domingo, 8 de maio de 2011

O CEMITÉRIO DE PRAGA



Foi publicada há dias a tradução portuguesa do último livro de Umberto Eco, O Cemitério de Praga. Trata-se de um grosso volume, de perto de 600 páginas, na linha das anteriores obras de ficção do autor, desde o seu primeiro e grande êxito editorial, O Nome da Rosa. Umberto Eco alia à intriga romanesca uma espantosa erudição, aliás própria de um mestre de Bolonha. (Qualquer semelhança com o "Processo de Bolonha" é pura e lamentável coincidência). Contudo, convém dizer desde já duas coisas. Primeiro, que a abundância de pormenores que recheiam o livro não só não facilita a leitura como a torna, por vezes, fastidiosa; com 200 páginas a menos a obra lucraria bastante em compreensão sem prejudicar quer o enredo, quer os detalhes que o autor julga indispensáveis, quer mesmo a mensagem que Eco pretende transmitir. Em segundo lugar, a tradução não é propriamente exemplar, e a designação de muitas instituições e cerimónias e de muitos acontecimentos históricos tem na língua portuguesa expressões já consagradas que o tradutor não utilizou, encontrando certamente equivalentes ad hoc da língua italiana. Apenas um exemplo: onde se lê Superior Artífice do Universo deveria estar Supremo Arquitecto do Universo.

No livro agora editado em Portugal, e cuja acção decorre no final do século XIX, cria Eco uma figura sui generis, Simone Simonini, falsário e espião, protagonista das mais variadas e inverosímeis façanhas, que permite ao autor discorrer sobre a sociedade contemporânea com a distância de um século e criticá-la com uma ironia feroz . Não perde Eco a oportunidade de jogar com os nomes das personagens e das pessoas reais. Recordemos o célebre monge cego de O Nome da Rosa, apelidado por Eco de Jorge de Burgos e que não era mais do que uma caricatura um pouco maldosa do célebre escritor, também cego, Jorge Luís Borges. Como agora o dr. Froïde é Freud.

Simonini, espião a tempo inteiro, navega entre o Piemonte, a Sicília e a França, intrigando, falsificando, assassinando e registando, finalmente, no seu diário as aventuras da sua existência e das do seu duplo, o abade Dalla Piccola,

O protagonista, influenciado pelas ideias de seu avô, é um feroz adversário dos jesuítas (um houve que o assediou quando era jovem, mas isto não passa de um pormenor), dos maçons e dos membros de todas as sociedades secretas e, muito especialmente, dos judeus. Aliás, a obra poderia passar por um requisitório anti-semítico,  tais as acusações de que são objecto os filhos de Israel, mas Eco afirma que apenas pretendeu "dar um soco no estômago do leitor", ao criar a personagem repugnante e cínica por excelência de Simonini. Nem todos são dessa opinião, a começar pelo escritor e jornalista francês  (e judeu) Pierre Assouline, que no seu blogue "La république des livres" acusa Umberto Eco de se entregar a um jogo ambíguo.

Para lá das peripécias políticas, militares, jurídicas, amorosas e j'en passe do livro, o cerne da obra é a invenção por Simonini de uma reunião secreta que teria tido lugar em 1800 no cemitério (judaico) de Praga, onde 13 rabinos teriam conspirado para dominar o mundo, em torno da tumba do rabino Simeão Ben-Yehuda, e a que ele  chamou "protocolos praguenses"..

Cemitério judaico de Praga

Pelo romance perpassam muitas personagens, entre as quais Léo Taxil, ex-maçon, convertido ao catolicismo que depois haveria de renegar. Taxil, é uma figura real (como as demais, segundo Eco, salvo o próprio Simonini) e bem conhecida, de que uma das obras, em dois volumes, até está traduzida em português: Os Mysterios da Franc-Maçonaria.



(Clique na imagem para ver melhor)

Esta criação de Simonini, serviria ao seu autor não só para testemunhar o ódio aos judeus mas igualmente para, ao traficá-la, realizar consideráveis proventos. Haveria, finalmente, de ser vendida aos russos, a braços com o terrorismo interno e acabaria, segundo Eco, por dar origem ao livro, editado na Rússia em 1905 e logo difundido por todo o mundo, até hoje, Os Protocolos dos Sábios de Sião.

Escreve Eco, pela boca de Simonini, a propósito dos hebreus: «É necessário um inimigo para dar ao povo uma esperança. Alguém disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais envolve-se habitualmente numa bandeira, e os bastardos remetem-se sempre para a pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Ora, o sentido da identidade funda-se no ódio, no ódio por quem não é idêntico. é necessário cultivar o ódio como uma paixão civil. O inimigo é o amigo dos povos. Faz falta sempre alguém a quem odiar para nos sentirmos identificados na própria miséria. O ódio é a verdadeira paixão primordial. É o amor que é uma situação anómala. Por isso, Cristo foi morto: falava contra-natura. Não se ama alguém para toda a vida; dessa esperança impossível nascem o adultério, o matricídio, a traição do amigo... Pelo contrário, pode odiar-se alguém durante toda a vida. Desde que esteja sempre lá, para reacender o nosso ódio. O ódio aquece o coração.» (página 432)

Num enredo recheado de rituais satânicos (a faceta medieval de Umberto Eco já utilizada em O Nome da Rosa), o protagonista vai melhorando a sua versão dos "protocolos praguenses" até a vender, no final, ao espião russo Golovinski, um jovem mujique flácido e míope, mas astuto, que lhe exige uma versão melhorada  da história, para satisfazer o interesse da polícia secreta do Czar.

Transcreve-se um dos parágrafos (páginas 526 e 527) da versão definitiva proposta por Simonini (sobre os judeus): «"Quando estivermos no poder, retiraremos dos programas educativos todas as matérias que possam perturbar o espírito dos jovens e vamos reduzi-los a crianças obedientes, que amarão os seus soberanos. Em vez de os fazer estudar os clássicos e a história antiga, que contêm mais exemplos maus do que bons, vamos fazê-los estudar os problemas do futuro. Apagaremos da memória dos homens a recordação dos séculos passados, que poderia ser desagradável para nós. Com uma educação metódica, saberemos eliminar os resíduos daquela independência de pensamento da qual nos temos servido para os nossos fins desde há muito tempo... Vamos aplicar uma dupla taxa sobre os livros com menos de trezentas páginas, e estas medidas obrigarão os escritores a publicar obras tão longas que terão poucos leitores. Nós, pelo contrário, publicaremos obras baratas para educar a mente do público. A taxação determinará uma redução da literatura prazenteira, e ninguém que nos deseje atacar com a sua pena encontrará um editor." Quanto aos jornais, o plano hebraico prevê uma liberdade de imprensa fictícia, que sirva para maior controlo das opiniões. Dizem os nossos rabinos que teremos de açambarcar o maior número de periódicos, de maneira que exprimam opiniões aparentemente diversas, para dar a impressão de uma livre circulação de ideias, embora, na realidade, todos reflectirão as ideias dos dominadores judaicos. Observam que comprar os jornalistas não será difícil, porque constituem uma Maçonaria e nenhum editor terá a coragem de revelar a trama que os liga a todos ao mesmo carro, porque ninguém é admitido no mundo dos jornais que não tenha tomado parte em algum negócio duvidoso na sua vida privada. "Naturalmente, ter-se-a de proibir todos os jornais de dar notícias de crimes, para que o povo creia que o novo regime até acabou com a delinquência. Mas não nos devemos preocupar demasiado com as obrigações impostas á imprensa, porque o povo não se dá conta se a imprensa é livre ou não, agrilhoado que está ao trabalho e à pobreza. Que necessidade tem o proletário trabalhador de que os tagarelas tenham o direito de palrar?"»

Estes seriam alguns dos princípios de um governo mundial dominado pelos judeus, que haveriam de ficar cristalizados nos célebres Protocolos dos Sábios de Sião,  e que Umberto Eco aproveita como enredo do seu romance.  Os Protocolos tiveram, e continuam a ter, uma espantosa difusão pelo mundo, e até Hitler os citou na sua obra matriz do nazismo Mein Kampf. Todavia, são considerados hoje uma falsificação da polícia czarista.

É claro que qualquer semelhança entre o texto que se transcreveu e a realidade actual é pura coincidência.

2 comentários:

Anónimo disse...

Tal qual como acontece hoje em dia. Umberto Eco, com a sua ironia mordaz, traçou neste livro um verdadeiro retrato da sociedade comtemporânea.

Monge laico disse...

"a abundância de pormenores que recheiam o livro não só não facilita a leitura como a torna, por vezes, fastidiosa; com 200 páginas a menos a obra lucraria bastante em compreensão sem prejudicar quer o enredo, quer os detalhes que o autor julga indispensáveis, quer mesmo a mensagem que Eco pretende transmitir" Aí não seria Eco, mas um autor qualquer. O que você aponta como fastidioso é para nós, fãs do Eco, fascinantes referências espalhadas por ele ao longo de seus romances. Como ele mesmo já disse, há os que apreciam parques de diversões e os que preferem escalar montanhas. Seus leitores são do segundo tipo.