O embaixador Carlos Fernandes acabou de publicar um livro intitulado
O cônsul Aristides Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira. Pretende esta obra refutar as afirmações contidas no livro de Rui Afonso, com o título
Aristides de Sousa Mendes, Um Homem Bom, editado em 2009.
A maioria dos portugueses, e muitos estrangeiros, conhece a figura de Aristides de Sousa Mendes, nomeadamente a partir dos anos oitenta do século passado, pelo facto de ter concedido, em 1940, como cônsul em Bordéus, contrariamente às instruções do Ministério dos Negócios Estrangeiros, um elevado número de vistos a cidadãos que pretendiam fugir de França e entrar em Portugal, alguns para aqui ficar, a maioria com destino a outros países. Nessa altura, os alemães tinham já invadido a França e o próprio governo francês refugiara-se em Bordéus.
Ao longo de 300 páginas, em que repete os mesmos argumentos
ad nauseam, o embaixador Carlos Fernandes refuta, capítulo por capítulo, o livro de Rui Afonso, que não conhecemos. Sabemos que a imagem do cônsul Sousa Mendes tem sido progressivamente exaltada, nomeadamente porque se evoca que uma parte dos vistos emitidos teria sido concedida a cidadãos judeus, que estariam em perigo de vida face ao previsível avanço das tropas nazis.
Para o embaixador Carlos Fernandes, que aliás exprime simpatia pela figura de Sousa Mendes, o livro de Rui Afonso é uma mistificação e uma mitificação que aquele pretende desmascarar. Na impossibilidade de explicitar toda a argumentação do embaixador, apoiada nas cópias de documentos oficiais, publicadas em apêndice, e tendo o assunto começado a tornar-se polémico a vários títulos, vamos deter-nos no que se afigura realmente incontroverso.
1) Propala-se hoje, insistentemente, que Sousa Mendes teria concedido no período crítico que foram os dias 17, 18 e 19 de Outubro, em Bordéus, e 21, em Bayonne, 30.000 vistos, dos quais 10,000 a favor de judeus. Demonstra o embaixador que, em tal período, era materialmente impossível conceder tal número de vistos, pelo que, segundo a numeração de ordem dos mesmos vistos esse número seria de cerca de 600;
2) Não houve instruções especiais de Salazar, então ministro dos Negócios Estrangeiros, para impedir Sousa Mendes de conceder vistos, desde que regularmente, segundo os procedimentos do Ministério; o que levou à sua demissão de cônsul de 1º classe em Bordéus foi o incumprimento das formalidades estabelecidas;
3) Sousa Mendes regressou depois a Lisboa, teve um processo disciplinar, mas não foi demitido da função pública, ficando na disponibilidade, a aguardar aposentação. Por isso, recebeu sempre o seu vencimento até à data da morte, que sobreveio antes de atingir a idade para a aposentação;
4) Segundo Carlos Fernandes nunca Salazar perseguiu pessoalmente Sousa Mendes ou os seus filhos, antes pelo contrário, não lhe tendo aplicado as penalidades correspondentes às infracções cometidas e tão-só o passando á disponibilidade, até porque não se encontraria em situação psíquica normal para o desempenho de funções, como é largamente descrito no livro;
5) A Lei nº 51/88, de 25 de Abril, que reintegra Sousa Mendes na carreira e o promove a ministro plenipotenciário de 2ª classe é aberrante porque reintegra uma pessoa que nunca fora demitida. Também a elevação de posto parece ao embaixador uma incongruência, pois a categoria a seguir a cônsul de 1ª classe seria cônsul-geral, equivalente a conselheiro de embaixada, e não ministro de 2ª classe. Também não é juridicamente normal reintegrar uma pessoa (se fosse o caso, que não era) através de uma Lei (de características gerais e abstractas) e não de uma Resolução;
6) A indemnização de 15.000 contos atribuída à família não se baseia, segundo o embaixador, em quaisquer cálculos objectivos. Foi ainda concedida uma importância de 50.000 contos a uma "entidade credível" (a Fundação Aristides de Sousa Mendes, presume-se, depois constituída), desde que a família lhe juntasse os 15.000 contos já recebidos, para a reconstrução da Casa de Cabanas de Viriato e uma comparticipação anual de 2.000 contos para despesas de funcionamento da Casa-Museu;
7) A grande campanha para a mitificação da carreira de Sousa Mendes e para a evocação da sua especial protecção aos judeus (presume-se que Sousa Mendes quando concedia os vistos apenas olhava para a nacionalidade dos requerentes sem atender às origens) foi especialmente orquestrada pelo congressista luso-americano Tony Coelho, a fim de obter o apoio do poderosíssimo
lobby judaico dos Estados Unidos na satisfação das suas ambições políticas na Câmara dos Representantes.
O que aqui se escreve é uma síntese do muito sobre que discorre o embaixador Carlos Fernandes, mas analisando os factos, sobretudo após a leitura do livro, conclui-se que há, realmente, alguma coisa que não bate certo. E se determinadas considerações do embaixador podem ter sido ditadas por convicções pessoais, não parece que da análise dos factos se possa retirar que todo este processo é de absoluta transparência.
Conviria, pois, a bem do interesse público e do respeito que merece a própria imagem de Aristides de Sousa Mendes, que este assunto viesse a ter o esclarecimento que merece.