terça-feira, 30 de agosto de 2011

O AJUSTE DE CONTAS



É conhecida a frase de Lord Acton: «O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente». Quando o poder absoluto é exercido pelo mesmo indivíduo durante quatro décadas, o que supõe que muitas pessoas nasceram, viveram e morreram na vigência do seu regime, esse poder absoluto não só corrompeu o ditador e os seus próceres, como corrompeu o próprio tecido nacional (supondo a existência de uma nação propriamente dita)  ou a consciência de grande parte dos habitantes de um país.

O caso da Líbia é exemplar. Muammar Qaddafi, que se alcandorou ao poder através de um golpe de estado, logrou permanecer durante perto de meio século à testa do regime que criou, menos tempo do que Luís XIV mas mais tempo do que Catarina II, através da criação de um simulacro de democracia directa, que lhe permitiu a perpetuação no poder.

No momento em que o regime do Coronel se desfaz, e as tropas revoltosas marcham sobre Syrte, a sua cidade natal (cite-se, a propósito, o livro de Julien Gracq Le rivage des Syrtes, galardoado com o prémio Goncourt, que Pedro Támen tão bem traduziu para português, mas que nada tem a ver com a Líbia), começou, ou prosseguiu, a hora do ajuste de contas. Na Líbia que foi de Qaddafi, muito poucos estarão absolutamente isentos de qualquer cumplicidade com o regime deposto. Nem poderia ser de outra maneira. A coexistência com o poder vigente era condição sine qua non da existência tout court. Tanto mais imperiosa quanto mais tempo o regime durava. Alguns terão cultivado a indiferença, outros uma cumplicidade distante, a maior parte uma adesão mais ou menos aberta em função dos benefícios recebidos, uma minoria a oposição total. Na hora da verdade, ganharam os que primeiro saltaram da carruagem, independentemente das suas "convicções" anteriores. E as deserções continuaram à medida que se esboroava a fictícia unidade nacional proclamada pelo homem que pretendeu ser o líder do mundo árabe. Os últimos combatentes lutam in extremis para salvar a própria pele.

Num país tribal, de fidelidades complexas e duvidosas, não teria o Coronel qualquer devotado partidário? Com certeza que tinha. E se a maior parte dos que durante os últimos meses defenderam o regime o fizeram mais pelo seu enquadramento militar ou na esperança de um improvável volta-face que lhes garantisse umas quaisquer prebendas, outros houve, e ainda há neste momento, que arriscam tudo na defesa de uma causa perdida, por uma questão de honra, de dignidade ou mesmo de fé. Serão relativamente poucos mas existem.

Conquistada Syrte, uma questão de dias, chegará o final ajuste de contas. Já o celta Brennus, no século IV A.C., proclamou o seu Vae victis (Ai dos vencidos), a propósito dos romanos. Este ajuste de contas terá mais a ver com rivalidades pessoais, com intrigas domésticas, com os desastres da guerra, do que propriamente com questões políticas. Mas é a lei da História.

E as vinganças pessoais serão tão mais violentas e exteriores a um poder judicial (aliás praticamente inexistente) quão  longa foi a vigência do regime. Um poder absoluto de cerca de meio século corrompe um país inteiro e destrói a consciência dos indivíduos. Por muitas razões mas especialmente por ter permitido (e incentivado) a corrosão mental do país, Muammar Qaddafi, se não for julgado pelos homens, enfrentará o julgamento da História.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bem. Convem tambem aplicar os mesmos critérios opinativos a outros casos semelhantes na História recente.