Completam-se hoje vinte e cinco anos sobre o desaparecimento de Michel Foucault. O filósofo, que nascera em Poitiers, em 15 de Outubro de 1926, morreria no Hospital Pitié-Salpêtrière, em Paris, em 25 de Junho de 1984, às 13.15 h, segundo o comunicado médico oficial, que faz referência a uma septicemia, omitindo, a pedido da família, que ele falecera vítima de sida. Aliás, a ocultação da causa da morte na imprensa francesa provocou na altura um vivo debate, uma vez que era conhecida, pelo menos nos meios intelectuais, a doença de que padecia Foucault, e que então estava ainda envolta em alguma neblina, dado que o vírus do HIV fora descoberto apenas em 1983, por Luc Montagnier, em França, e também por Robert Gallo, nos Estados Unidos, o que levantou intensa polémica quanto à autoria da descoberta.
A notícia, se bem que aguardada, provocou a maior consternação em França, e no mundo, já que Michel Foucault se pode considerar uma das figuras mais notáveis do pensamento ocidental de todo o século vinte. Evocaram a morte na imprensa francesa Pierre Bourdieu, Paul Veyne, Georges Dumézil, Gilles Deleuze, Georges Canguilhem, Pierre Boulez, etc. Fernand Braudel falou de “luto nacional” e Jean Daniel evocou os primeiros encontros com o Mestre em Sidi Bou Saïd, na Tunísia.
Extraordinária a trajectória de Michel Foucault. Começou a evidenciar-se como menino do coro, ajudando à missa na sua paróquia, e acabou como professor do Collège de France e da Universidade de Califórnia (Berkeley), após uma vida ao serviço do ensino, não só nos EUA e em França, mas também na Suécia, no Brasil, na Alemanha e na Tunísia, posto que ocupou quando o seu jovem amante Daniel Defert, hoje consagrado sociólogo e presidente de Aides France, aí prestou serviço militar. Defert, que ainda é vivo, foi indefectível companheiro de Foucault durante vinte e quatro anos, até à morte do Mestre.
Segundo o seu biógrafo Didier Eribon, Foucault amava a Tunísia, onde ensinou durante dois anos na Faculdade de Letras e Ciências Humanas, no boulevard 9 Avril, ficando instalado em Sidi Bou Saïd (nos arredores de Tunis), primeiro no Hotel Dar Saïd, sobre a baía e depois, sucessivamente, em três pequenas casas, quase idênticas, de paredes brancas e persianas azuis, que são as cores características das habitações daquela localidade e de boa parte do país. Inicialmente, Foucault tomava o TGM (Très Grand Metro), uma espécie de comboio da linha do Estoril, que liga Marsa a Tunis, passando por Sidi Bou Saïd, e fazia o caminho da estação de Tunis para a Universidade a pé, percorrendo primeiro a avenida Bourguiba (aposto eu que parava para tomar um café no Café de Paris) e depois a Medina e o Qasbah até ao boulevard 9 Avril, uma distância que, segundo a minha experiência, pois conheço muito bem os sítios, deve ser superior a 3 quilómetros. Mais tarde comprou um Peugeot 204 branco descapotável. Nem podia ser de outra maneira.
Sidi Bou Saïd - Vista da baía - O Hotel Dar Saïd fica à esquerda mas está fora da imagem
Filósofo, sociólogo, historiador, Foucault é um dos mestres maiores do pós-estruturalismo, etiqueta que aliás não apreciava, considerando o seu pensamento como uma história crítica da modernidade.
Da sua obra vasta e profunda, podem distinguir-se:
- História da Loucura na Idade Clássica, 1961
- As Palavras e as Coisas, 1966
- A Arqueologia do Saber, 1969
- Vigiar e Punir, 1975
- História da Sexualidade I, II e III (1976, 1984 e 1984), cujo volume IV não chegou a ser publicado. Posteriormente foram editados Ditos e Escritos, compilação dos seus cursos e textos dispersos.
Incide essencialmente a obra de Foucault sobre o poder e as suas relações com a sexualidade e a loucura, tendo-nos fornecido, através dos seus estudos e pesquisas, um panorama novo sobre matérias até então aprisionadas pelas super-estruturas e que, após o Mestre, não mais puderam ser encaradas como anteriormente.
Foi também Foucault um militante político ao lado, por exemplo, de Sartre e de Genet, na defesa dos imigrantes. E um companheiro, em lides intelectuais, de Althusser, Lévi-Strauss, Barthes, Claude Mauriac, Patrice Chéreau, Jacques Lacan e tantos outros.
Sobre Foucault escreveram Didier Eribon, o seu biógrafo por excelência, que ainda jovem jornalista conheceu o Mestre e veio mais tarde a ser também professor convidado em Berkeley e noutras universidades, Gilles Deleuze, Paul Veyne, David Halperin, James Miller, o seu biógrafo americano, e tantos vultos da cena intelectual contemporânea. Figura necessariamente polémica, como todas as grandes figuras, continua a suscitar paixões diversas mas impôs-se como uma referência indispensável destas últimas obscuras décadas que vivemos.
Em 1978 e 1979, Foucault esteve no Irão para acompanhar a contestação ao Xá e o triunfo da Revolução que levou ao poder o ayatollah Ruhollah Khomeini, tendo-se entusiasmado com as transformações em curso. As suas opiniões sobre liberdade sexual e género, que os acontecimentos posteriores viriam lamentavelmente a infirmar, ficaram consignadas em várias publicações. Em 2005, Janet Afary e Kevin B. Anderson, editaram um livro em que registam e comentam as posições então por ele assumidas: Foucault and the Iranian Revolution – Gender and the Seductions of Islamism. Esta sedução do islamismo, que tem sido uma tentação do Ocidente desde o fim do século XVIII, é oportunamente descrita no livro La mauvaise vie, de Frédéric Mitterrand, sobrinho do ex-presidente francês, homossexual assumido e anteontem nomeado ministro da Cultura pelo presidente Sarkozy, como “la tentation arabe”, que, no caso vertente, seria a “tentação iraniana”.
Morreu Michel Foucault com 57 anos, demasiado cedo para ele e para o mundo, após uma vida riquíssima e intensíssima de experiências intelectuais e humanas. Deixou uma obra, parcialmente traduzida em português, que deveria ser devidamente lida e cuidadosamente meditada.
Que esta brevíssima evocação do Mestre, modesto tributo a quem tanto se deve, possa contribuir para estimular o estudo da sua obra.
1 comentário:
Contra alguma opinião,até penso que os aniversários podem ser úteis para relembrar, rever,re-estudar autores,artistas,etc. Sendo a blogosfera portuguesa o que é,não surpreende que não se veja qualquer debate sobre um autor que não se pronunciou sobre as eleições no Benfica nem sobre as novas vestes mediáticas do Sócrates ou da Leite. Mas fora da blogosfera? Pois é a altura para lamentar o fosso aparentemente inultrapassável entre a Universidade e a chamada "comunicação social". Se houver seminários ou ciclos sobre o Foucault(ou sobre qualquer outro filósofo)nunca o saberemos pelos jornais ou TVs. Suponho que os directores destes "meios" decretaram há muito que a "cultura" não interessa às audiências nem às publicidades,toca então de manter o elevado nivel actual. Tambem não vejo por parte da Universidade um grande esforço para se abrir ao mundo extra e post universitário. O "Collège de France" é um bom exemplo do que se poderia tentar,pelo menos em forma experimental,aberto a todos, e com alguns nomes prestigiosos como conferencistas. Quanto ao Foucault,que não se pode isolar do movimento estruturalista,post-estruturalista,desconstrucionista(Derrida)etc,é um actor essencial de uma reflexão filosófica que, esgotado o existencialismo sartriano, se volta para os problemas da evolução da organização da sociedade e do poder,da evolução das mentalidades e das categorias da análise("Les Mots et les Choses",por exemplo)sem recuar na intervenção directa ou opinativa na actualidade politica ou social,de que o autor do blogue deu exemplos. Nisso (e noutras coisas,claro) se distinguem da prática predominante na Filosofia anglo-saxónica,herdeira do Círculo de Viena, e bàsicamente preocupada com a análise da relação linguagem-pensamento,e filosofia-ciência. Refiro-me evidentemente às tendências predominantes,pois não ignoro que o Derrida,por ex. tem muito sucesso em algumas Universidades americanas,e o Wittgenstein ultrapassou há muito a fronteira das Ilhas,embora mais em aspectos laterais ao seu pensamento. E para não me alongar mais,só a indicação de quem nos poderia dizer algo de novo ou interessante sobre o Foucault e companhia. Um que já desapareceu,e era o último defensor da Cultura francesa:obviamente o Eduardo Prado Coelho. Outro,o Prof. Carrilho,que bem conhece Derridas,Deleuzes,etc. Porque não o convidam para uma conferência blogosférico-pública? Eis um serviço relevante que a blogosfera poderia prestar à triste vida "cultural" portuguesa,e a redimiria(à blogosfera) da fama de caixote do lixo que frequentemente lhe colam...
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