. A Ordem terá considerado como uma bênção providencial que lhe sucedesse seu filho Paulo; diferentemente de Catarina, o novo Czar não teria particular interesse pela posição estratégica da Ilha, mas, desde muito novo, nutria uma admiração sem limites pela Ordem de Malta. As negociações, conduzidas, do lado maltês, pelo Bailio Giulio Litta, concluíram-se de um modo que excedia as expectativas mais optimistas da Ordem – logo em Janeiro de 1797 é assinada uma Convenção, pela qual Paulo I reconhece à Ordem a propriedade virtual das suas antigas possessões polacas, no quadro de um Grão-Priorado russo que criava, com rendimento anual de 300 mil Florins, isto é, 2,5 vezes superior ao que fora previsto aquando da constituição do Grão-Priorado polaco. Para o cargo de Grão-Prior, designa o Príncipe de Condé e nomeia Cavaleiros numerosos emigrados da Corte do futuro Luís XVIII.


(Continua)

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