quinta-feira, 12 de junho de 2025

O REGRESSO DE D. SEBASTIÃO

Em Junho de 2000, passam agora precisamente 25 anos, Maria Moura-Botto publicou O Regresso de D. Sebastião, um romance histórico que glosa a possível sobrevivência de D. Sebastião a Alcácer Quibir, a sua vagabundagem pelo mundo e, finalmente, a sua não morte.

Este livro é mais uma obra das muitas existentes e que constituem variações sobre o Encoberto, aproveitando-se das lacunas e imprecisões dos documentos históricos relativos ao rei português. Todavia, ao construir a sua narrativa, a autora aventurou-se por campos demasiado exóticos, tornando a ficção de tal modo fantasiosa que resulta incredível a história que nos é proposta. A questão reside no facto de um romance histórico, ao evocar circunstâncias históricas, ter de apoiar-se na própria história e não misturar os registos: à história o que é da história e à ficção o que é da ficção. Para isso convém investigar cuidadosamente antes de se começar a escrever.

Dou um exemplo (página 33): com a preocupação de encontrar paixões femininas de D. Sebastião, aspecto desconhecido na personalidade do rei, como bem observou o Professor Queiroz Veloso naquela que é ainda a grande biografia de referência, a autora atribui ao monarca uma inclinação por Juliana de Castro, herdeira da Casa de Aveiro. Ora há aqui uma manifesta confusão. Como já expliquei em comentários a livros anteriores, a donzela a quem D. Sebastião poderia ter dispensado alguma atenção era Joana de Castro, filha do 4º Conde da Feira (o Conde de Sabugosa refere-se ao caso) e não Juliana. A Juliana de quem se falou como uma possível interessada no casamento com o rei era Juliana de Lencastre, filha do 2º Duque de Aveiro, que era o principal interessado no enlace. Mesmo em ficção, importa pois não misturar Juliana com Joana e Castro com Lencastre.

Perpassa também pelo livro uma personagem improvável, William Trevor, dito Jaime Tempestade, um espião ao serviço de Isabel I de Inglaterra. 

A narrativa relativa à vida do rei até à batalha de Alcácer, e mesmo durante a batalha, apesar de imprecisões e confusões, segue nas linhas gerais, a história oficial. A fantasia começa no pós-batalha. É claro que muita gente sustenta que D. Sebastião não morreu em Alcácer, apoiando-se no relato que menciona que, na noite da batalha, alguns homens conseguiram lhes fossem abertas as portas da fortaleza de Arzila por no seu grupo se incluir o rei. Já comentei o caso  em posts anteriores. Tratou-se de um ardil de alguns sobreviventes e o homem embuçado (o pretenso rei) seria posteriormente identificado. Tratou-se de um estratagema para conseguirem que as portas, cuidadosamente fechadas, lhes fossem abertas. Segundo a história oficial, o assunto está encerrado, mas poderá, naturalmente, subsistir uma dúvida.

O que se afigura muito fantasioso é que na sua peregrinação (de arrependimento) após a tragédia de Alcácer Quibir D. Sebastião tenha viajado para a Abissínia, para a Arábia, a Pérsia, a Índia, o Sião em aventuras mirabolantes. Que tenha expurgado o seu misoginismo e se tenha apaixonado pela irmã do Negus, Magdala,  com quem casou e de quem teve um filho, e que, morta esta numa batalha, tenha abandonada a criança para prosseguir as suas aventuras, disfarçado de mercador italiano.

Aventuras que o hão de levar a Veneza, e aqui a história começa a socorrer-se da história (que também já comentei em outros posts) do 4º falso D. Sebastião. Neste caso, o rei é libertado das prisões de Veneza e pretende sair de Itália para pedir ajuda ao soberano francês. Após várias peripécias, semelhantes às descritas por outros autores, acaba por ficar prisioneiro do vice-rei de Nápoles, o Conde de Lemos, que virá a reconhecê-lo dado ele ter identificado objectos oferecidos outrora. Mas como Nápoles depende de Espanha, Lemos é forçado a devolver a Madrid o suposto rei, cuja existência incomoda Filipe III. Propõe-se então enviar a Espanha o calabrês Marco Tulio Catizone que, segundo a história oficial, era realmente o 4º falso D. Sebastião, a quem convence a desempenhar o papel do autêntico D. Sebastião. Catizone é enviado ao Duque de Medina Sidonia, para sossego de Filipe III, sendo executado em Sanlúcar de Barrameda. 

Quanto a D. Sebastião, Lemos remete-o para um mosteiro perto de Ávila, onde passa a residir com o nome de Frei Jerónimo. E onde um emissário do Escorial se desloca periodicamente para saber do seu estado. É nesse mosteiro que, fantasticamente, é visitado um dia por aquela estranha personagem, William Trevor, o espião inglês do princípio do livro, que o consegue exfiltrar do mosteiro. Viajam então, disfarçados, para Lisboa, cidade que D. Sebastião visita incógnito antes de embarcar para Londres, a fim de conhecer novos mundos.

A autora, para a elaboração deste romance dito histórico, recorre obviamente à história oficial, às construções ficcionais já elaboradas sobre o assunto e a uma dose de fantasia pessoal. Mas a articulação de tudo isto é deficiente, resultando numa confusão de situações e de personagens. Tarefa impossível, porque as narrativas ficcionais utilizadas divergem na finalidade não sendo possível harmonizá-las.

Segundo Maria-Moura-Botto, D. Sebastião fica livre e é Catizone o supliciado em Sanlúcar.

Segundo os escritos da Duquesa de Medina Sidonia, é o próprio D. Sebastião que é executado.

Segundo Belard da Fonseca (ver), que explicita devidamente as suas convicções, o prisioneiro de Veneza era, de facto, D. Sebastião que teria sido trocado por Catizone com a finalidade de salvar-lhe a vida.

Com todas estas estórias se construiu o Sebastianismo. 

 

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