terça-feira, 25 de agosto de 2009

UNIÕES DE FACTO

Decidiu o presidente da República devolver à Assembleia da República, sem portanto o promulgar, o decreto da mesma que alterava o regime das "uniões de facto". E acompanhou a devolução, como é regra, de uma mensagem em que explica a sua recusa.

Confesso que, não tendo acompanhado desde o início este conturbado processo, encontro alguma dificuldade em analisar com pormenor os termos do veto presidencial. O que não me impede de tecer alguns comentários sobre a matéria em apreço.

Desde tempos imemoriais que as pessoas vivem, quando as deixam, de acordo com as suas preferências, quaisquer que elas sejam. E nunca o casamento monogâmico, em que assenta largamente a civilização ocidental, impediu que assim fosse, ainda que tivessem de se respeitar as conveniências de uma sociedade dominada pelos preceitos da religião cristã. Não sendo este o lugar para fazer a história das relações de convivência ao longo dos séculos, importa recordar que muita gente do mesmo sexo viveu, de facto, em união, já que não podia casar, sem que essa situação implicasse obrigatoriamente uma relação sexual.

Para ilustrar a afirmação darei apenas um exemplo. Os célebres irmãos Goncourt, Edmond Huot de Goncourt (1822-1896) e Jules Huot de Goncourt (1830-1870), escritores franceses que se notabilizaram na sua época, viveram de facto em "união de facto". E sendo que nutriam mutuamente uma intensa paixão não consta, todavia, que mantivessem relações sexuais. Quando Jules morreu prematuramente com 39 anos, imenso foi o desgosto de Edmond, que ficou conhecido nos salões parisienses como "a viúva". Edmond, depois da morte do irmão, continuou sozinho a escrever o seu Journal, que relata as décadas vividas em comum, e fundou a Academia que tem o seu nome e que atribui anualmente o Prémio Goncourt, o mais alto galardão literário francês e um dos mundialmente mais prestigiados a seguir ao Prémio Nobel.

Também Marguerite Yourcenar sustentava a necessidade de uma forma institucionalizada de relacionamento das pessoas, independentemente do sexo, que lhes permitisse uma vida em comum, dado que o casamento apenas permitia a ligação ao sexo oposto.

Parece, por isso, que o instituto das "uniões de facto", permitindo a vivência comum de pessoas do mesmo sexo ou de sexo diferente, com ou sem relacionamento sexual (isso é matéria do foro íntimo), é necessário para uma mais salutar vida das sociedades contemporâneas. E sendo estas de complexidade crescente, nada mais natural que os interesses de quem pretenda reger-se por esse instituto sejam acautelados a vários níveis, evitando acidentes supervenientes de todo indesejáveis.

Segundo me informam, foi aprovada em Portugal em 1999 uma lei consagrando as "uniões de facto" para pessoas de sexo oposto, uma vez que nem todas as que vivem de facto em união desejam casar. Essa lei foi alargada aos casais do mesmo sexo em 2001. E posteriormente regulamentada em datas que desconheço. Pretendia agora o Governo, ao que julgo, alargar direitos e deveres já legalmente consagrados. Discorda o presidente da República do conteúdo e da oportunidade do diploma. Quanto à oportunidade, teria tido o Partido Socialista há muito tempo ocasião de legislar sobre a matéria, embora a proximidade das eleições não justifique o veto, como também o facto de o casamento de pessoas do mesmo sexo (o que não quer dizer necessariamente casamento de homossexuais) não constar do programa eleitoral do Partido Socialista não justificava a sua oposição ao projecto do Bloco de Esquerda quando este propôs na Assembleia da República a sua consagração legal. Refere depois Cavaco Silva que o projecto tornaria as "uniões de facto" num "para-casamento", "proto-casamento" ou "casamento de segunda ordem". That is the question. Quando em muitos países da Europa e da América o casamento entre pessoas do mesmo sexo está legalizado, Cavaco receia promulgar um diploma que ainda não se chamando casamento, se possa aproximar desse instituto jurídico.

Sendo na civilização ocidental o casamento a união de pessoas de sexo diferente, não vejo absoluta necessidade de chamar casamento à união jurídica de pessoas do mesmo sexo, ainda que compreenda que, por questão de estatuto, muitos entendam essa designação como essencial. Mas já não posso concordar com as razões invocadas pelo presidente da República.

Considero Cavaco Silva um homem honesto, um estimável economista, uma pessoa que se empenha naquilo que considera (e isto é sempre subjectivo) o bem do país. Mas o seu conservadorismo não lhe permite ver para lá de determinado horizonte. Admito que tenha sofrido pressões (quem as não sofre?) de sectores reaccionários (no sentido exacto da palavra), maxime da Igreja Católica. E por isso o aconselharia, se ele apreciasse e conhecesse ópera, a meditar na frase final de Filipe II, no diálogo com o Grande Inquisidor, no IV (ou III conforme as versões) Acto da ópera Don Carlo, de Verdi: "Dunque il trono piegar dovrà sempre all'altare!".

10 comentários:

Anónimo disse...

MUITO BEM. O QUE É PRECISO É LEI PARA REGULAR AS UNIÕES CHAMEM-SE OU NÃO CASAMENTOS. O VETO DO CAVACO É UM DISPARATE

Um leitor disse...

As pressões devem ter sido da mulher, porque a Cavaca tem a mania dos moralismos, isto é tudo hipocrisia.

E o Sócrates já podia ter resolvido a questão se não fosse oportunista

Anónimo disse...

O Sócrates é que teve a culpa de nºao pôr o PS a votar o projecto do Bloco. Agora lixou-se e o Cavaco está a armar-se em parvo. Por este andar não é reeeleito

Anónimo disse...

"Ti guarda del Grande Inquisitor",bem aconselhava o mesmo Filipe ao Rodrigo. Mas neste caso,até duvido que o papel da Igreja tenha sido tão determinante. Há outros movimentos "reacionários" em acção na sociedade portuguesa,talvez mais temíveis porque mais discretos que a Igreja,e que agem directa e poderosamente junto dos partidos,meios de comunicação,etc. Parece teoria da conspiração,mas não é. E a dupla PSD-CDS pretende saber que o povo é tradicionalista em matéria de costumes,e em boa parte até deve ter razão. Mas talvez vá aceitando uma modernice ou outra. Agora com Presidente,partidos,comentadores escritos e falados a puxarem para o lado das virgens ofendidas,é tudo mais difícil.

Anónimo disse...

Claro que isto são pressões da cavaca. Só quem não a conheça que a compre! Consta nos nossos "mentideros políticos" que afinal quem rege os destinos da Presidência em matérias de moral, o que quer que isso seja, é ela e não ele.
Parafraseando a sua citação operática, diria tal como um bom italiano, "cavaca al rogo!!!!!!!!!"
Se o Presidente não se põe a pau com estas atitudes da Dª. Maria (onde é que já ouvi este nome, em tempos que já lá vão???, não será reeleito
Cumprimentos
Marquis

João Gonçalves disse...

Não acompanho o argumentário deste post. Contrariamente ao que é habitual no autor, revela uma não leitura (ou uma tresleitura) dos motivos apresentados pelo PR no bem fundamentado texto que enviou à AR. Nada ali releva de qualquer "cedência" à Igreja, por exemplo, o que não quer dizer - parece que é um anátema social e cultural coincidir com as posições da Igreja e já não o é quando se coincide com o dr. Louçã! - que a Igreja não possa concordar com o que ali se escreveu. Para além disso, e independentemente dos motivos jurídicos, o PR tem direito a ter os seus valores. Também foi eleito para os defender senão os portugueses, com seis candidatos, salvo erro, teriam escolhido outro qualquer. É um veto político a que a próxima legislatura poderá "responder" reaprovando o diploma que, para já, era apenas politicamente desonesto. Não compete ao PR promulgar coisas assim.

Anónimo disse...

"que a Igreja não possa concordar". Claro que a Igreja concordou imediatamente através de D. Jorge Ortiga e do Auxiliar de Lisboa,e está no seu direito,e fez muito bem em dizê-lo para que não subsistam dúvidas.A questão é se a decisão presidencial foi tomada sob pressão da Igreja,o que até,como escrevi anteriormente,julgo que não terá acontecido,pois o conservadorismo moral do Presidente e do seu círculo próximo são suficientes. Ao contrário de J.G.,penso que a proposta de lei melhoraria a situação do "unidos de facto" sem dramas jurídicos de maior,mas confesso que ainda não analisei à lupa o diploma. Claro que não deve ser anátema concordar com a Igreja,vade retro,mas concordar com o Louçã(o que não é normalmente o meu caso) tambem pode acontecer sem ruir o Universo. Certo é que se ganhar a dupla PSD-CDS nada se acrescentará à legislação já existente nesta área.

Anónimo disse...

Quem também fica mal na fotografia, é, como não podia deixar de ser, o próprio PS. Então é agora no final da legislatura que à lufa lufa envia este e outros diplomas para aprovação do PR, sabendo de antemão que alguns deles iriam ter este fim?
Nada de novo, sabemos todos, pois todos os governos de todas as cores o fazem. Mas está mal e deve ser denunciado. De facto não conheço o diploma e, o PR, terá as suas razões para não o promulgar.

mach4 lisboa

Anónimo disse...

Afinal enganei-me. Um hipotético governo PSD-CDS vai mesmo mexer "nesta área" (costumes). O programa messiânico da dra. Manuela propõe "reavaliar"(já sabemos o que quer dizer) a nova lei do divórcio,e colocar a Família no centro da sociedade.A Pessoa,pelos vistos,não lhe interessa,e assim estamos de volta ao "Deus,Pátria e Família" de saudosa memória para muitos. Bagão Felix estará disponível para mais uma ajudinhas. Que futuro!

Snowball disse...

Sinceramente, não vejo porque motivo as pessoas que querem ter relações livres devem ser forçadas a assumir um conjunto de deveres que só fazem sentido para quem quer casar.

Conservadorismo aqui não é do PR, é do PS. A posição do PR é de quem defende o amor livre. A do PS é de quem defende o amor regulado e tutelado pelo Estado.

Quanto à lei do divórcio, o erro do PS é o oposto, mas o princípio é o mesmo. O princípio é o de que as pessoas não sabem o que querem por isso o Estado tem de escolher por elas. Ou seja, quem está em união de facto deveria querer casar, e quem está casado, deveria querer não ter assumido as responsabilidades que assumiu.

Na desculpa do progressismo, vai contra aquilo que as partes contrataram no casamento. Por exemplo o regime de bens. As pessoas expressamente que afirmaram que queriam comunhão de bens vêem a sua vontade contrariada pelo Estado, que lhes revoga essa opção.

Mas quem é o Estado para se meter na vida privada das pessoas dessa forma? Isso não é nem progressismo nem conservadorismo, é totalitarismo.

Estas leis de progresso nada têm, pois o progresso é a liberdade e não o totalitarismo estatal. E têm uma consequência grave, digna da velha senhora, tendencialmente resultam em maior submissão das mulheres aos maridos, pois acentua a sua dependência económica e irreleva os incumprimentos dos deveres do casamento. A consequência é simples: mulheres que se sujeitam a maridos infiéis porque se pedirem o divórcio a nada têm direito.

Chamem-lhe progresso. Eu prefiro chamar-lhe fascismo.