Pelo seu interesse, transcreve-se, com a devida vénia, o artigo de Alexandra Lucas Coelho hoje, no PÚBLICO:
O fascismo com esta sua nova roupa
1. No começo de Julho, ia começar a escrever uma crónica sobre o insucesso individual quando me apareceu no ecrã aquela parada rambo-style de AK-47 e bandeira negra proclamando a restauração do Califado pelo Estado Islâmico no Iraque e na Síria. Foi uma espécie de curto-circuito entre passado e presente, o ponto em que o fascismo volta com a sua mais nova roupa. Califado? Estado Islâmico? Aquilo era um exército demente no momento do seu sucesso. E desde então não ficou mais fraco, como esta semana o provou.
2. O nome tem variado, consoante o processo e as traduções: ISIS (Islamic State in Iraq and Syria), ISIL (Islamic State in Iraq and the Levant), IS (Islamic State). O elemento comum é Estado Islâmico, que agora parece ter-se fixado como nome completo. Depois do vídeo com a decapitação do repórter James Foley, que vi na versão sem os dez segundos da decapitação para ouvir o que e como era dito, pasmei com o mapa das zonas tomadas por eles. As margens do Eufrates, ao longo do Leste e do Norte da Síria, por onde viajei de transportes públicos, exactamente em Agosto, há apenas cinco anos. O Norte do Iraque, que corri com um tradutor sunita, e depois sozinha entre curdos, quando começou a guerra, em 2003. Hoje parece simplesmente outro milénio, como se os demónios da caixa então aberta se reproduzissem à velocidade com que teclamos. Aldeias, vilas, montanhas, cidades tomadas por carros potentes, com homens fardados de negro, que guiam como nos maus filmes de Hollywood, disparam como nos jogos de computador e filmam trailers com banda sonora, efeitos especiais e legendas sinistras: “Agora é a nossa vez.”
3. O interminável perfil das espingardas ao poente, o desfile triunfal dos mísseis, as bombas por controle remoto: todos os filmes postados pelo ISIS na Internet têm armas, tiroteios, explosões, execuções e combatentes louvando a camaradagem na jihad. Quem precisa de Leni Riefensthal ou do Rambo quando tem redes sociais? Hoje, o Twitter suspende as contas? Amanhã será um suporte chamado Diaspora. Nunca foi tão rápido ser fascista, se o dinheiro não é problema: para a propaganda, para o arsenal e para a recruta. Captura de zonas petrolíferas, extorsão, resgates, saques, tráfico de antiguidades, donativos, tudo somado e o líder do ISIS entra para a lista de bilionários da Forbes.
4. Abu Bakr al-Baghdadi, 43 anos, iraquiano de Samarra, é o mais recente sucessor de Bin Laden como homem do saco. Subi a espiral de Samarra em 2003, é a imagem mais próxima da Torre de Babel, uma Torre de Babel real que os homens têm subido desde o século IX, quando Samarra foi a capital do Califado. Leio que Abu Bakr tem um doutoramento em história islâmica. A retórica deste seu exército apela à história islâmica. Mas não é preciso termos ido a Samarra para saber que a retórica não bate com a história. Basta a história da Península Ibérica, que Abu Bakr, aliás, pretende conquistar. Ele diria reconquistar, porque o ISIS diz que quer o Al-Andaluz de volta. O problema com esta frase é que ela é uma contradição nos termos: o Al-Andaluz nunca foi o que Abu Bakr diz. Por outras palavras, o ISIS não quer um Estado Islâmico como no passado, nem o Al-Andaluz como no passado, nem o retorno do Califado. Abu Bakr está mais longe dos jardins do Al-Andaluz do que os taliban estão longe dos jardins de Babur, imperador poeta do Afeganistão, tetravô do homem que por amor fez o Taj Mahal. O que o ISIS tem revelado é mais parente de um fascismo com meios terroristas do século XX e propaganda do século XXI.
5. Encontrei o prosseguimento desta ideia num texto do filósofo inglês John Gray, disponível na BBC. Nunca tinha lido Gray e descobri-o com aquela incredulidade de quem de repente lê aquilo em que anda a pensar. O meu amigo André Barata, que costuma dar Gray aos alunos da licenciatura em filosofia, fez-me chegar rapidamente A Morte da Utopia, editado na Guerra & Paz. Resumindo muito, Gray não acredita na história enquanto progresso, tal como ela foi moldada pelo pensamento bíblico crente num apocalipse salvador, mas sim numa história cíclica, em que a natureza humana volta de cada vez, com a sua nova roupa, para fazer o que sempre tem feito. Um exemplo disso, é o regresso do uso da tortura por potências democráticas, como os Estados Unidos. Resumindo tudo, não ficamos melhores.
6. Comecei a ir ao Médio Oriente/Ásia Central em 2001. Em 13 anos, tudo me parece apenas pior, em alguns lugares irreversível, como na Síria e no Iraque. Grande parte do que vi já não existe, no caso da Síria passaram apenas cinco anos, e estamos a falar de milhares de anos de herança, cultural, social ou religiosa apagada do mapa. Estive nas terras dos yazidis, aquelas dezenas de milhares que agora morrem até enterrados vivos, mas tenho mais memória dos curdos. Estive lá no meio da guerra que abriu a caixa de Pandora, e aquela guerra hoje parece-me uma brincadeira perto do que se passa agora. James Foley era um freelancer. Que freelancers cobrirão agora esta zona do mundo? E mesmo não freelancers, com muito mais apoio? Quem vai contar esta história, além do ponto de vista dos embedded com as tropas americanas, de volta ao Norte do Iraque? Eu não viajaria sozinha pela Síria nem pelo Iraque, hoje. E é a primeira vez que penso isso sobre algum lugar.
7. Não há eles e nós porque só há nós. Nós estamos no meio de nós. E do buraco, do vazio, do vácuo, do beco, do ressentimento, o mal volta, cada vez menos banal. O ISIS já não se alimenta da banalidade do mal que sustentou o nazismo. O ISIS expande-se pelo terror e de forma profissional, como relatórios anuais de gastos e lucros, quantas bombas suicidas, quantas cabeças cortadas, contas claras para os dadores. E como Jason Burke, repórter que investigou bem a Al-Qaeda, explicou no Guardian, expande-se territorialmente de uma forma que a Al-Qaeda nunca ambicionou. O Boko Haram, que raptou as meninas na Nigéria, é só um dos braços desta nova era definitivamente pós-Al-Qaeda, diz Burke. Trata-se de território, de ter cidades, milhões de pessoas.
8. O que é que isto tem que ver com religião? Nada, e os crentes deverão ser os primeiros a dizê-lo. Os muçulmanos são quem mais perde com esta nova forma de fascismo, os primeiros interessados em rejeitá-la. O que é que isto tem que ver com Gaza, com a resistência palestiniana à ocupação? Nada. O que é que isto tem que ver com os filósofos do islão? Nada. Nem com os Califas, nem com o Alhambra.
9. Calcula-se que haja 500 britânicos e uns 700 franceses nas fileiras bélicas do ISIS. Não sei quem é este homem com sotaque talvez de East London, talvez vizinho da minha amiga que visitei no mês passado em Hackney. Talvez ele tenha viajado para aquele deserto só há umas semanas, e agora cortou a cabeça de James Foley. Não sei que beco deu errado com ele, mas é muito fácil um homem num beco deixar de ser um homem, e é com isso que o fascismo ganha a vida.
2 comentários:
Às vezes acho que este blog é verdadeiro serviço público. Mais uma excelente partilha, como é costume.
Gostei muito do artigo. Aflige-me o facto deles, os jihadistas islâmicos, se encontrarem já infiltrados na Europa, nomeadamente em Inglaterra e em França.
José Amador
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