segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

D. SEBASTIÃO, ANTES E DEPOIS DE ALCÁCER-QUIBIR (BELARD DA FONSECA)

Em 1978, António Belard da Fonseca publicou a obra em dois volumes Dom Sebastião, Antes e Depois de Alcácer-Quibir, sobre a vida e a pós-vida do sempre lembrado monarca português.

No Primeiro Volume o autor trata do nascimento, educação, feitos do reinado e iconografia do rei e das causas e ocorrência da batalha de Alcácer-Quibir. No Segundo Volume são abordadas as origens do Sebastianismo, o aparecimento dos falsos "Dom Sebastião" e a investigação nos arquivos nacionais e estrangeiros.

Por se tratar de matéria já comentada anteriormente a propósito de livros sobre idêntico tema - que continuaremos a analisar -  limitar-nos-emos a referir os aspectos singulares da obra agora em apreço.

Escreve António Belard da Fonseca no Prefácio: «Efectivamente, no meio dessas centenas de livros, artigos, notas ou simples referências, apenas se destacam, pela análise documentada e generosa e patriótica intenção, a notável obra de Costa Brochado e o interessantíssimo estudo de Costa Ramalho.»

O livro de Costa Brochado é D. Sebastião, O Desejado, sobre o qual escrevermos oportunamente; o estudo de Costa Ramalho (Manuel) é um texto (O Desejado) publicado no Guia de Portugal Artístico. Parece que Belard da Fonseca se esqueceu (1978) das obras mais importantes já então publicadas sobre D. Sebastião.

Afirma ainda o autor no Prefácio que foi a contemplação do epitáfio no túmulo de D. Sebastião nos Jerónimos que deu origem ao seu trabalho, deixando supor que duvida da autenticidade dos seus restos mortais (provavelmente mesmo da sua morte em Alcácer-Quibir).

Do Primeiro Volume, a Primeira Parte incide sobre "Dom Sebastião" e a Segunda Parte sobre "A Batalha de Alcácer-Quibir".

Sobre o nascimento, mocidade e educação do rei (Capítulo I), Belard da Fonseca segue, em geral, a narrativa que já conhecemos. O Capítulo II é dedicado à pessoa do soberano e ao seu temperamento, compreendendo as doenças, os casamentos malogrados e os amores desconhecidos. 

Começa o autor por tecer considerações infundadas sobre os críticos de D. Sebastião: «E se os feitos pelos escritores que o conheceram  - ou os daqueles que, posteriormente, se inspiraram nessas obras - ainda se revestem de certo valor histórico e iconográfico, os dos historiadores e romancistas e os dos clínicos dos séculos XIX e XX são quase sempre destituídos de qualquer mérito especial ou fundamento sério. Estes últimos "retratos" do infeliz soberano são, realmente, pintados com as tintas das ideias políticas, dos devaneios literários, ou das fantasias pseudo-científicas ou psiquiátricas do seus autores, pelo que nos dão uma imagem imperfeita do retratado ou, pior ainda, inteiramente deformada.» (p. 32)

Cita Belard da Fonseca vários escritos sobre a personalidade de D. Sebastião, enaltecendo os que louvam as virtudes do monarca mas menosprezando aqueles que não suportam a sua visão laudatória do monarca, como Manuel Bento de Sousa, Camilo Castelo Branco, Sampaio Bruno, Costa Lobo, António Sérgio, Ricardo Jorge ou Montalvão Machado. Mas aceita o juízo de Alexandre Herculano. E, valha-nos isso, concorda com a opinião de Queiroz Veloso e subscreve o parecer de Moura Relvas (já comentado neste blogue). 

Sobre as doenças, o autor nada adianta em relação aos testemunhos conhecidos, embora insista em negar a impotência do rei.

Quanto aos malogrados casamentos, também o autor elenca os nomes das (im)prováveis noivas. Margarida de Valois, a arquiduquesa Isabel de Áustria e a infanta Isabel Clara Eugénia, escolhidas por terceiros, é certo, embora no caso da última D. Sebastião tivesse solicitado a sua mão a Filipe II em Guadalupe. Já por sua iniciativa, D. Sebastião propôs casamento à filha do Grão-Duque da Toscana (enquanto negociava com o tio Filipe II o casamento com sua prima Isabel Clara Eugénia) mas apenas com a intenção de obter apoio para a expedição a África (Belard não refere este pormenor, insistindo em que o rei não era de algum modo avesso ao casamento). 

Sobre os amores desconhecidos de D. Sebastião, menciona o autor uma princesa moura (Xerine, filha do derrotado Muley Mohammed), a filha do duque de Aveiro (D. Juliana) e até D. Joana de Castro, filha dos condes da Feira. A estes "amores" ter-se-ão referido o visconde da Juromenha e até Frei Luís de Sousa. Da leitura de obras anteriores, parece que estas alusões não passarão da imaginação fértil daqueles que as mencionam. É por demais conhecida a misoginia de D. Sebastião, dir-se-ia mesmo a sua aversão às mulheres, conforme testemunham algumas das biografias eruditas que comentámos anteriormente.

O Capítulo III intitula-se "Os Gloriosos Feitos Guerreiros do seu Reinado e os Actos Mais Notáveis da sua Administração". Escreve o autor: «E, todavia, tratou-se na realidade de um dos períodos mais brilhantes (se esquecermos, por momentos, a Gesta dos Descobrimentos) da História dos Portugueses. As graves consequências dessa derrota e a perda da independência da Pátria, como que ofuscaram da mente dos modernos historiógrafos - mesmo dos poucos verdadeiramente imparciais - a marcha gloriosa deste pequeno-grande Povo que, com escassa gente e fracos meios, se impôs em todas as partes do Mundo.» (p. 73) E menciona os feitos dos portugueses desde 1568 a 1574. Refere igualmente a Lei de 28 de Abril de 1570, que impõe rigorosas medidas de austeridade (algumas idiotas) que nunca foram verdadeiramente aplicadas e caíram rapidamente em desuso.

O Capítulo IV é dedicado à "Iconografia de D. Sebastião e seus Pais". O livro inclui reproduções de retratos de D. Sebastião, de D. Joana de Áustria, sua mãe e de D. João Manuel, seu pai. Os retratos do rei apresentados são os do Mosteiro das Descalzas Reales, de Madrid, por Cristóvão de Morais; do Museu Nacional de Arte Antiga, por Cristóvão de Morais (que Belard da Fonseca atribui erradamente a Cristóvão de Figueiredo); do Museu San Telmo, de San Sebastián, por Alonso Sánchez Coello (o retratado é muito improvavelmente D. Sebastião); do Kunsthistorisches Museum, de Viena, por Alonso Sánchez Coello (igualmente improvável que o retratado seja D. Sebastião); da colecção do arquiduque Fernando do Tirol, sem indicação de localização e autor, que Belard da Fonseca apresenta como sendo do rei; e o de Hieronymus Cock, que Belard da Fonseca indica encontrar-se em Viena, embora haja informação de que pertence a uma colecção particular portuguesa. Segundo José de Figueiredo, que foi o primeiro director do Museu Nacional de Arte Antiga, apenas as duas pinturas de Cristóvão de Morais e a gravura de Cock podem ser considerados retratos autênticos de D. Sebastião.

Na Segunda Parte, o autor trata das causas da batalha (Capítulo I), do desaparecimento e morte do rei (Capítulo II), da identificação do cadáver (Capítulo III) e do funeral nos Jerónimos (Capítulo IV).

Sobre as causas próximas e remotas da guerra em África e motivos da derrota, Belard da Fonseca acompanha, em geral, os relatos de Queiroz Veloso e Alfonso Danvila, embora enfatize sempre a necessidade de se combaterem os mouros, o perigo turco e a manifesta vontade dos portugueses na realização da expedição e justifique, na sua opinião pelas melhores razões, a decisão de D. Sebastião. Sabemos que a verdade histórica é bem diferente, mas importa compreender que a publicação desta obra se destina, acima de tudo, a "reabilitar" a figura do monarca português. O autor recusa admitir a obstinação, a arrogância e vaidade do rei. Insiste Belard que a causa da derrota em Alcácer-Quibir foi a decisão de tomar Larache por terra, devido à falta do prometido auxílio naval de Filipe II. Ora sabemos que a generalidade dos nobres portugueses que acompanhavam D. Sebastião procurou, debalde, a conquista marítima, para a qual existiam meios, e que foi a teimosia do rei, desejoso de confrontar pessoalmente Abd el-Malik, que prevaleceu na decisão de realizar a malograda expedição terrestre, olvidando Larache e embrenhando-se na planície de Alcácer-Quibir.

No Capítulo II, o autor esclarece que utilizará apenas elementos de Frei Bernardo da Cruz, Jerónimo de Mendonça e Miguel Leitão de Andrada, no que respeita ao desaparecimento ou morte de D. Sebastião, pois que as narrativas dos autores seiscentistas, setecentistas e oitocentistas ou mesmo as do nosso tempo não lhe merecem grande crédito. Mas recorre ao espanhol Luís de Oxeda, que combateu em Alcácer-Quibir [publicação de 1904, ao que presumo], que a certa altura afirma que D. Sebastião foi degolado, o que inviabilizaria, naturalmente, o reconhecimento do cadáver. Cita também Salvador de Medeiros, criado do cardeal D. Henrique, António de Escovar, então em Marrocos, D. João de Castro, filho de D. Álvaro de Castro, salientando que Luís de Brito, Jorge de Albuquerque Coelho e Sebastião Figueira viram o rei, embora em ocasiões distintas, já fora do campo de batalha e livre de mouros, e segundo Figueira, com alguns fugitivos, e segundo Oxeda, a caminho de Arzila (na outra hipótese de D. Sebastião não ter sido degolado). Esta é  velha tese do "embuçado" chegado a Arzila, que já comentámos em posts anteriores. Também Diogo Barbosa Machado, em Memorias para a Historia de Portugal, que comprehendem o governo d'el-rei D. Sebastião, unico do nome, desde o anno de 1554 até o de 1561, publicadas de 1736 a 1751, considera que a precipitação de D. Diogo de Sousa partir com a armada rapidamente de Arzila só se explica por ter a bordo D. Sebastião. Belard insiste que a identidade posteriormente divulgada do "embuçado" como sendo Diogo de Melo apenas teve lugar muito mais tarde, na Historia general del mundo del tiempo del rey Felipe II, desde 1559 hasta su muerte, (1601-1612), de Antonio de Herrera. Acrescenta Belard que Herrera não se refere a Diogo de Melo na edição de 1601 mas apenas na 2ª edição de 1606, pois nessa altura já tivera lugar a execução do "4º falso D. Sebastião", em 1603, em Sanlúcar de Barrameda. Segundo o autor, também o historiador espanhol Ignacio Bauer y Landauer (1891-1961) observa, em Miscelanea histórica referente al rey Don Sebastián, citando uma obra da época de Alcácer, que o médico Mendez Pacheco foi castigado em vida do cardeal D. Henrique por ter dito que D. Sebastião estava vivo e por ter tratado as suas feridas. Ainda Belard transcreve passagens da Historia Sebastica (1735), do monge cisterciense Frei Manuel do Santos.

Conclui Belard da Fonseca que em face dos elementos históricos disponíveis não se pode afirmar que D. Sebastião morreu em Alcácer-Quibir.

O Capítulo III reporta-se à inscrição "Si vera est fama" existente no no túmulo de D. Sebastião no Mosteiro dos Jerónimos. Logo, sobre a dúvida dos restos mortais do rei se encontrarem no sarcófago. Belard da Fonseca divide o assunto em três partes: 1 - O pretendido achamento do corpo do rei; 2 - A sumária identificação do cadáver; 3 - A marcha do corpo de Alcácer até Ceuta.

Segundo  a narrativa aceite, na manhã de 5 de Agosto, dia posterior à batalha, Sebastião de Resende, moço de câmara do rei, comunicou ao novo xerife que tinha reconhecido D. Sebastião entre os mortos, oferecendo-se para ir buscar o cadáver, para o que lhe foi dada uma mula e escolta. E trouxe um corpo completamente nu para a tenda de Muley Ahmed. O soberano ordenou então a alguns fidalgos prisioneiros que procedessem ao reconhecimento do cadáver: D. Duarte de Meneses, D. Jorge de Meneses, D. Constantino de Bragança, D. Nuno de Mascarenhas, D. António de Noronha, João Rodrigues de Sá, D. Duarte de Castelo Branco e Belchior do Amaral. O corpo apresentava vários fermentos, um dos quais muito profundo do lado direito, e também na cabeça. No dia 7, antes de meterem o corpo no caixão, foi solicitada a presença de dois portugueses para nova identificação. Um não compareceu por estar ferido (Fernão da Silva), o outro quando viu o cadáver não o reconheceu, por se encontrar em adiantada decomposição (Martim de Castro dos Rios). Então, o corpo foi coberto por uma grande porção de cal e o caixão transportado para Alcácer-Quibir. O autor transcreve as afirmações de Leitão de Andrada, Jerónimo de Mendonça e Frei Bernardo da Cruz, que têm alimentado a narrativa oficial, e também a de Luís de Oxeda, testemunha presencial, que declara que o corpo só chegou à tenda do Xerife às oito da noite. E que era um mouro quem trazia o cadáver e que Sebastião de Resende se limitou ao reconhecimento prévio ao dos fidalgos por ser moço de câmara e poder reconhecer os sinais físicos e íntimos do rei. [Aqui Belard releva a falta de rigor desta interpretação, pois é dado como adquirido que D. Sebastião, por um excesso de pudor, nunca se despia nem mesmo diante de criados, apenas perante os médicos].  

Contesta Belard da Fonseca o valor probatório do depoimento de Sebastião de Resende, que se ofereceu ao Xerife para reconhecer o corpo em troca da liberdade, e interroga-se como tenha o seu testemunho podido servir aos cronistas e escritores posteriores. Opina, assim, que a verdade deve estar com Oxeda. 

Menciona ainda o autor um texto de Pedro Matheo (Histoire des Derniers Troubles de France, c. 1606) em que este refere uma conversa entre o Príncipe de Condé, Henri de Bourbon e o Padre José Teixeira, erudito português muito considerado na corte de Henrique IV. Nesse trecho, é afirmado que o "ce cadavre qui fut enterré en Betheleem, comme sien [de D. Sebastião], en Janvier 1583, était celui d'un Suisse, aussi l'appellaient commument les Portugais.»

Como é sabido, o corpo foi transportado, em 7 de Agosto, para uma dependência da casa do alcaide de Alcácer -Quibir. Estavam presentes dois cativos chamados para o efeito: Fernão da Silva e Martim de Castro, que deveriam proceder a nova identificação, o que se revelou inútil dada o rosto se encontrar já irreconhecível. O corregedor da Corte, Belchior do Amaral, acompanhou o cadáver, tendo sido logo libertado e indo dar a notícia a Arzila e Tânger. Belard da Fonseca considera-o uma personagem muito duvidosa e oportunista.

Antes de concluir este capitulo, Belard da Fonseca fornece uma informação que não consta das obras anteriormente comentadas neste blogue (pp. 160-1):

«Em 28 de Agosto, D. Henrique é aclamado rei e começa logo a fazer diligências, a fim de resgatar o corpo sepultado em Alcácer, encarregando dessa missão Frei Roque, religioso da Ordem da Santíssima Trindade, residente em Ceuta o qual foi autorizado a oferecer ao xerife uma importância até setenta mil cruzados. Surge, porém, nessa altura, uma situação absolutamente anormal e estranha. É que um estrangeiro, de nome André Gaspar Corso, comerciante genovês que vivia em Marrocos, faz também negociações por sua conta, para esse resgate, obtendo do sultão a promessa de só lhe entregar, a ele, o referido cadáver. Os cronistas, ao mencionarem tal actuação misteriosa - tanto mais que, juntamente com essa entrega, o genovês negociava a de D. João da Silva, embaixador de Espanha em Lisboa, feito prisioneiro na batalha, o que mostrava não ser Filipe II alheio ao negócio - concluem, apenas, que Gaspar Corso pretendia obter as boas graças do soberano espanhol. O certo é que foi este genovês quem foi a Alcácer buscar o corpo, dito de D. Sebastião, acompanhando-o cinco fidalgos portugueses, já resgatados, e o citado diplomata espanhol, sendo aquele, igualmente, quem o veio a entregar a Frei Roque, na cidade de Ceuta. O certo é, também, que esse restos mortais não vieram, para Portugal, senão passados quase cinco anos (o que se torna inexplicável, em face das diligências de D. Henrique), quando já tinha morrido o Cardeal e era novo rei Filipe II de Espanha. Por que vieram essas ossadas, em fins de 1582, para Lisboa, compreende-se perfeitamente; mas que as não tenham trazido, em Dezembro de 1578, é que faz pensar num motivo oculto.»

Entende o autor que a intenção de Gaspar Corso era a de que o corpo fosse entregue a Filipe II e não a D. Henrique, visto que aquele pretendia conduzi-lo para Castela. Mas o rei de Espanha reconsiderou, e como se aprestava a tornar-se rei de Portugal, entendeu que seria preferível que os restos mortais permanecessem em Ceuta, para só posteriormente serem trasladados para Lisboa. E conclui que o facto das ossadas terem permanecido em África quase cinco anos (o tempo normal para a desagregação do esqueleto) confirma que Filipe II, ao contrário de D. Henrique, tinha dúvidas sobre a sua autenticidade.

O Capítulo IV trata do funeral de "D. Sebastião". Em Dezembro de 1582, sendo Filipe II já rei de Portugal e encontrando-se em Lisboa, o duque de Medina Sidónia foi buscar os restos mortais a Ceuta. A esquadra aportou ao Algarve, tendo o féretro sido desembarcado em Faro a 7 desse mês. Depois das cerimónias fúnebres, o funeral seguiu para Tavira, Beja e Évora, onde chegou no dia 9, sendo aguardado pelo arcebispo, D. Teotónio de Bragança. Após algumas missas, o cortejo dirige-se a Almeirim, onde é incorporado no préstito o corpo do cardeal D. Henrique, que ali estava sepultado. O funeral desce então o Tejo até Belém,  e a 20 de Dezembro são sepultados nos Jerónimos D. Sebastião, D. Henrique, bem como os restos mortais de alguns infantes, filhos de D. Manuel I e de D. João III, que se encontravam em Évora. 

O autor, contra algumas opiniões já expressas, defende que as ossadas dos infantes que se encontravam em Évora foram aí misturadas, intencionalmente, no caixão em que vinham os restos mortais atribuídos a D. Sebastião. No túmulo do rei foi colocado este epitáfio: HOC JACET IN TUMULO (SI VERA EST FAMA) SEBASTUS QUEM DICUNT LYBICIS OCCUBUISSE PLAGIS. Todavia, no túmulo de mármore hoje existente, mandado construir por D. Pedro II, a inscrição é a seguinte: CONDITVR HOC TVMVLO, SI VERA EST FAMA, SEBASTVS/ QUEM TVLIT IN LIBICIS MORS PROPERATA PLAGIS/ NEC DICAS FALLI REGEM QVI VIVERE CREDIT/ PRO LEGE EXTINCTO MORS QVASI VITA FVIT (Guarda-se neste túmulo (se é verdade o que se diz) Sebastião a quem a morte prematura levou nas plagas da Líbia. Não digas que se engana aquele que crê viver o rei para o morto, pela lei cristã, a morte é como se fosse a vida). [Tradução do autor].

António Belard da Fonseca discorda que o primeiro epitáfio tenha podido existir, não só porque as ossadas de D. Sebastião estavam encerradas num caixão de madeira, insusceptível de gravação, mas porque Filipe II nunca teria permitido a inscrição "si vera est fama", que colocaria em dúvida a autenticidade dos restos mortais. Explica depois que o primeiro epitáfio, mencionado na História Sebástica (1735),  de Frei Manuel dos Santos, é uma invenção deste, possivelmente devida a confusão decorrente da consulta de obras anteriores. A mudança dos ossos do caixão de madeira para o mausoléu de mármore, em 1682, efectuada em cerimónia privada, deve ter obedecido à comemoração do primeiro centenário da trasladação para o Mosteiro dos Jerónimos realizada em 1582. Estiveram presentes os Conselheiros e o Secretário de Estado, além do Provedor das Obras, que mandou encerrar o túmulo.

Insiste Belard da Fonseca que, mesmo no século XVII, haveria médicos capazes de determinar se os ossos eram de D. Sebastião, atendendo a algumas conhecidas deformidades do rei, mas que isso não seria possível pois que, no saco de linho que viera de Ceuta, tinham sido introduzidas em Évora, como se disse, as ossadas de alguns infantes. 

A concluir o Primeiro Volume, afirma o autor, e aí estaremos todos de acordo, que, quer em 1582, quer em 1682, quer hoje, ninguém tinha ou tem a certeza que que os restos mortais contidos no mausoléu dos Jerónimos sejam os de D. Sebastião.

* * * * *

Vejamos agora o Segundo Volume. A matéria encontra-se dividida em quatro capítulos. Trata o I das Origens do Sebastianismo; o II, dos Falsos "Dom Sebastião"; no III, se o "Prisioneiro de Veneza" seria D. Sebastião; o IV aborda a investigação do caso nas bibliotecas e arquivos nacionais e estrangeiros.

No Capítulo I o autor começa por referir a obra de Costa Lobo, Origens do Sebastianismo, e a de Lúcio de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, que comentaremos em publicações posteriores. E também as Trovas, de Gonçalo Anes, mais conhecido por o "Bandarra", sapateiro de Trancoso, que as escreveu entre 1530 e 1540, portanto antes do nascimento de D. Sebastião, que se inspirou nas Coplas de Frei Juan de Rocacelsa, religioso aragonês, contemporâneo dos Reis Católicos. O autor empenha-se em reabilitar a figura de D. João de Castro, neto do célebre vice-rei da Índia e filho natural de D. Álvaro de Castro, que foi ministro de D. Sebastião. É verdade que D. João de Castro foi um partidário acérrimo do Prior do Crato, tendo combatido ao lado deste, e empenhou-se em provar que o "D. Sebastião de Veneza" era verdadeiramente o rei.  Belard entende que ele não foi um louco, um sonhador ou um visionário, como é habitualmente tratado pelos historiadores, mas um patriota, uma pessoa inteligente e um escritor de mérito. Barbosa Machado diz que ele esteve em Alcácer-Quibir, Lúcio de Azevedo contesta, chegando a afirmar que ele nunca conheceu D. Sebastião. Belard da Fonseca infirma a afirmação de Lúcio de Azevedo. 

O Capítulo II é dedicado aos Falsos "Dom Sebastião". Estes pretendentes foram já analisados em posts anteriores. São, por esta ordem, o "Rei de Penamacor", cujo nome se ignora, o "Rei da Ericeira", o açoriano Mateus Álvares, o "Pasteleiro do Madrigal", o espanhol Gabriel de Espinosa e o "Prisioneiro de Veneza", o italiano Marco Túlio.

A descrição a que Belard da Fonseca procede acerca dos três primeiros pretendentes coincide com a apresentada nas obras que comentámos anteriormente, salvo no que respeita à presumível existência de uma filha de Espinosa e de D. Ana de Áustria referida pelo autor. Haveria no Arquivo de Simancas documentos sobre essa ligação, também mencionada no livro As Virtudes Antigas, de Camilo Castelo Branco. Já no que se refere ao italiano Marco Túlio o caso é diferente. O caso deste 4º pretendente ocupa muitas páginas do livro, já que Belard parece não estar convencido da inverosimilidade, largamente comprovada à época, do calabrês, assunto convenientemente descrito nas obras eruditas já comentadas neste blogue. A pretensão de Marco Túlio foi objecto de um livro de um dos seus mais ardentes defensores, D. João de Castro (neto do célebre vice-rei da Índia): Discurso da vida do sempre bem vindo e apparecido Rey D. Sebastião. Belard da Fonseca recorre especialmente ao livro (que já comentámos) de Miguel D'Antas, considerando que este desvaloriza a priori as possibilidades de o calabrês poder ser o rei D. Sebastião. E insinua que o "prisioneiro" de Veneza e, depois, do Bargello, em Florença (e que terá sido reconhecido por alguns portugueses como o verdadeiro rei).o chamada "Cavaleiro da Cruz", não é o mesmo que o calabrês Marco Túlio Catizone que foi preso em Nápoles.

O autor narra depois, com algumas variantes, o processo e posterior execução de Marco Túlio Catizone, conforme a narrativa constante das anteriores obras comentadas. E transcreve alguns manuscritos do Arquivo Geral de Simancas. 

O Capítulo III é expressamente dedicado a «O "Prisoneiro de Veneza" seria D. Sebastião?»

Começa Belard por escrever: «Como se viu no capítulo anterior, o aparecimento dos "Falsos D. Sebastião" não teve, inicialmente, a mesma causa. Com efeito, os casos do "Rei de Penamacor", do "Rei da Ericeira" e do "Pasteleiro do Madrigal" obedeceram a planos - alguns habilmente preparados - de terceiras pessoas, com o aproveitamento de indivíduos de qualquer forma semelhantes ao infeliz soberano, para se conseguir, assim, o alvoroço e o apoio do povo português na luta contra a dominação espanhola. Tratou-se, pois, em todos, da organização de movimentos patrióticos, com o fim de obter a independência, por meio de uma revolução nacional. E se dois deles abortaram quase à nascença, o do chamado "Rei da Ericeira" deu origem a um levantamento popular e a escaramuças de certa importância, que só foram sufocados, a custo, pelas tropas espanholas. De resto, esses três impostores surgiram, respectivamente, nos anos de 1584, 1585 e 1594, ou seja num período ainda próximo do desaparecimento do Rei em Alcácer-Quibir, quando o povo esperava vê-lo voltar um dia, e em que era, portanto, relativamente fácil atear, nele, a chama do patriotismo. Mas o caso do "Prisioneiro de Veneza" começa em 1598, vinte anos depois da cruenta batalha, quando as paixões patrióticas já estavam inteiramente adormecidas e quando o domínio espanhol parecia consolidado por completo. E surge espontaneamente, sem resultar como os outros mais antigos de uma cabala preparada por outrem, que urdira o plano, em todos os pormenores, e dirigia os "falsos D. Sebastião", como personagens de uma peça de teatro. Neste estranho caso de Veneza, o indivíduo que o viveu aparece, misteriosamente, sob o título de "Cavaleiro da Cruz", com toda a modéstia e sem fazer alarde da sua pretendida posição social ou qualidade de soberano.» (pp. 89-90)

O autor considera que Miguel d'Antas se apressou a descartar a possível autenticidade do "Prisioneiro de Veneza", para fundamentar a sua tese da falsidade de todos os pretendentes, o que foi rapidamente aceite por Rebelo da Silva, Mendes Leal e Pinheiro Chagas. E em abono da sua convicção de que o "Prisioneiro" era o verdadeiro Rei, publica a "Sentença de Clemente VIII", de 23 de Dezembro de 1598, onde o Papa reconhece D. Sebastião. Este documento é citado em Noites de Insomnia, de Camilo Castelo Branco. Existe também outra sentença papal, esta de Paulo V, de 17 de Março de 1617, mandando Filipe III entregar o Reino a D. Sebastião, sendo que Catizone havia sido executado em 1603!?! Haveria então em 1617 outro indivíduo em Roma a clamar os seus direitos? Mas há ainda um breve pontifício de Urbano VIII, destinado a Filipe IV, datado de 20 de Outubro de 1630, em que este Papa, ordena ao rei de Espanha a entrega de Portugal a D. Sebastião, que lhe fora apresentado no  Castel Sant'Angelo e lhe exibira as duas sentenças anteriores. É referido neste último breve que o peticionário tem filhos e mulher e solicita a transmissão de direitos.

«É claro que, como não há conhecimento de qualquer quinto "falso D. Sebastião" e o quarto tinha morrido em 1603, só se podem considerar duas hipóteses: ou os breves são autênticos e o rei sobreviveu à batalha de Alcácer-Quibir e lutou pelos seus direitos ao trono de Portugal, entre 1598 e 1630; ou essas sentenças são falsas e foram forjadas com determinado propósito. Os ilustres escritores que, antes de nós, se ocuparam desse problema - e que só conheceram tais breves, pela citação de Camilo - resolvem-no por forma, salvo o devido respeito, bastante simplista. Assim, Lúcio de Azevedo afirma, sem qualquer prova: "Os breves referiam-se ao D. Sebastião, de Veneza (Marco Túlio), de cujo suplício em S. Lúcar poucos sabiam, e que a parte dos sebastianistas, a quem eram desconhecidas as obras de D. João de Castro, supunha ter passado de Florença para França, pela Sabóia, escapando às ciladas dispostas no caminho pela protérvia dos Castelhanos."» (p. 98)

O autor refere-se também à Prova Num. XXVII, dos autos criminais contra a Companhia de Jesus, em que Seabra da Silva aponta três fingidas Bulas em toda a sua extensão, acrescentando: «Ora isto não prova, de qualquer forma, uma falsidade, porquanto nada do texto dessa intitulada "Prova Num. XVII", de Seabra da Silva, testemunhal ou documentalmente, mostra que tais sentenças pontifícias não sejam autênticas.» (p. 103)

Volta agora Belard da Fonseca a colocar a questão dos sinais físicos de D. Sebastião, que já abordara no capítulo anterior e que tem sido referido nos diversos livros sobre os falsos pretendentes. «Quando os pouco portugueses, exilados em Veneza, conheceram o "Cavaleiro da Cruz", em Junho de 1598, e o tomaram por D. Sebastião, como já tivessem decorridos vinte anos sobre o desaparecimento do seu soberano em Alcácer-Quibir, pretenderam certificar-se do facto com absoluta segurança. Tratava-se, todavia, de pessoas de condição modesta, alguns comerciantes e religiosos. que não tinham privado com o rei, ou que eram muito novos em 1578, quando este partira para Marrocos. Tinham, portanto, somente, duas formas de fazer essa identificação: por pessoas mais idosas, nobres que tivessem frequentado a Corte e que o tivessem conhecido pessoalmente; ou pela indagação exacta dos seus sinais particulares, devidamente comprovada. Procuraram, por tal motivo, chamar a Veneza outros compatriotas de elevada condição social, como Frei António de Sousa, Manuel de Brito de Almeida, Frei Lourenço de Portugal, D. Cristóvão, filho do Prior do Crato, e Frei Estêvão de Sampaio. Quando estes chegaram, porém, àquela cidade, já o "Cavaleiro da Cruz" tinha sido preso, por ordem da Senhoria e a pedido do embaixador de Espanha. E não mais conseguiram ver o prisioneiro, ao qual não eram permitidas visitas. Um juiz ou senador veneziano, de nome Marco Quirini, que pretendia esclarecer-se sobre a identidade do prisioneiro, aconselhou Frei Estêvão a ir a Portugal obter os elementos necessários para se concluir se o mesmo seria ou não o infeliz soberano português. Esse religioso parte, por isso, para Lisboa onde chegou no fim de 1599, tendo procedido a demorada indagação quanto aos sinais particulares de D. Sebastião. Essa investigação foi escrupulosa, feita com a colaboração do cónego Rodrigues da Costa, junto de pessoas de idade que o tinham conhecido bem, tendo sido elaborada uma relação completa autenticada pelo notário Tomé da Cruz, dos sinais característicos ou morfológicos do corpo do rei. Tal relação - que Frei Estêvão de Sampaio levou, seguidamente, para Veneza, onde já se encontrava em Junho de 1600 - é conhecida, por tê-la transcrito o Padre José Teixeira, numa obra publicada em Paris no ano de 1601. E serviu, para os portugueses, especialmente Pantaleão Pessoa - como consta duma carta do mesmo, para D. Manuel de Portugal, filho mais velho do Prior do Crato -, procederem a demorado exame do "Prisioneiro de Veneza", na própria noite, de 15 de Dezembro de 1600, em que este foi posto em liberdade pela Senhoria. Verificaram, nessa altura, que tal indivíduo apresentava quase todos - e não viram os mais íntimos, porque, querendo ele despir-se para o efeito, não lho consentiram por respeito pela pessoa, na qual viam o seu soberano - esses caracteres morfológicos.» (pp. 105-6-7)

Esta argumentação de Belard em defesa da autenticidade do "prisioneiro", enferma de três vícios: 1) se era uma prova tão decisiva, todos os sinais sem excepção deveriam ter sido examinados; 2) se o "prisioneiro" pretendeu despir-se, isso contraria a habitual disposição de D. Sebastião de não se despir diante de qualquer pessoa, mesmo dos seus criados, e muito menos de exibir as suas partes íntimas; 3) não faz sentido a atitude deferente dos "examinadores" no "respeito pela pessoa", pois até à verificação integral do corpo não estavam certos de se tratar ou não do soberano, pelo que qualquer respeito em tão delicada matéria seria despiciendo.

Dispensamo-nos de transcrever a longa lista dos sinais e anomalias conhecidas do rei (constantes das diversas biografias), segundo Pantaleão da Cruz. Como não lhe tiraram o vestuário, nem todos os sinais puderam ser confirmados. O que não incomoda Belard da Fonseca, pois acha suficientes os que foram confirmados. E acrescenta que o juiz espanhol Luciano Négron, servindo-se da mesma "relação" não encontrou qualquer desses sinais em Marco Túlio Catizone. Daqui conclui o autor, sem sombra de dúvida, que o "Prisioneiro de Veneza" e "Marco Túlio Catizone" seriam duas pessoas difeentes. «E como não existiu um quinto "falso D. Sebastião", teríamos de admitir uma troca de presos, em qualquer ocasião do percurso de Veneza a Florença e a Nápoles (as cidades onde, sucessivamente, a misteriosa personagem esteve encarcerada), ou, até, na povoação espanhola de San Lucar» (p. 111)

O autor elabora depois largamente, com base numa narrativa de uma revista francesa de 1844, a favor da sua tese da troca de prisioneiros, acabando por admitir que o verdadeiro D. Sebastião, que Catizone substituiu, foi encarcerado num castelo de Espanha por Filipe III.

O Capítulo IV, e último, trata de "A Investigação do Caso nas Bibliotecas e Arquivos Nacionais e Estrangeiros". 

No Arquivo Secreto do Vaticano procurou verificar a autenticidade dos breves pontifícios anteriormente citados mas as suas pesquisas foram infrutíferas. Tal como na Biblioteca Apostólica. Investiga também no Arquivo Geral de Simancas e noutros arquivos com resultados irrelevantes. Encontra finalmente um manuscrito encriptado que se propõe decifrar e onde encontra matéria que lhe permite sustentar a sua tese da troca de prisioneiros. 

O livro é acompanhado pela reprodução de dezenas de manuscritos que o autor cita ao longo do texto.


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