segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O TERREIRO DO PAÇO

Afirmou Santana Lopes desejar, caso seja eleito presidente da Câmara, e referindo-se ao Terreiro do Paço, "pôr a praça como ela estava". Não esclarece Santana 'como ela estava, quando?' Mas presume-se que se esteja a referir ao passado recente, já que se tornaria difícil recuar, por exemplo, ao tempo do Regicídio.

Tem o Terreiro do Paço (da Ribeira) sofrido diversas modificações ao longo das últimas décadas, quer na cor dos edifícios (que não à arquitectura, felizmente!), quer quanto à utilização da praça que já serviu, horror supremo, para parque de estacionamento automóvel. Infrutíferas, e estúpidas algumas, têm sido as tentativas de dar a tão nobre praça uma utilização condigna.

Praça debruçada sobre o rio, não pode o Terreiro do Paço, a que também se chama Praça do Comércio, competir com a Praça de São Marcos, não só porque o Tejo não é a Laguna e Lisboa não é Veneza, mas porque o seu plano é muito diferente do da capital da Sereníssima. A começar pela protecção do vento que o enquadramento de São Marcos permite mas o Terreiro do Paço não. E também pelo conteúdo. Se na cidade veneziana existem dois célebres cafés, o Florian e o Quadri, praticamente imutáveis ao longo desse tempo, onde se sentaram algumas das mais notáveis figuras mundiais dos últimos 300 anos, em Lisboa nem o Martinho da Arcada (que era um dos cafés preferidos de Fernando Pessoa e de outros escritores) escapou há alguns anos a umas obras de transformação que o descaracterizaram com o pretexto de tornar o negócio rentável e dele fazendo (à custa do Estado) mais um restaurante do que um café. Que parece, por causa do trânsito, deseja encerrar agora as suas portas. Não critico que o Estado contribuísse para o restauro, mas impunha-se conservar a forma original, não abrir a bolsa apenas para satisfazer necessidades privadas. Proclama-se hoje "Menos Estado, melhor Estado", eu digo apenas: "Melhor Estado", não me interessa que seja "menos". Deveria o Estado (ou a autarquia, não me lembro, mas na prática é o mesmo) subsidiar o restauro do Martinho? Com certeza que sim, mas na condição de mantê-lo como estava. E se os proprietários não concordassem, deveria o Estado encarregar-se da gestão do Martinho. Há sítios, mesmo cafés, ou restaurantes, quiçá tabernas, que pelo seu valor simbólico se tornaram instituições. Compete ao Estado mantê-las vivas! Não é imaginável que o Florian, de Veneza, se transformasse num MacDonalds, ou o Café de la Paix, em Paris se convertesse numa Loja Zara.

Consta que Santana Lopes pretenderia também retirar os ministérios e colocar museus no local. Afigura-se à partida uma boa solução, ainda que se deva ter em conta que os ministérios evitam a desertificação final daquela zona, progressivamente despovoada nas últimas décadas. Mas há um museu que eu veria com bons olhos no Terreiro do Paço: o Museu dos Coches. Existe um sinistro projecto deste governo para construir um novo Museu dos Coches numas antigas instalações militares de Belém com passagem sobre a Avenida da Índia e a linha férrea e a terminar num monstruoso silo automóvel frente à Estação Fluvial de Belém. Parece que o autor é um arquitecto brasileiro, cujo nome seria incapaz de fixar, de parceria com mais alguns portugueses. É uma obra que a ser feita, roguemos à Providência que não, custaria milhões de euros. Entendo que o Museu dos Coches está muito bem onde está, já que não voltará a ser utilizado o local com a sua antiga vocação de Picadeiro. Mas a mudar-se, que se mude para o Terreiro do Paço, o melhor local para guardar e mostrar as carruagens que durante séculos serviram o Paço.

Outro problema do Terreiro do Paço é o trânsito automóvel, que importa reduzir. Mas nunca se conseguirá reduzir a circulação automóvel em Lisboa enquanto não for possível construir na periferia da cidade parques grátis onde quem habita nos arredores possa deixar a viatura e embarcar num transporte público. Contudo, não é isso que se vê. Cada vez há mais estacionamento pago no centro de Lisboa, parques e ruas, pago já quase 24 horas por dia, numa "chulice" ao contribuinte que mais parece proxenetismo organizado. Nuns poucos terrenos, junto à estação de caminho de ferro de Algés, onde era possível deixar o carro gratuitamente e tomar o comboio, surgem agora novos edifícios que em breve ocuparão o pequeno espaço anteriormente disponível.

Voltando ao Terreiro do Paço, o projecto de remodelação divulgado é uma meia patetice, e já explico porque só meia. As obras projectadas descaracterizariam definitivamente o local e só podem provir de espíritos obtusos (é isto a meia patetice, e até julgo que vagas furiosas galgariam o Cais das Colunas - se é que já foi reposto, ao fim de tantos anos de ausência - e qual maremoto de indignação destruiriam a obra). A outra meia não é patetice: são os milhões que arquitectos e construtores (e outros) ganhariam com a modificação. Porque eles não são tão parvos como algumas vezes parecem!

Estude-se pois a utilização do Terreiro do Paço, ouçam-se os interessados, averigúem-se as potencialidades, avaliem-se as necessidades, calculem-se os custos e, quando chegar a hora de decidir, mande quem pode e obedeça quem deve. Nem poderá ser de outra maneira!

5 comentários:

Anónimo disse...

Ora aqui está uma reflexão séria sobre o destino duma bela praça. Tirem os ministérios mas ponham lá alguma coisa para animar o sítio. E não continuem a encher a praça de mamarrachos que é o que se lá vê mais.

Anónimo disse...

Sempre de louvar o esforço do autor em levantar questões importantes e difíceis. Mas aqui há dois ou três pontos de que discordaria. Por exemplo a comparação com a praça de S.Marcos. A Praça veneziana não abre sobre a Laguna, é uma "sala" em ponto grande mas não imenso,o que permite um convívio,uma aproximação,que é impossivel no nosso Terreiro. O Florian e o Quadri estão à vista (e à escuta) um do outro,o que nunca seria possivel no nosso caso. O Terreiro do Paço é um espaço aberto sobre o rio,sobre o mar da Palha. Julgo que as pessoas tenderão,não a olhar umas para as outras,mas para a imensidão aquática. É muito difícil promover,com cafés ou sem cafés,uma convivência agradável naquele espaço. Museus talvez animassem alguma coisa,mas atenção que os Ministérios tambem sustentam a Baixa em geral,pelo menos de dia,à hora do almoço,etc. Arriscaria dizer que o Terreiro está destinado a ser um local de passagem no bom sentido,de passagem para apreciação do magnífico mas imenso conjunto arquitectónico. E se eu estiver enganado,tanto melhor!

O Observador disse...

Espero que nunca se construa o projectado museu dos coches. Seria só gastar dinheiro, ele está muito bem onde está, deixem-no ficar. Ou sigam a sugestão do post e levem-no para o terreiro do paço.

Anónimo disse...

Atenção. Salvo erro,o projectado novo Museu dos Coches não custará um cêntimo ao erário público,pois o financiamento sai inteiramente das compensações devidas pelo Casino de Lisboa para fins semelhantes.Isto não significa que concorde com o projecto que arquitectonicamente até tem alguma graça,mas não ali,evidentemente,nem para os coches que me parecem estar bem onde estão. Aproveito para dizer ainda que o novo projecto para o Terreiro,com o chão aos quadradinhos,declives,degraus,etc,é horroroso. Pouco se pode fazer por aquele espaço,como disse em comentário anterior,o que lamento.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

PARA O ANÓNIMO DAS 19:49:

Não comparei o Terreiro do Paço com a Praça de S. Marcos. Pelo contrário. Digo logo no § 3 que as praças não podem competir "não só porque o Tejo não é a Laguna e Lisboa não é Veneza, mas porque o seu plano é muito diferente do da capital da Sereníssima. A começar pela protecção do vento..."

Por outro lado não estou certo que a criação de cafés, juntamente com lojas e museus, não fomentasse o afluxo de público, mas só a experiência o poderá comprovar.