Monumento a Saladino, frente às muralhas da Cidade Velha de Damasco |
A revolta popular contra o regime de Bashar Al-Assad e a consequente repressão governamental, que já provocou mais de mil mortos, revestem-se da maior gravidade, ainda que grande parte da comunicação social a nível mundial não lhes atribua a importância devida, preferindo salientar apenas os aspectos exteriores susceptíveis de criar maior impacto junto do público.
É certo, e sabido, que a república síria, sendo formalmente uma democracia, como o eram a tunisina e a egípcia, é um regime ditatorial e que Bashar "herdou" o poder por morte de seu pai, o presidente Hafez Al-Assad. Também é verdade que o novo presidente, no poder há uma década, empreendeu reformas económicas e sociais, mas o sistema político manteve-se praticamente inalterado. A "primavera de Damasco" não trouxe - nem poderia trazer - o estabelecimento de uma democracia representativa.
Os movimentos de contestação política, iniciados na Tunísia no final do ano passado e que rapidamente se propagaram ao Egipto e a outros países árabes, não poupariam obviamente a Síria, ainda que fosse crível esperar que não se revestissem da violência que têm assumido.
Todos os países árabes são governados de forma mais ou menos autoritária e apesar do triunfo das revoluções na Tunísia e no Egipto, não foi ainda dita a última palavra sobre o desfecho da contestação popular. A Tunísia já adiou as eleições para uma assembleia constituinte e no Egipto a Junta Militar mantém um suspense sobre o evoluir dos acontecimentos. Nem todas as cartas estão jogadas. A situação na Líbia arrasta-se penosamente, com numerosas vítimas, e nem Qaddafi sai nem o Conselho Provisório, apoiado pela NATO, se instala em Tripoli.
O caso da Síria é, todavia, mais complicado. Como, aliás, todo o Médio Oriente, fruto de uma partilha, feita a régua e esquadro pela Grã-Bretanha e a França, de territórios outrora pertencentes ao Império Otomano. Os novos países, criados segundo os interesses ocidentais, retalharam etnias e religiões, dispersaram tribos, dividiram populações. A convivência pacífica na Síria, nos últimos anos, e uma relativa liberdade, é, paradoxalmente, facto da existência de um regime ditatorial que assegura a coexistência de gentes muito diversas. E esse regime funciona sob a direcção da "família" alauita, que não representa mais do que 10% da população do país. A implantação de um regime de eleições livres levaria inevitavelmente à queda do regime.
A contestação coroada de (aparente) êxito na Tunísia, que levou à saaída do presidente Ben Ali, foi o rastilho que incendiou o mundo árabe. Os povos de todos os países decidiram aproveitar a oportunidade, julgando ver chegada a sua hora, mas as coisas não foram, não são, nem serão tão fáceis de resolver, como os mais entusiastas puderam pensar. E as consequências revelar-se-ão pesadas. Além do mais, existem outros actores nestas revoluções que não apenas os povos revoltados, porque ninguém acredita que não haja ingerências estrangeiras nestes movimentos inicialmente espontâneos. Na Líbia, sob o pretexto inicial de uma acção humanitária, a intromissão é por todos visível. Sem prejuízo de sabermos que Qaddafi é o mais antigo líder árabe no poder, o mais imprevisível e o mais opressor.
Regressando ao Médio Oriente, o panorama é desolador. O Iraque, que manteve alguma tranquilidade interna durante o regime de Saddam Hussein (descontando a repressão dos curdos), foi devastado pela invasão anglo-americana e de mais alguns países. O Líbano conheceu nas últimas décadas uma interminável guerra civil, que nada garante não volte a reacender-se. A Jordânia vive um equilíbrio instável. A Palestina continua ansiando por uma independência justa, sucessivamente protelada. A Síria, onde tem reinado um clima de paz nos tempos recentes, arrisca-se a uma confrontação de duração imprevisível e de efeitos devastadores, caso se verifique um desmoronamento do actual regime.
A ideia de "exportar a democracia", tão cara a Bush e ao seu bando, nunca teve por objectivo a instalação da democracia nos países árabes mas sim o estabelecimento de uma economia de mercado ultra-liberal, que teve nos neo-conservadores americanos os mais ardorosos defensores. Samuel Huntington agitara o espantalho do choque de civilizações, Francis Fukuyama achou que a História chegara ao fim, e até o académico Bernard Lewis se prestou para assessorar a administração Bush na invasão do Iraque.
A ideia de "exportar a democracia", tão cara a Bush e ao seu bando, nunca teve por objectivo a instalação da democracia nos países árabes mas sim o estabelecimento de uma economia de mercado ultra-liberal, que teve nos neo-conservadores americanos os mais ardorosos defensores. Samuel Huntington agitara o espantalho do choque de civilizações, Francis Fukuyama achou que a História chegara ao fim, e até o académico Bernard Lewis se prestou para assessorar a administração Bush na invasão do Iraque.
Nem a democracia "à ocidental" se exporta, nem a tradição dos países árabes é compatível com a instalação súbita de um regime tipo norte-americano, isto supondo que os Estados Unidos são uma democracia e não uma oligarquia. O que tem interessado mais recentemente ao Ocidente em geral e a Israel em particular é o retalhar dos países árabes para mais facilmente poderem ser dominados. Além da obtenção de condições mais favoráveis para o espoliar das suas riquezas naturais, nomeadamente o petróleo.
1 comentário:
A questão da Síria é muito complexa. Concordo com a análise do autor do post. Será que queremos uma nova e interminável guerra civil?
Enviar um comentário