quinta-feira, 1 de maio de 2014

VICHY EM SIGMARINGEN




O mais recente livro de Pierre Assouline, Sigmaringen, publicado há pouco mais de um mês, é um marco na sua vasta bibliografia. Não obstante tratar-se de um romance, fornece-nos um conjunto de informações históricas que testemunham a vasta cultura e erudição do autor, o seu profundo conhecimento da época e, last but not least, transmite-nos, com pormenor, o métier de mordomo numa grande casa principesca.

Debruça-se  o livro sobre a permanência em Sigmaringen do governo exilado de Vichy, entre Agosto de 1944 e Abril de 1945. Uma dissecação do quotidiano das personagens, das suas inimizades, das suas idiossincrasias, das suas rivalidades, dos seus comportamentos, tudo analisado pelo narrador, o mordomo do Castelo de Sigmaringen, Julius Stein. Perpassam pelos nossos olhos, entre outros, o marechal Pétain, o presidente do Conselho Pierre Laval, o presidente da Comissão Intergovernamental Fernand de Brinon, o embaixador alemão em Paris Otto Abetz, os ministros Abel Bonnard e Marcel Déat, o secretário de Estado general Eugène Bridoux, o chefe da Milícia Joseph Darnand, o escritor Lucien Rebatet, o médico Bernard Ménétrel (clínico e conselheiro privado de Pétain), os jornalistas Jean Luchaire e Jacques Doriot e, inevitavelmente, o inefável dr. Destouches (mais conhecido como o escritor Louis-Ferdinand Céline). É, aliás, de Céline, a epígrafe do livro de Assouline: «C'est un moment de l'histoire de France qu'on veuille ou non... Ça a existé. Et un jour on en parlera dans les écoles.» De facto, a história  não pode apagar-se. O livro de Assouline confirma-o.

Castelo de Hohenzollern (Hechingen)

Ao longo do romance, o autor procede a uma descrição pormenorizada do Castelo de Sigmaringen, propriedade ancestral da família Hohenzollern, originária do burgo de Hohenzollern, perto da cidade de  Hechingen, na Suábia, durante o século XI. A família dividiu-se em dois ramos: o ramo Católico Suábio e o ramo Protestante Franconiano. O ramo Suábio governou a região de Hechingen até à revolução de 1848. Os membros do ramo Franconiano, uns tornaram-se margraves de Brandenburg, em 1415, e outros duques da Prússia, em 1525. Da reunião destas duas linhas, em 1618, veio a resultar o reino da Prússia, em 1701, que conduziu à criação do Império Germânico (II Reich), em 1871. O título margrave [Markgraf, em alemão, que significa defensor da "marca" (província)], introduzido por Carlos Magno, originou em português a palavra marquês.

O condado de Hohenzollern (ramo Suábio) foi fundado por Frederico II, burgrave de Nuremberg, que, em 1204, fundiu o condado de Zollern e o burgraviato de Nuremberg, assumindo o nome de Frederico IV. Em 1576 o condado foi dividido em três ramos: Hohenzollern-Hechingen, Hohenzollern-Sigmaringen e Hohenzollern-Haigerloch.

O conde João de Hohenzollern-Sigmaringen (1606-1638) foi elevado a príncipe em 1623. Em 1850, o principado foi passado ao ramo franconiano da família, pelo príncipe Karl Anton (que veio a ser ministro-presidente da Prússia entre 1858 e 1862) e incorporado  no reino da Prússia. Contudo, ele mesmo e os seus descendentes continuaram a usar o título principesco de Fürsten von Hohenzollern-Sigmaringen até 1869, e ainda hoje usam o título de Fürsten von Hohenzollern.

Castelo de Sigmaringen

O condado de Hohenzollern-Haigerloch foi absorvido em 1767 pelo principado de Hohenzollern-Sigmaringen. 

O condado, e depois principado, de Hohenzollern-Hechingen foi também incorporado, em 1850, no ramo franconiano e integrado no reino da Prússia, tendo a linha sido extinta em 1869 por morte do príncipe  Konstantin.

O príncipe Carlos de Hohenzollern-Sigmaringen, fiho de Karl Anton, foi convidado em 1866 para substituir o príncipe Alexandru como príncipe soberano da Roménia. Em 1881, tornou-se rei dos Romenos, com o nome de Carol I.

Armas dos Hohenzollern

 A Casa de Sigmaringen esteve ligada às principais famílias reinantes europeias, incluindo a portuguesa. O rei D. Pedro V casou em 1858 (matrimónio não consumado) com a princesa Estefânia de Hohenzollern-Sigmaringen, irmã do futuro rei Carlos dos Romenos, supracitado.

O rei D. Manuel II  casou em 1913 com a princesa Augusta Vitória de Hohenzollern-Sigmaringen, matrimónio de que também não resultou descendência, ignorando-se se foi consumado ou não. Um azar das princesas nos maridos que escolheram, ou que as escolheram.

Como enfatiza Pierre Assouline, o castelo de Sigmaringen é imenso e abriga salões notáveis, como a Galeria Portuguesa, uma homenagem às ligações com o nosso país, ou o Salão dos Antepassados.

Castelo de Sigmaringen - Galeria Portuguesa

Castelo de Sigmaringen - Galeria Portuguesa (pormenor)

Castelo de Sigmaringen - Salão dos Antepassados

A Casa Hohenzollern, ramo de Brandenburg, reinou na Prússia de 1701 a 1918 e na Alemanha imperial de 1871 a 1918. Com a derrota do II Reich, o Império Alemão terminou em 1918 e o kaiser Guilherme II foi obrigado a abdicar, bem como o príncipe imperial Guilherme.

Armas dos Hohenzollern (imperiais)

Este romance de Pierre Assouline sendo uma obra de ficção é também uma obra histórica, tal a profusão de conhecimentos que o autor demonstra sobre o local e a época. Somos, através do narrador, transportados para o local e recuamos até 1944/5. Mas recuamos também na história do castelo e da família. Vestindo a pele do narrador, Assouline prodigaliza-nos igualmente uma soma de informações sobre a profissão de mordomo de uma casa principesca, que nos fazem imaginar de como ele muito bem saberia desempenhar tão exigente ofício.

Além do mais, trata-se de um livro muito bem escrito, com o rigor e o estilo a que o autor já nos habituou. No fim, Assouline inclui uma "Reconnaissance de dettes", em que agradece as contribuições de diversas pessoas para a elaboração do livro, à cabeça S. H. Karl Friedrich Fürst von Hohenzollern, e dos livros e artigos consultados, verdadeiramente uma imensa bibliografia, cuja elaboração é, por si, um notável trabalho.

5 comentários:

João Alves disse...

D. Manuel II teve como amante, antes do casamento, uma actriz famosa. Se não houve consumação do casamento não seria por culpa do rei certamente. O mesmo já se não pode dizer no caso de D.Pedro V e D. Estefânia.
Manuel II e Vitoria eram primos em 2º grau. Muitas vezes este tipo de proximidade genética não gera descendência, pelo que li.

Anónimo disse...

Notavel. Um post simplesmente notável. Vou comprar o livro, e agradeço ao blogger a informação que nos dá.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Caro João Alves:

Não estou tão seguro do que afirma sobre D. Manuel II, mas também não posso, obviamente, asseverar o contrário.

Tenho ouvido várias referências, ao longo dos anos, quanto a uma certa feminilidade do rei, mas, de momento, só consigo fazer uma citação.

No seu livro "O Último Rei", Cardoso de Miranda, que foi ministro conselheiro da embaixada do Brasil em Lisboa, em exemplar autografado que me ofereceu em 1960, escreveu (p. 84):

«"Mariquices do Senhor Infante" - comentavam no Verão, em Cascais, as raparigas da sociedade, acerca dos ademanes e gostos de D. Manuel.

Quando criança - as amas divertiam-se em vesti-lo à imitação de D. Maria Pia. com brocados e jóias. E era vê-lo imitar na perfeição a avó - hierática, donairosa, altiva...».

O facto de ter tido uma amante nada significa. Também o falecido rei Umberto II de Itália, quando príncipe herdeiro, teve muitas amantes que o Governo lhe arranjava para tentar desviar as atenções das suas aventuras com o mesmo sexo, aliás bem conhecidas em todo o país.

Cumprimentos.

Zephyrus disse...

Ainda hoje existe uma forte capa que vela a vida íntima da aristocracia europeia, e que entretanto está a desaparecer paulatinamente no mundo da moda, cinema e televisão. Persiste também o segredo no futebol, e em certos círculos sabe-se que algumas relações de jogadores de futebol são artificiais, combinadas entre agentes dos desportitas e agentes de modelos femininas ou de artistas pop, para encobrir a verdadeira natureza desses homens. Quem frequenta certos círculos ou pontos turísticos do Mediterrâneo ou dos EUA sabe que por vezes está tudo à vista mas há um silêncio da imprensa cor-de-rosa quando o tema é a inclinação para o mesmo sexo de aristrocratas, políticos ou futebolistas. Recordo, por exemplo, que estava em Londres quando um membro da família real do Omã se envolveu numa rixa por ciúmes do companheiro, no conhecido bar G-A-Y. Há dez anos, um embaixador em Lisboa convidou um homem da minha família, então cabo, para ser seu amante e abandonar a carreira, a troco de um bom ordenado. Esse embaixador vivia com uma modelo, bem paga para simular o casamento.

Se agora a mentira persiste, que dizer de há cem anos?

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para Zephyrus:

No que respeita a futebolistas, temos um caso muito actual e muito conhecido. Que, aliás, nem chega a ser verdadeiramente um segredo, pelo menos para os iniciados.