terça-feira, 6 de maio de 2014

PAGLIACCI




O primeiro-ministro, rodeado pelos membros do Governo, anunciou solenemente ao país, anteontem, que Portugal sairia do programa de assistência financeira sem necessidade de recurso a qualquer programa cautelar, aquilo a que tem chamado uma saída "limpa". Tal proclamação não constituiu, porém, novidade já que se esperava essa decisão, determinada mais pela vontade dos credores internacionais (a quem não interessava agora a criação de um novo sistema de protecção) do que pela vontade do Executivo, ainda que a medida lhe possa hipoteticamente granjear votos no próximo acto eleitoral. E não obstante se terem erguido autorizadas vozes discordantes, que teriam preferido uma saída protegida, digamos, uma saída "suja".

Todavia, esta exultação do Gabinete é penosa e risível, já que os portugueses (a maioria deles) continuam amarrados a uma austeridade excessiva e infrutífera que se prolongará para além da saída da troika, conforme defende o chefe do Governo (se este entretanto não for substituído), consubstanciada no Documento de Estratégia Orçamental (DEO) e na carta de intenções endereçada ao Fundo Monetário Internacional, mesmo que esta não contenha, conforme afirmou ontem a ministra das Finanças, mais do que o compromisso de "manter as reformas já implementadas e de avançar com as que foram anunciadas". Em condições "normais", continuaremos, pois, a ser periodicamente avaliados pelos nossos credores por mais uns vinte ou trinta anos. E quando escrevo em condições "normais", refiro-me à manutenção do status quo, cuja duração aliás não se prevê se prolongue por tanto tempo. A implosão da União Europeia, um cataclismo nos mercados, uma guerra na Europa ou mesmo uma terceira guerra mundial levarão à modificação radical das regras de jogo vigentes.

A proclamação supracitada do primeiro-ministro foi acompanhada de um leque de considerações sobre a situação económica e social, no estilo que já conhecemos e a que já estamos habituados. Passos Coelho permite-se dizer numa mesma semana tudo e o seu contrário. Primeiro, não haveria mais impostos para 2015; afinal, não só se manterão as taxas existentes (que deveriam terminar com o fim do programa de ajustamento) como o IVA sobe para 23.25 %. Primeiro, seria aumentado o salário mínimo; afinal, diminui, com o aumento da TSU dos trabalhadores para 11.2%. A contribuição extraordinária de solidariedade (CES) sobre as pensões, que deveria terminar com a saída da troika, mantém-se para o próximo ano praticamente idêntica com o novo nome de contribuição de sustentabilidade. Etc., etc., etc...



Pagliacci, de Leoncavallo - Jon Vickers no papel de Canio - Orquestra do Teatro alla Scala, direcção musical de Herbert von Karajan - Encenação de Paul Hager (1968)  - A 13' 31''


Vivemos num reinado de mentira e o princípio da confiança é sistematicamente atraiçoado com a maior leviandade. O exercício da política confunde-se com uma prática "clownesca", que só divertiria se não estivesse em causa a vida e a dignidade das pessoas. Seria avisado que o primeiro-ministro colhesse o conselho de Canio na ópera Pagliacci: «Un tal gioco, credetemi, È meglio non giocarlo.» Possivelmente, não conhece a ópera, e se porventura a conhece não lhe importa o aviso do palhaço. Lamentável, porque quando se der conta da realidade só ouvirá, também de muitas outras e notáveis óperas: «È tardì!».

Não sabemos que surpresas nos reservará o Orçamento de Estado para 2015. Todos os receios são poucos.  Será o presente Governo a elaborá-lo, já que certamente não se demitirá, mesmo que o resultado das eleições europeias lhe seja funesto. Mas importa que os portugueses nelas demonstrem a clara condenação de uma política errática (mesmo quando intencional), incompetente e subserviente de interesses alheios aos da generalidade da população. Os portugueses não serão absolvidos pela História se não se verificar uma clara derrota nas urnas da actual maioria governamental.

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