Encerra no próximo dia 28 deste mês, na Bibliothèque municipale de Lyon-La Part-Dieu, a exposição «Archives de l'infamie. Michel Foucault, une collection imaginaire», organizada a partir de um texto do inesquecível filósofo, destinado a servir de prefácio a um livro que não chegou a ser escrito: La vie des hommes infâmes. Um livro que reuniria uma série de notas recolhidas, como amostra, dos arquivos de internamento no Hôpital général e na Bastilha e que inauguraria uma colecção consagrada à edição de determinado tipo de documentos de arquivo. Nem o volume, nem a série viram a luz do dia e o texto acabou por ser publicado de maneira autónoma como artigo de revista ("Les Cahiers du chemin"), em 1977. É verdade que Foucault, na linha das preocupações que o levaram a publicar, em 1961, a Histoire de la folie, editara já em 1973, Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma Mère, ma Soeur et mon Frère... - un cas de parricide au XIXème siècle e, em 1978, na colecção "Les Vies parallèles", Herculine Barbin, dite Alexina B. e escrevera em colaboração com Arlette Farge, em 1982, Le Désordre des familles. Mas agora, contudo, tratava-se de uma nova e mais completa abordagem da vida dos homens vulgares que um dia se cruzaram com as malhas do poder. Infames, porque sem fama, sem reputação, ao contrário, segundo o Mestre, da falsa infâmia de que beneficiam homens de espanto ou de escândalo, como Gilles de Rais ou Sade. "Aparentemente infames, por causa das recordações abomináveis que deixaram, dos crimes que lhe atribuem, do horror respeitoso que inspiraram, são de facto homens da lenda gloriosa, mesmo se as razões dessa reputação são inversas das que fazem ou deveriam fazer a grandeza dos homens. A sua infâmia é apenas uma modalidade da fama universal." O projecto de Foucault demarcava-se de Plutarco e da sua Vida dos homens ilustres e, como escreve Gilles Deleuze (Foucault, 1986), "Notar-se-á que Foucault se opõe a duas outras concepções da infâmia. Uma, próxima de Bataille, trata das vidas que passam à lenda ou à narrativa pelo seu próprio excesso [...] Seguindo a outra concepção, mais próxima de Borges, uma vida passa á lenda porque a complexidade do seu cometimento, os seus desvios e as suas descontinuidades, só podem encontrar inteligibilidade numa narrativa capaz de esgotar o possível, de cobrir eventualidades mesmo contraditórias (é uma infâmia 'barroca' de que Stavisky seria um exemplo). Mas Foucault concebe uma terceira infâmia, para falar claro, uma infâmia de raridade, a dos homens insignificantes, obscuros e simples, que apenas devem a queixas, a relatórios de polícia, o ser trazidos à luz por um instante. É uma concepção próxima de Tchekov."
O conjunto de escritos e documentos apresentados na exposição da Bibliothèque municipale de Lyon dá a ver fotografias, registos, cartas, narrações de vida, fichas, livretes, cadernos, sinais, manuscritos, provenientes de diferentes fundos de arquivos, entre os quais o Imec (Institut Mémoires de l'Édition Contemporaine), os arquivos departamentais das Bouches-du-Rhône, a Assistance publique, a Bibliothèque de Lyon, etc. A acompanhar a exposição foi publicada uma obra colectiva epónima, Archives de l'infamie, que republica nomeadamente o texto de Foucault.
Voltando a Bataille e Borges, refira-se que em ambos a infâmia apela a uma certa relação entre o mal e a história e que essa relação se estabelece em duas direcções inversas. Em Bataille, a parte maldita é o que toda a cultura deve retirar de si mesma segundo um movimento ambíguo em que o dedo estendido tanto mostra como suprime. Na Historia Universal de la Infamia, pelo contrário, Borges apresenta um embutido de existências mais reduzidas do que excluídas pela história ao silêncio e aos paradoxos, pela sua maneira de tornar imperceptíveis o crime e a religião, a mentira e a verdade, numa mistura que nem o louvor nem a vergonha conseguiriam sair indemnes. Ora é nessa ambiguidade que Foucault instala a sua própria concepção de infâmia. De um lado os seus "homens infames" são os que uma certa ordem política indica como tais; por outro lado, precisamente porque as suas vidas não têm o brilho dos grandes crimes ou das transgressões notórias, parecem igualmente manifestar essa parte de ínfimo e de desordem de que as sociedades não conseguem fixar definitivamente o rosto.
Passando horas, como monge copista, a transcrever notas de bibliotecas, Foucault dá a palavra aos que hoje se chamariam subalternos. Ele é, de alguma forma, o escriba dos "sem voz" que, neste princípio de século, são também os sem-papéis, os sem-abrigo. Afinal, ainda o combate de toda uma vida.
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
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1 comentário:
Muito bem. Mas já agora,afins do Médio Oriente,gostaríamos de saber em que ficou o Congresso do Fatah que aqui tão bem apresentou no passado dia 5.Renovou,dinamizou,substituiu os elementos mais corruptos? Aguardamos a sua bem informada opinião.
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