quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O BOTEQUIM DE NATÁLIA




No seu livro recém-publicado O Botequim da Liberdade, Fernando Dacosta regista as suas memórias do convívio com Natália Correia, quer naquele bar, que foi uma das últimas tertúlias de Lisboa, quer em outros espaços de vivências comuns.

O Botequim do Largo da Graça, que Natália criou e onde pontificou, eu diria matriarcou, durante décadas, foi um lugar de convívio cultural, político, social, que marcou, como escreve Dacosta, uma época em que o país assistiu a profundas transformações, a muitas das quais aquele bar (ou os seus clientes) não foi alheio.

A personalidade de Natália Correia, o seu estilo e a sua cultura (que não era superficial como alguns ainda pensam, atendendo aos seus arrebatamentos) imprimiram às noites do Botequim um carácter peculiar que fizeram dele uma referência na noite lisboeta.

Enquanto frequentador do Botequim, embora não tão assíduo como as pessoas que Dacosta menciona no seu livro, tive oportunidade de manter longas e estimulantes conversas com Natália Correia, que me distinguia com a sua amizade. Foi naquele bar que, pouco tempo antes de morrer, ela me ofereceu, com invejável dedicatória, a sua última obra, As Núpcias.


Recordo, com alguma emoção, que uma noite, véspera do meu aniversário, fui ao Botequim com Isabel da Nóbrega. Como sou avesso a parabéns, pedi à Isabel que não referisse a data, pedido que ela, com a melhor das intenções, ignorou. Assim, passada que foi a meia-noite, Natália, que viera sentar-se à nossa mesa, ergueu-se, mandou calar os presentes, anunciou o evento e começou a cantar os "Parabéns a você", no que foi acompanhada por toda a assistência. Depois, ordenou ao empregado que trouxesse uma garrafa de champagne para fazer um brinde. Era assim a Natália, desconcertante na sua generosidade como nos seus ímpetos.

Entre os muitos episódios referidos por Fernando Dacosta, não resisto a citar um caso que, aliás, já conhecia, por me ter sido contado por António Valdemar. Tendo ido pernoitar num hotel do Porto, com o marido (na altura Dórdio Guimarães), o recepcionista disse-lhe que só dispunha de um quarto. Natália recusou (costumava dormir só). O empregado perguntou-lhe então se ela não se importava de dormir com o marido apenas uma noite. Natália retorquiu: «Nem uma noite. O meu é um casamento de cúpula, não de cópula». E conseguiu os dois quartos.

 O livro de Dacosta menciona muitas das inquietações (premonições) dos últimos anos de Natália Correia, enfatizando-as com total oportunidade. Assustava-a a ideia da nossa integração na União Europeia (então CEE), o predomínio do "ter" sobre o "ser", o ultraliberalismo que avançava (e que está a mergulhar o país, e o mundo, no que podemos constatar), o capitalismo selvagem, a degradação da democracia, o império das novas tecnologias, o totalitarismo do dinheiro. Se não tivesse morrido há vinte anos, morreria hoje de espanto, de indignação e de vergonha.

Saúda-se, pois, este novo livro de Fernando Dacosta que não só nos dá um retrato de Natália como nos convoca para uma reflexão sobre o estado a que o país chegou.

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