sábado, 23 de agosto de 2014

SALAMANDRA, O RÉPTIL DO FOGO




Não consegue ser sublime mas é certamente um livro excepcional. Em Salamandre, Gilles Sebhan, autor de obras como Domodossola, le suicide de Jean Genet ou Tony Duvert, l'enfant silencieux, mergulha nos recônditos da natureza humana e detém-se nos pensamentos jamais confessados e nos comportamentos só imagináveis por um venturoso grupo de iniciados, aquela extensa faixa supostamente marginal que não sacrifica no altar erigido ao pensamento dominante.

O livro compreende cinco partes. Na primeira e na quarta o cenário é um vídeodromo, isto é, um cinema (parisiense) de filmes pornográficos (uma espécie do Olympia lisboeta de outrora, lamentavelmente inutilizado devido à avidez de Filipe la Féria) mas com uma zona de cabinas de vídeo para satisfação mútua dos clientes e dos seus jovens colaboradores, aquilo a que poderíamos chamar postos de atendimento. Os clientes são das mais variadas profissões e condições sociais. Os oficiantes são rapazes, maioritariamente árabes, africanos ou dos países de Leste: sérvios, romenos, búlgaros, e por aí fora, até ciganos e kosovares. A quarta parte é a sequência da primeira mas podem ser simultâneas, de tal forma o autor baralha o percurso do tempo e das personagens. Mas há um fio condutor: Salamandre, um cliente enigmático, foi assassinado na cabina número três. Ao encerrar o estabelecimento, o guarda encontrou o corpo que jazia apunhalado no cubículo, no ambiente habitual das exíguas cabinas no final do dia: um odor fétido e um cenário de sangue, suor e esperma.

A salamandra é um animal estranho que vive dentro do fogo. Santo Agostinho refere-se-lhe n'A Cidade de Deus e Jorge Luis Borges em El Libro de los seres imaginários. De facto, a obra que se comenta pretende ser uma descida aos Infernos (ou uma ascensão ao Paraíso, depende da perspectiva) e o autor não fica distante. A descrição da actividade exercida naquele antro agónico tem algo de sacrificial, decorre segundo rituais antigos, aceites e imutáveis, indiferentes ao desenrolar das civilizações. O livro é, no espírito, devedor a Genet, e também a Duvert, e não poderia ser de outra forma.

A segunda parte é o diário (1985-1986) de um jovem professor (27 anos) de literatura francesa na escola da Marinha Real de Casablanca, realmente a École Royale Navale, que prepara os futuros oficiais do Reino. O professor vive num apartamento de três divisões no centro de Casablanca. A casa é limpa por um adolescente, Mouloud, que se lhe apresentou à porta no dia da chegada e se propôs o serviço, pretendendo ser um garçon de ménage. O professor ignora tudo a seu respeito, mesmo a idade ou se à noite regressa a casa ou dorme na rua. Mas aceitou-o porque, ainda que este génio do lugar não saiba sequer estrelar um ovo, possui um encanto especial e é dotado de um sexo grandioso.

Ao longo de quase dois anos, até ser demitido das suas funções porque, segundo o comandante da escola, os alunos se excitam com as calças demasiado justas do jovem mestre, Salamandre (é esta a alcunha que os frequentadores do vídeodromo darão mais tarde ao professor) anota no seu diário os factos mais relevantes da sua estada na cidade: a preocupação com a educação de Mouloud; o conhecimento, num concerto, de uma enigmática Khadidja (que se apresenta como Hélène) casada mas com um marido habitualmente em viagens de negócios; a figura assustadora de Didier, um adolescente com vocação de torcionário, que tenta envolvê-lo num crime; a tentativa de sedução por parte de Hélène (sedução de quem? do professor ou do próprio Mouloud?); a proposta de um negócio escuro por parte de Didier; a consumação carnal que se perfilava no horizonte: Mouloud, o professor (agora mais pai do jovem do que amante) e Khadidja (a mãe emprestada ao jovem). Transcreve-se o pseudo-incestuoso acto familiar:

«Hélène a fait glisser sa petite robe noire, comme un serpent se glisse hors de sa peau. Je ne sais pas pourquoi cette image m'a conduit au bord de l'évanouissement. Mouloud a ouvert son pantalon tout neuf et il a baissé un vieux slip dont j'avais oublié l'existence. Il y avait toujours eu chez lui ce côté très impudique. J'ai eu peur de ce qui allait advenir ensuite. Mais Mouloud a guidé mon visage, ma main puis mon sexe jusqu'à Hélène qui avait décidé de se donner à nous. Je me suis retrouvé sur elle, peau à peau. Je tremblais peut-être. J'étais heureux. Mouloud encore demi-habillé me surmontait et je sentais son sexe impérial me frôler tandis qu'il pénétrait Hélène gémissante comme si je l'avais fait moi-même.»

O diário termina com a confissão do projecto de um roubo, arquitectado por Didier.

A terceira parte é o diário (1998-2007) do professor ou, se preferirmos, de Salamandre,  retomado após os doze anos de prisão. O objecto do roubo fora um Matisse. O professor vive agora numa pensão perto da Gare du Nord (Barbès), e apenas sai à noite. Conseguiu emprego como guarda-nocturno num parque de estacionamento. Os outros dois colegas são árabes. No exame médico para admissão o clínico observa-lhe a salamandra que tem tatuada no corpo. Com o correr do tempo, resolve ir ao cinema porno La Scala, no boulevard de Strasbourg (o edifício foi adquirido em 2000 para lugar de culto da Igreja Universal do Reino de Deus, mas a municipalidade de Paris ainda não autorizou a afectação). O "cinéfilo" pode deambular ao seu gosto pelas cinco salas. "Il y a toujours un jeune Turc, un vieil Arabe, une troupe de Pakistanais, pour égayer l'obscurité." Salamandre começa a frequentá-lo. E assim vai passando sucessivamente da escuridão do parque de estacionamento à escuridão do cinema. Um dia, no Verão de 99, depara-se com os cartazes que indicam o encerramento do cinema. "Ce monde, qui témoignait d'une époque déjà révolue, disparaissait à son tour. C'était non pas un monde, mais le souvenir d'un monde, qui venait de disparaître, vendu comme je l'ai appris ensuite à une secte apocalyptique." A seguir, é a descoberta de uma sala de jogos vídeo na esquina da rua Saint-Denis, frequentada por "gosses aux allures violentes". Num cybercafé, com a ajuda de um cliente, descobre a foto de Khadidja e escreve-lhe a pedir notícias. Esta não responde.

Um dia, estamos já em 2007, Malek, o filho do dono da pensão, bate-lhe à porta do quarto. Avisa-o de que, em baixo, um rapaz o procura. Desce as escadas e, junto ao balcão, um jovem de baskets, de jean e de T-shirt está encostado ao balcão. É a cara chapada de Mouloud. Mas não é Mouloud, é o filho de Mouloud. Este conta-lhe como o conseguiu descobrir através da internet, diz-lhe que o pai morreu e que a mãe se chama Khadidja. E passam ambos às confissões mútuas do passado. Malek arranja ao jovem um quarto da pensão provisoriamente desocupado mas regressado o locatário, passa a dormir no chão no quarto do pseudo-pai. Porque o rapaz não possui um cêntimo, Salamandre consegue-lhe um emprego através de papéis falsos. Mas a presença no quarto do rapaz, que se assemelha como uma cópia ao jovem outrora amado, perturba Salamandre, obrigando-o a procurar diariamente nas cabinas o indispensável alívio. Chega finalmente o momento em que os dois corpos se unem, para satisfação especial de Mouloud (filho) que queria saber quem o pai tinha amado. Todas as noites o rapaz se esgueira para a cama de Salamandre, que agora tenta evitá-lo (escrúpulos?), mas vai acabando por ceder às investidas impetuosas do jovem. Entretanto, o rapaz abandona o emprego, mas continua a viver na pensão, a expensas de Salamandre que pensa reenviá-lo para Marrocos. Um dia em que Salamandre regressa mais cedo ao quarto, surge inesperadamente Mouloud. Mas não vem só, um homem acompanha-o. Salamandre não precisa que lhe façam um desenho: cumprimenta o homem e sai. Mouloud usa agora roupas novas, rutilantes, encontrou a sua vocação. "Tu voulais que je travaille, a-t-il lancé, je crois que j'ai tout ce qu'il faut pour bosser. Et il a eu ce geste obscène. Dans ses yeux luisait le défi. Cet enfant était beau, il aurait été difficile de le nier. Mais fêlé, je m'en apercevais. Je vais aller traîner  dans ton truc et venir te faire chier. On va bien voir si je suis moins doué qu'un autre pour faire payer des types come toi. Des  dégueulasses comme toi qui ne savent pas aimer. Je l'ai giflé avant même d'en avoir eu l'idée et il m'a craché au visage. Et si on se rencontre là-bas, on fera semblant de ne pas se connaître, a-t-il braillé."

A quarta parte, como se escreveu acima, passa-se outra vez no vídeodromo. O movimento habitual dos rapazes, o vai-vem dos clientes nas cabinas, a discussão do preço e do serviço, os comentários à morte de Salamandre. Alguns meses antes da morte deste, aparecera no local um rapagão, de olhos brilhantes e de grande beleza, mas aparentemente tímido como uma criança. Um cliente que experimentou os seus serviços, confiou: "Une vraie perfection, mais alors à l'état brut, il ne sait rien faire, il faut encore le guider, dans quelques semaines il sera parfait, dans quelques mois il sera pourri, enfin vous savez comment ces choses fonctionnent, mais non, c'était très bien. Il n'a pas l'air idiot comme souvent et on peut avoir une conversation entre les prises, si vous voyez ce que je veux dire. C'est un Marocain, paraît-il, et il prétend qu'il vient d'arriver." O rapaz causou boa impressão e tornou-se o preferido dos frequentadores, que passaram a designá-lo por "Mouloud, le Marocain".

A quinta parte é dedicada aos testemunhos recolhidos pela polícia após o crime. São ouvidos o guarda, alguns clientes (entre os quais um expert en art, amigo da vítima) e alguns rapazes (Mouloud incluído). Depoimento do expert: «Moi j'ai dit plusieurs fois à cet homme qu'il ne devait pas laisser ces garçons se comporter comme ça avec lui. Il avait tendance à leur donner de très mauvaises habitudes, et ils n'ont pas besoin de ça. Ce sont des gosses, souvent peu sages et peu réfléchis, pas foncièrement mauvais si on sait les prendre mais si vous leur laissez la bride sur cou, ce peut être très vite n'importe quoi. Il faut savoir que la plupart ont fait ou feront de la prison. Et pour des motifs futiles, ils peuvent devenir méchants. Je lui ai dit ne les tentez pas en leur donner trop d'argent. Mais c'était comme un fou au milieu d'une kyrielle d'enfants, qui aurait distribué des centaines de jouets. Parfois, il me faisait songer à ce personnage de Soudain l'été dernier. Il y a cette scène à la fin, le type se fait poursuivre et dévorer par les jeunes miséreux de la plage. Celui que certains appelaient Salamandre avait ce côté victime sacrificiel. Quand ils le voyaient arriver, le gamins se ruaient sur lui. Parfois, ils le tabassaient dans les toilettes, ils s'en donnaient à coeur joie. Imaginez, être payés pour malmener un client et lui faire les poches. Mais que voulez-vous, lui adorait ça.»

Mencionámos os mais significativos factos estruturantes da obra. Mas é na sua tessitura, aqui impossível de transmitir ao leitor, que se encontra a excelência da estória narrada por Gilles Sebhan, a katábasis do professor que percorre uma via-sacra de erotismo e violência, cujas estações vão do liceu de Casablanca à rua Saint-Denis. Uma estória em que a ficção se mistura com a realidade, num universo de referências culturais que convoca, além dos escritores já referidos, outros autores malditos, alguns pouco conhecidos, como Sandro Penna, Augièras ou Jean Sénac.

De alguma forma, poderia dizer-se que Salamandre é uma obra religiosa em que uma vítima é oferecida em holocausto aos deuses do Averno.

2 comentários:

Anónimo disse...

Uma incursão culta nos bas-fonds parisienses, para ser apreciada por um público conhecedor.

Anónimo disse...

O velho Olimpia era parecido com este cinema da rua Saint-Denis. Não tinha cabinas mas, além dos urinois do toilette, os dois compartimentos de retretes eram muito utilizados pelos clientes.

Foi verdadeiramente criminosa a ideia de Filipe La Féria de tentar alargar para lá o Politeama, para apresentar os seus medíocres espectáculos.

Nunca será absolvido de tão abominável pecado.