quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

L'HOMOSEXUALITÉ AU SÉNÉGAL

POUR MES AMIS SÉNÉGALAIS, qui peuvent traduire automatiquement, malgré quelques imprécisions.

No texto que publiquei, em post anterior, sobre o livro La plus secrète mémoire des hommes, do escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr, que obteve este ano o Prémio Goncourt, referi que o seu livro anterior, De purs hommes, tratando da questão da homossexualidade no Senegal, motivara um certo mal-estar no país. Muitas personalidades e instituições que o haviam felicitado pelo Prémio ao darem-se conta do tema do seu livro anterior, que não tinham lido, retiraram as mensagens de felicitações. Isto revela o estado de espírito actualmente reinante, numa terra que, embora muçulmana, nunca fora severamente religiosa em questões de sexualidade.

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Resume-se assim a história de Des purs hommes:

Ndéné Gueye, jovem professor de literatura francesa numa universidade senegalesa (tendo estudado em França), é surpreendido pela divulgação de um vídeo mostrando o desenterramento do cadáver de um homem, um góor-jigéen (homem-mulher, homossexual em wolof), que não poderia estar sepultado num cemitério muçulmano, o que significava uma verdadeira profanação.

O caso é amplamente comentado no país, ao mesmo tempo que Gueye é interpelado pelos seus alunos que o acusam de ter dado uma lição sobre Verlaine (que eles sabem ter mantido uma relação com Rimbaud), poeta que fazia parte de uma lista entretanto emitida pelo ministério senegalês, aconselhando fortemente os professores a evitar "l'étude d'écrivains dont l'homosexualité était averée ou même soupçonée" (p. 43). Sustentavam também os alunos que o ensino desses escritores fazia parte da grande propaganda europeia para introduzir a homossexualidade no Senegal [como se ela lá não existisse!].

Resolve, pois, Gueye, que se considera heterossexual, investigar sobre a homossexualidade presente e passada no Senegal e, em especial, sobre o caso do homem desenterrado no cemitério, no que é ajudado por uma senagalesa-americana (bissexual), Angela, que mantém uma relação com outra senegalesa (Rama) que também é amante de Gueye.

Consegue assim descobrir a miserável  casa do morto, onde só habita a mãe deste, de quem ouve uma impressionante história. 

Conta a mãe: o filho era um rapaz novo, um filho exemplar que a mãe educara com muitos sacrifícios e que acabaria a universidade esse ano. O pai morrera quando ele tinha três anos. Para ajudar ao sustento da casa dava lições particulares enquanto estudava. Subitamente ficou doente, ao mesmo tempo que circulavam rumores a seu respeito. A mãe ignorava se ele era homossexual ou não. A doença agravou-se rapidamente e não tinham dinheiro para o enviar para o hospital. Começaram a falar de sida ou de outra doença sexualmente transmissível. E morreu. Recusaram enterrá-lo. A própria mãe lavou-o ritualmente mas o cadáver, com o calor, começava a decompor-se. A mãe dormiu dois dias ao lado do morto e depois vendeu tudo o que possuía com algum (pouco) valor para pagar a dois homens que o fossem enterrar de noite num sítio discreto do cemitério. Mas houve quem descobrisse o expediente e uma multidão encarregou-se de tirar o cadáver da cova e de o colocar ao pé da casa. Foi então que a mãe, com extraordinária coragem, conseguiu abrir uma cova e sepultou de novo o filho no pátio da casa, que se tornou maldita. O rapaz chamava-se Amadou e, segundo uma fotografia que a mãe mostrou a Gueye, era muito bonito. 

A mãe agradeceu a visita de Gueye, estranhando o interesse deste pelo filho, e de uma segunda visita ofereceu-lhe um prato de laax, a comida preferida pelo rapaz. Depois disse-lhe: «Je ne sais pas pourquoi tu t'es tellement attaché à mon fils. Ou à moi. Tu cherches quelque chose. Je ne sais pas non plus si la réponse est ici. Ici, il n'y a rien. Mais j'espère que tu trouveras ce que tu cherches. J'espère sincèrement».

Mohamed Mbougar Sarr

Entretanto, Gueye foi suspenso pela universidade, já que os alunos se tinham queixado ao director da faculdade que ele ensinara (o proibido) Verlaine. Alarmado com este puritanismo religioso, Gueye encontrou-se com um colega mais velho (casado e presumivelmente heterossexual) que o estimava e interrogou-o sobre a homossexualidade no Senegal, assunto que nunca o preocupara, tendo aliás passado vários anos afastado do país, a estudar em França. O velho colega disse-lhe: «J'ai connu une époque où les homosexuels étaient différents. C'est le mot. Les homosexuels ont toujours existé au Sénégal, ceux qui disent le contraire sont soit trop jeunes, soit de mauvaise foi, peu observants de leur culture. Les homosexuels ont toujours existé parmi nous, mais ils se comportaient d'une autre manière. Rien dans leur habilement ou leur attitude n'indiquait qu'ils étaient góor-jigéen. Pourtant, tout le monde le savait et l'acceptait. À l'époque, ils ne gênaient personne parce qu'ils étaient discrets, polis, respectables. Ils avaient dans la société un rôle particulier, qu'ils remplissaient sans chercher à en rajouter, sans chercher à faire inutilement remarquer qu'ils étaient singuliers. Tout le monde le savait. Ils vivaient en général seuls, et comptaient sur l'appui de leur protectrice et sur ce qu'on leur donnait, lors des cérimonies, pour vivre. Cette discretion et l'importance de leur rôle dans le jeu social faisaient que, même si l'homosexualité était interdite dans l'islam, on ne tuait pas les homosexuels, on ne les emprisonnait pas systématiquement. Il y avait des lois, bien sûr. Des lois anti-homosexuelles, comme aujourd'hui, mais leur application était plus complexe. Ceux qui évoquent un âge d'or, où les homosexuels auraient été traqués plus durement, chassés de la société, ne savent pas de quoi ils parlent. Ce passé dont ils ont la nostalgie, je l'ai vécu. C'était le contraire de ce qu'ils veulent croire et faire croire.» (pp. 145-6)

E o velho professor prosseguiu a explicação, dizendo que hoje os homossexuais são impudicos, provocadores, casam-se... tornaram-se grosseiros. É um punhado de gente que dá uma falsa imagem do país em detrimento da maioria heterossexual, que se sente agredida moralmente, religiosamente, visualmente. Agora, no Senegal, para evitar serem mortos, os homossexuais têm de casar-se com pessoas do sexo oposto, ter filhos, trabalhar em áreas onde pouca gente poderá suspeitar deles. Há muito mais homossexuais neste país do que se pensa. «On est passés d'homosexuels socialement utiles et discrets à des pédales - pardonnez-moi l'usage du terme - qui ne sont intéressées que par leur image. Les pédés ont remplacé les góor-jigéen.» (p. 147)

E continuou: «Si les homosexuels d'aujourd'hui sont si indécents, c'est parce qu'ils sont influencés par le monde des Blancs. Là-bas, les homosexuels s'aiment et s'embrassent à la vue de tous. Ils peuvent se marier légalement. La réalité homosexuelle ets reconnue et montrée, dans des manifestations, dans des films. Et les homosexuels, ici, croient qu'ils peuvent se permettre la même chose, qu'ils peuvent réclamer des droits similaires, adopter la même attitude en public. C'est du suicide. Les Blancs donnent de l'homosexualité une image qui fait fatasmer ceux d'ici, qui veulent imiter cette image. Sauf qu'elle ne peut pas être la même ici. Du moins, pas encore. Dans leurs pays, les Occidentaux sauvent les homosexuels; ici, on les condamne. Ils ne se rendent pas compte que les pressions qu'ils exercent sur nos gouvernements pour la dépénalisation de l'homosexualité produisent l'effet inverse: une montée de l'homophobie. Ils ne comprennent pas...» (p. 149)

 E ainda: «Je sais que vous allez me parler de république, de démocratie, d'égalité... Je sais... Mais je crains que l'égalité ne soit une chimère en démocratie. Elle l'est même en Occident, où les pires inégalités subsistent, selon l'origine, la classe sociale, la richesse, la religion. La marche vers l'égalité ne peut s'effectuer à la même vitesse partout.» (p. 149)

Acontece que as visitas de Gueye a casa do desenterrado e um encontro que, por curiosidade, manteve num bar com um célebre (e tolerado) góor-jigéen (que afinal não era homossexual), célebre animador de festas em Dakar, levantaram uma onda de rumores que chegaram a casa do seu pai que ficou em choque. O pai exigiu-lhe uma retratação do que se ouvia, o que Gueye, em consciência, não podia fazer, tendo-lhe aquele imposto a saída de casa.

Resolve Gueye ausentar-se de Dakar para sossegar os ânimos e vai passar uns dias com Rama (a sua amante) a uma aldeia de pescadores. Na praia assiste à faina destes, tira fotografias, mas acaba por ficar fascinado por um jovem muito negro que o fixa ostensivamente. Não chegam a trocar palavras e Gueye começa a debater-se com o problema da sua identidade. Rama tenta auxiliá-lo mas debalde. Sabem, no regresso, que o velho (ainda assim não tão velho) professor seu colega que o recebera em casa fora encontrado em atitudes menos próprias com outro homem, dentro da universidade, tendo sido linchados. O professor sobreviveu sem um olho e em estado muito grave e o outro homem morreu. 

Gueye fica possuído por uma fúria negra contra os seus compatriotas assassinos. «J'éprouve soudain le désir de les tuer tous, sans prendre le temps d'y regarder au cas par cas, sans nuance, sans chercher à voir qui est bon, qui est méchant, qui est humain à demi. Je n'en ai même pas l'envie: ils sont tous coupables. Il ne peut y avoir d'innocents parmi eux. Ils sont la société, la société dans un mouvement brutal, puissant et irrépressible comme celui d'un boa qui étouffe une proie. Si j'en avais eu la possibilité, je sortirai arme au poing et je mitraillerais la foule à l'aveuglette, comme un terroriste, enivré de ma haine, de mon dégoût et de ma détermination.» (p. 187)

E Gueye: «Je vais sortir, leur causer la plus insoutenable souffrance et leur offrir le plus inestimable cadeau en un seul geste: me métamorphoser en pédé, un pédé qu'ils pourront tous à la fois craindre dans une répulsion viscérale et désirer dans une obscure pulsion de meurtre. Qu'ils me couvrent de crachats, qu'ils me déchiquettent avec leurs dents, qu'ils me brisent le os et me traînent nu par les rues, qu'ils m'injurient et injurient ma défunte mère, qu'ils me jugent indigne de vivre, qu'ils me cassent les dents pour que je suce mieux [deste pormenor gosto] comme ils disent, qu'ils me lynchent et m'abandonnent en plein air, viscères au ciel comme une charogne!» (p. 188)

«En suis-je un? Oui... Non... Peu importe: la rumeur dit, décidé, décrété que oui. J'en serai donc un. Je dois en être un. S'ils ont besoin, ceux-là dehors, que j'en suis un pour mieux vivre, je vais l'être, jouer à fond mon rôle et ainsi chacun sera content. Eux de vivre, moi de mourir. Peut-être seulement, après ma mort, se rendront-ils compte du cadeau que je leur fait... Ils chanteront mes louanges. Ils baiseront mes pieds froids et embrasseront mon cercueil comme celui des saints. Certains de mes bourreaux, leur colère retombée, diront du bien de moi, sans risques, puisq'un bon pédé est un pédé mort.» (p. 190)

E Gueye nas suas elucubrações anteriores: «Ce n'est pas parce qu'ils ont une famille, des sentiments, des peines, des professions, bref, une vie normale avec son lot de petites joies et de petites misères, que les homosexuels sont des hommes comme les autres. C'est parce qu'ils sont aussi seuls, aussi fragiles, aussi dérisoires que tout les hommes devant la fatalité de la violence humaine qu'ils sont des hommes comme les autres. Ce sont de purs hommes [o sublinhado é meu e remete para o título do livro] parce que à n'importe quel moment la bêtise humaine peut les tuer, les soumettre à la violence en s'abritant sous un des nombreux masques dévoyés qu'elle utilise pour s'exprimer: culture, religion, pouvoir, richesse, gloire...» (p. 125) 

Este o resumo da história deste livro, entre outros episódios que não cabe citar neste espaço e que não são essenciais para a compreensão do propósito do autor. 

Não admira que o livro tenha sido motivo de de desagrado, mesmo de rejeição, no Senegal. A religião muçulmana ao longo dos séculos, e salvo momentos particulares, sempre admitiu, na prática (que não na teoria) comportamentos homossexuais. Mas nos últimos tempos, e devido à emergência de um fanatismo religioso (a religião católica já o possuiu) tornou-se intransigente, em numerosos países, quanto às práticas ditas contra natura. Acresce o facto, como o autor reflecte, dos exageros praticados no mundo ocidental quanto à normalização da homossexualidade, com efeitos profundamente negativos em culturas tradicionais como as muçulmanas e africanas em geral. Os excessos dos movimentos LGBTIQ+, a proliferação das identidades sexuais, os casamentos de pessoas do mesmo sexo, tudo se processando a uma velocidade alucinante, sem tempo de assimilação, induz, especialmente em África, a considerar que se trata de um novo processo de colonização pelos Brancos que por tal deve ser rejeitado. Um pouco de contenção não teria feito algum mal.

Resumindo: De purs hommes é um livro muito bem escrito, didáctico, revelador do ambiente moral do Senegal, e de uma parte da África sub-Sahariana. Mais breve e nada complicado na descrição dos factos, ao invés do seu seguinte livro que foi galardoado com o Prémio Goncourt. Este livro é também um acto de coragem de Mohamed Mbougar Sarr, cuja orientação sexual efectivamente desconheço. Mas está de parabéns o autor.

Nota: uma única vez, no livro, a palavra homossexual é substituída pela palavra gay. Ainda bem.

 

domingo, 26 de dezembro de 2021

MEMÓRIAS SENEGALESAS

O escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr (n. 1990) obteve este ano o Prémio Goncourt pelo seu romance La plus secrète mémoire des hommes, o seu quinto livro desde 2014.

Resumo: Em 2018, Diégane Latyr Faye, jovem escritor senegalês (um alter ego do autor?), recebe em Paris, das mãos de uma famosa escritora senegalesa, Marème Siga D., um exemplar de um livro desaparecido, Le Labyrinthe de l'inhumain, de T.C. Elimane, um senegalês a que chamaram o "Rimbaud negro", e de que tomara conhecimento, nos seus tempos de liceu no Senegal, através de um Précis des littératures nègres. O livro publicara grande escândalo quando publicado (1938) e tornara-se impossível de encontrar, tal como o próprio autor.

«Un grand livre ne parle jamais que de rien, et pourtant, tout y est.» (p. 50)

Mohamed Mbougar Sarr

Diga-se, desde já, que este livro está recheado, um pouco à maneira de Agustina Bessa-Luís, de aforismos em que o autor desenvolve as suas considerações sobre a literatura, o homem e o mundo, sobre a relação dos africanos com os ocidentais (os brancos, como Sarr sublinha), sobre a relação dos países africanos com as antigas potências coloniais. Há inúmeras referências a autores clássicos e modernos, e muitas citações, o que mostra que Mohamed Sarr tem leituras, embora eu suspeite que um escritor de 30 anos não possa ter aprofundado completamente todas as obras que menciona. Não pelo facto de ser senegalês, obviamente (ele até veio concluir o liceu a França), mas porque a abrangência de obras desde os gregos até aos actuais é tarefa muita vasta.

É difícil descrever a intriga do livro, porque trata de várias estórias encastoadas umas nas outras como as matrioskas russas. Há a história do escritor senegalês, o duplo do autor (?) que vai estudar para Paris enquanto jovem e a história (anterior) de um outro escritor senegalês, também ido para Paris na juventude, o tal "Rimbaud negro", personagem misteriosa e mágica, autor do livro La plus secrète mémoire des hommes, obra perseguida pelo primeiro. E depois há as estórias senegalesas dos antepassados deste T.C. Elimane, as estórias de outros membros da família, a estória de estudantes africanos em Paris (o gheto), estendendo-se a latitude geográfica do livro até ao Haiti, à Argentina, aos Países Baixos, etc., numa profusão de personagens e de complexas relações familiares que torna difícil a inteligibilidade da obra. Até porque existe uma sistemática oscilação cronológica na narração (um incessante vai-vem de acontecimentos) e também porque, a certa altura não sabemos quem fala o quê, uma vez que não são indicados os interlocutores e que a simples menção de falas sem aspas não é suficiente, com tão variada mudança de situações, para identificar as personagens.

A construção da intriga é inegavelmente interessante, e o autor inegavelmente dotado, mas resultaria mais eficaz (um termo que não se deve aplicar à literatura, mas que é aqui conveniente) um romance mais breve e centrado nos aspectos essenciais, dispensando muitas estórias acessórias e pormenores supérfluos e evitando repetições desnecessárias. As 450 páginas do livro poderiam ter sido apenas 300 (por exemplo), e isso não invalidaria a obtenção do Prémio Goncourt, a que várias vezes se faz alusão na obra, como que se tratasse de uma piscadela de olho ao Júri que acabaria por lho conceder. Também sei que, nesta altura, convinha à Academia Goncourt conceder o prémio a um escritor negro, obviamente francófono, de preferência senegalês, juntando assim à cor do laureado uma cultura prevalentemente muçulmana.

Um dos aspectos cativantes do livro é que existe nele uma aura de romance policial, por vezes difusa e uma componente fantástica, com contornos mágicos, favorecida pelas antigas tradições do Senegal. Também as alusões sexuais são frequentes, desde os relacionamentos dos estudantes africanos em Paris, entre eles e com europeus, hetero e veladamente homo, até a relações improváveis do protagonista, devidamente actualizado com as novas ferramentas do presente como a Uber, o Instagram, o Facebook, os mails, etc.

Ignoro quais os outros concorrentes ao Goncourt deste ano, mas admito que o livro premiado tenha sido o melhor candidato, se atendermos à qualidade de alguns livros a que o prémio foi outorgado em anos anteriores.

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NOTA: Refiro, por curiosidade e porque é um sinal do mundo actual, que Mohamed Mbougar Sarr foi amplamente felicitado no Senegal quando recebeu o Prémio Goncourt. Nessa altura, as personalidades e instituições que se regozijaram pela atribuição do prémio a um compatriota verificaram que o seu anterior livro (a que farei oportunamente referência), De purs hommes, tratava de um caso de homossexualidade no Senegal. Por esse motivo, retiraram as felicitações ao autor. Isto diz muito dos tempos que vivemos.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A INVENÇÃO DA ÁFRICA


Foi publicada recentemente a tradução francesa de The Invention of Africa, do filósofo congolês Valentin Yves-Mudimbe, obra editada em inglês nos longínquos 1988.

Não me apercebi então da publicação desse livro, que foi geralmente ignorado na Europa. Surgindo há pouco tempo L'Invention de l'Afrique, decidi-me ler agora a obra, que constitui, de alguma maneira, em relação ao continente africano, a mesma abordagem a que procedeu Edward Saïd, com Orientalism, em relação ao  mundo árabe.

Ambas as obras procedem à desconstrução da narrativa elaborada no mundo ocidental sobre esses dois universos, ainda que a perspectiva dos seus autores não possa ser integralmente aceite, sem qualquer discussão, não só por ocidentais como por árabes e africanos. Recordemo-nos da contestação de que foi objecto Orientalism, mesmo entre os árabes.

Confesso que não conhecia Valentin Mudimbe e fiquei espantado com a erudição de que faz prova este notável intelectual, nascido no antigo Congo Belga, destinado à carreira eclesiástica e que, após a sua partida para os Estados Unidos aquando do regime de Mobutu Sese Seko, se tornou professor de várias universidades americanas.

Familiarizado com as humanidades clássicas e modernas, e também notável romancista, Mudimbe explora neste livro três territórios epistemológicos: a filologia grega e latina, as bibliotecas religiosas e a etnografia colonial. E também as literaturas em busca de uma África "vernacular" e de uma modernidade neo-faraónica inaugurada pelo antigo Egipto. Ao longo do livro, Mudimbe desmonta também alguns discursos sobre o continente, mesmo provenientes de notáveis autores africanos, caso do próprio Léopold Senghor. E as críticas ao colonialismo surgem nesta obra numa perspectiva bem racional, longe de qualquer radicalismo cultivado já no tempo da sua publicação e que atingem agora, com a adopção do politicamente correcto, verdadeiros foros de insanidade.

A extensão do livro (500 páginas) e a diversidade das abordagens não permite aqui discorrer sobre as teses de Mudimbe. Ele recorre bastante a Aimé Césaire, a Michel Foucault, a Jean Baudrillard, a Roland Barthes, a Dumézil, a Claude Lévi-Strauss, a Paul Veyne, a Max Weber, a Jack Goody, a Sartre, a Frantz Fanon, a Senghor, a Teilhard de Chardin, a Braudel, a Cheikh Anta Diop, a Jomo Kenyatta, a Lévy-Bruhl, a Kwame Nkrumah, a Samir Amin, a Patrice Lumumba, a Kenneth Kaunda, a Sekou Touré, para citar apenas alguns dos mais conhecidos, além de numerosos pensadores africanos cujos nomes nos são menos familiares. Há no entanto uma figura muito presente na obra de Mudimbe: Edward Wilmot Blyden (1832-1912), natural das Antilhas dinamarquesas e que se instalou na África Ocidental em 1851 e se tornou rapidamente um dos mais minuciosos especialistas das questões africanas. Residindo em permanência na Libéria e na Serra Leoa, assistiu às primeiras horas da partilha de África, estudou a chegada dos colonos europeus à costa ocidental e observou o estabelecimento progressivo do regime colonial. São muito importantes os seus estudos sobre o Cristianismo e o Islão em África e sobre a "condição do Negro". Naturalmente que as opiniões de Blyden não se harmonizam inteiramente com as de Mudimbe, mas este faz disso mesmo eco no seu livro. Em 1967, Hollis Ralph Lynch publicou um indispensável trabalho sobre aquele investigador: Edward Wilmot Blyden: Pan-Negro Patriot 1832-1912.

Também Mudimbe recorre muitas vezes ao conceito de Weltanschauung, assumido numa perspectiva africana. E as suas investigações recuam no passado e mergulham nos clássicos gregos e latinos. E estendem-se também à filosofia islâmica, a falsafa. Igualmente dissecada a relação entre colonialismo e cristianismo, analisadas as várias perspectivas dos autores africanos sobre a descolonização, evocadas as religiões africanas, etc.

Em Apêndice, são tratadas as fontes etíopes de conhecimento remontando aos primeiros séculos do Império Romano.

Assim, L'Invention de l'Afrique é uma obra riquíssima e complexa que exige do leitor alguns conhecimentos prévios sobre a matéria. Com a intenção de reunir o maior número de contributos para a sua obra, o texto de Mudimbe surge por vezes um pouco confuso no que respeita à arrumação dos temas, o que exige uma particular atenção na leitura.

Recomenda-se a todos os interessados no continente africano, no homem negro (e também nos africanos árabes), nas colonizações e descolonizações, na África pré-colonial, uma visita a este livro.