terça-feira, 23 de maio de 2017

O ATENTADO EM MANCHESTER




Perante o atentado de Manchester, os líderes ocidentais repetem a habitual cassette de lamentações e condenação. Estão no papel que lhes foi distribuído. Mas nunca (ou raramente) vejo alguém interrogar-se sobre a causa desta eclosão de atentados mortíferos. Anatemizam-se os actos mas ocultam-se as prováveis causas, próximas ou remotas. E consideram-se que todos os atentados ocorridos nos últimos anos são devidos ao djihadismo, evitando proferir a palavra islão e salvaguardando sempre, em nome do politicamente correcto, que nem todos os muçulmanos são radicais islâmicos. Exceptuam-se os casos obviamente evidentes de terroristas brancos e cristãos, como Breivik, na Noruega, cuja identidade não foi possível ignorar.

Também é verdade que os ditos terroristas islâmicos são sistematicamente mortos antes de julgamento e de poderem confessar porque cometeram tais actos, se agiram individualmente ou se executaram ordens e, nesse caso, quem form os mandantes. Que me recorde, só Salah Abdelsalem, inculpado nos atentados de Paris,  está vivo e preso em França. Mas ainda não foi julgado.

No que respeita ao terrorismo dito islâmico, confrontam-se duas teses, ambas de islamólogos famosos: Gilles Kepel entende que estamos a assistir a uma radicalização do islão; Olivier Le Roy considera que o que se verifica é uma islamização do radicalismo. Talvez a verdade seja equidistante.

Todavia, há uma iniludível questão que é geralmente ignorada por "compreensíveis" razões: nos dois últimos séculos os europeus, especialmente e quase exclusivamente os ingleses e os franceses, colonizaram o mundo árabe, por razões estratégicas e depois por causa do petróleo. Seguiram-se os americanos, que devido ao dito intervieram na partilha e celebraram com a Arábia Saudita (o único país do mundo com o nome de uma família reinante) um acordo de protecção (e também de venda de armas, como ainda agora Trump se encarregou de demonstrar com o contrato de cem mil  milhões de dólares) em troca de petróleo. A política de colonização ocidental do Mundo Árabe (Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egipto, Iraque, Síria, Jordânia, Líbano, Palestina, etc.), deixou profundas feridas no tecido social árabe, que perduram desde há mais de duzento anos. O que gerou sentimentos e mesmo acções de revolta (localmente expressas). Nesta era da globalização, essa revolta globalizou-se e atinge agora a Europa. Os atentados suicidas ou outros são naturalmente condenáveis, até porque a História não anda para trás. Mas não é possível ignorar esse mal-estar da civilização no Mundo Árabe, por causas remotas ou até próximas ou imediatas, como a criação de Israel em território palestiniano, a invasão do Iraque, o bombardeamento da Líbia, o incentivo das "primaveras árabes", a guerra civil na Síria, a criação do auto-denominado Estado Islâmico, ou as políticas ambíguas relativamente à Turquia e ao Irão, que, não fazendo parte do universo árabe, estão inseridos num mesmo contexto.

Porém, é tanto quanto possível escamoteado o facto de os grandes financiadores do djihadismo serem a Arábia Saudita e os países do Golfo, numa luta sem tréguas pelo controlo político e ideológico do Médio Oriente. Países que recebem o complacente apoio do Ocidente.

As vítimas inocentes da não inocente política internacional clamarão vingança.

Quantas vezes teremos de regressar a este assunto???

segunda-feira, 15 de maio de 2017

A ESPOSA DE CÉLINE




Foi editado por estes dias o livro Lucette Destouches, épouse de Céline, de Véronique Robert-Chovin, uma especialista, com obra publicada, do autor de Voyage au bout de la nuit.

Lucette Destouches, nascida Lucie Almansor, em Paris, em 20 de Julho 1912, antiga bailarina clássica, conheceu Céline em 1936, casaram-se em 1943, e mantém-se ainda hoje viva,  com 104 anos, o que não deixa de ser prodigioso, atendendo às atribulações da sua vida.

Véronique conheceu-a em 1970, tinha então 18 anos e Lucette 58. Seguiu os seus cursos de dança, que esta ministrava para sobreviver, e depois partiu para a sua vida. Mas realmente nunca a deixou. Regressou em 1989, para a acompanhar, e permaneceu até hoje a seu lado, quando não fisicamente, pelo menos em contacto directo.

A viúva de Céline ofereceu-lhe, em 1995, o seu primeiro caderno de memórias, repetindo a frase do marido: «La grande défaite c'est l'oubli.» E pediu-lhe que passasse a registar as suas recordações e também o que ambas faziam. São hoje seis, cada um com cerca de 300 páginas, os cadernos com as impressões da velha senhora.

Em 25 de Outubro de 1997, então com 85 anos e fatigada de viver, Lucette deita-se a aguardar a morte. Até hoje... Desde essa altura passará a ter assistência domiciliária permanente.

Em 20 de Julho de 2012, Lucette completou 100 anos. Houve festa na casa de Meudon, com a participação dos mais íntimos, que a rodearam de flores. O livro agora publicado contém precisamente o conteúdo do 6º caderno, iniciado nessa data e que se prolonga até 19 de Janeiro de 2016. 

Lucidamente reflecte: «Ça n'existe pas d'avoir 100 ans, On ne devrait pas vivre aussi longtemps mais c'est la curiosité qui mantient la vie.»

Durante os quatro anos que o caderno reporta, principalmente nos dois primeiros, Lucette vai desfiando o seu rosário de recordações, dos mínimos pormenores quotidianos até aos acontecimentos que marcaram a sua vida. Sempre com uma referência especial às personagens que com ela se cruzaram no decorrer de tão longa existência. É de salientar a evocação, várias vezes feita, de Marcel Aymé, um amigo fiel, e um dos poucos que acompanharam o enterro de Céline, falecido em 1 de Julho de 1961, com 67 anos, e cujo óbito Lucette tentou manter, quanto possível, em segredo. Outras personalidades que acompanharam o féretro, Claude Galimmard, Roger Nimier e Lucien Rebatet, ao todo umas trinta pessoas.

De Paul Morand, que frequentava o casal, cita esta frase a propósito do marido: «C'est un pauvre chien d'aveugle qui s'est fait écraser, tout seul, pour sauver son maître infirme, cette France qui continue à tâter le bord du trottoit.» (p. 30) Para ela, Morand foi quem melhor compreendeu Céline.

São dolorosas as recordações da prisão na Dinamarca, após a passagem por Berlim destruída, uma cidade de fantasmas. Lembra que após a prisão na Dinamarca, começou a decadência física do marido, que mudou radicalmente os seus hábitos: pouco se lavava e quase não mudava de roupa. Vivia como um clochard. Inclusive, cessou a sua actividade sexual.

Evoca também a visita de Pierre Bergé, numa altura em que o actual milionário francês não se ocupava ainda dos negócios do pintor Bernard Buffet.

Recorda a sua prisão na Dinamarca em 17 de Dezembro de 1945 e a forma como soube que o marido se encontrava na mesma prisão. Céline só será libertado a 24 de Junho de 1947. O regresso a França dá-se a 1 de Julho de 1951.

Em 20 de Julho de 2014, Lucette celebra o seu 102º aniversário e os registos começam a escassear, sendo os momentos de perfeita lucidez cada vez mais raros, e a vontade de dormir cada vez maior.

Em 18 de Setembro, segundo o caderno, Henri Godard, o grande biógrafo de Céline e seu editor na "Pléiade", revela, pela primeira vez, que se encontrou com Céline em Meudon, em 1959. Lucette não gosta dele e considera que ele deve a sua carreira a Céline, e critica-o por que ele se consagrou unicamente à obra, a qual não pode ser compreendida sem conhecer verdadeiramente o homem. (p. 139)

Em 19 de Maio seguinte, citando Lucette: «Elle a connu un monde qui n'existe plus et elle ne comprend pas pourquoi sa vie ne s'arrête pas puisqu'ils sont tout morts autour d'elle.» (p. 157/8)

E em 23 de Junho: «Dans la vie, s'amuser est le plus important. Les gens sont tout trop sérieux et rasoirs, ils se donnent de l'importance et ne rigolent pas. Tout ça pour se retrouver morts dans la terre. C'est ridicule.» (p. 161)

Em 17 de Fevereiro (deverá ser Janeiro, possivelmente um erro da autora, pois o facto está registado na última entrada do "diário", que é de 19 de Janeiro), Lucette cai nas escadas e é hospitalizada no hospital de Percy, em Clamart. Nesta altura é encerrado o livro, pois Lucette nada mais poderá confiar à sua interlocutora. Aliás, as recordações dos últimos anos foram-se já confundindo com a passagem das horas...

A título de curiosidade, exibimos abaixo a digitalização da página do "Magazine Littéraire" nº 2017, de Janeiro deste ano, em que aparece uma crítica ao livro em apreço.


(Clique na imagem para aumentar)


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Em 2011, o já citado Henri Godard, professor na Sorbonne, publicou Céline, a monumental biografia (600 páginas) do autor de Bagatelles pour un massacre, de Les Beaux Draps e de L'École de cadavres, obras "malditas" cuja reedição Lucette sempre se recusou autorizar, por terem estado, além de outros factos, na base da condenação do marido à "indignidade nacional", devido às considerações anti-semitas.

Deve acrescentar-se que até há muito pouco tempo só era possível adquirir estas obras (a 1ª e única edição) em alfarrabistas especializados e a preços exorbitantes. Verifica-se, contudo, desde há alguns meses, que as mesmas estão disponíveis em Amazon.fr, editadas por Omnia Veritas, por valores entre os € 20.00 e € 25.00. Todavia, desde tempos já "remotos", era fácil fazer download das mesmas no Google. Dada a interdição da viúva, ainda viva, mas já não lúcida, ignoro da legalidade daquelas edições.

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Em 2016, foi editado o dvd Céline, realizado por Emmanuel Bourdieu (filho do famoso sociólogo Pierre Bourdieu), que descreve o encontro, em 1948, nos remotos campos dinamarqueses, entre o escritor francês e o jovem escritor e universitário judeu americano Milton Hindus, que o admirava e o apoiava com o maior entusiasmo e que pretendia editar um livro relatando as recordações desse encontro.

Parece que Hindus não conhecia bem as obras "malditas" de Céline e os encontros entre os dois decorreram francamente mal. O americano veio a publicar essas conversas, The Crippled Giant, o que lhe valeu um processo de Céline, sem consequências, já que a obra não teve qualquer eco em França. Foi a partir deste livro que Bourdieu escreveu o argumento e realizou o filme que, salvo melhor opinião, fornece uma visão distorcida da realidade, mesmo atendendo ao feitio de Céline e às suas opiniões certamente controversas.

 
Sepultura de Céline, com lugar para a mulher, ainda viva

domingo, 14 de maio de 2017

ALAIN DEFOSSÉ





Morreu Alain Defossé, escritor e tradutor francês, autor de algumas obras notáveis, como Effraction (2015), que nasceu em Nantes em 11 de Fevereiro de 1957. Tive conhecimento do óbito através de um amigo comum, também grande escritor francês, Gilles Sebhan, que procedeu hoje à sua divulgação.

Alain Defossé era um apaixonado por Portugal, especialmente pela cidade do Porto, aonde estivera há alguns meses. Nessa ocasião, dera-me conta, através das mensagens que trocámos, do seu estado de saúde, recusando, todavia, entrar em pormenores. Lamentara não poder vir a Lisboa e não me fora dado na altura deslocar-me ao Porto para com ele me encontrar. Entretanto, regressou precipitadamente a França.

Espírito profundamente culto e dotado de rara sensibilidade, a sua morte prematura (apenas com 60 anos) deixa um vazio na literatura francesa.

Em homenagem, leiamos as suas obras.

domingo, 7 de maio de 2017

O GRANDE CAGLIOSTRO





Não! Não me refiro ao romance, hoje quase esquecido, de Carlos Malheiro Dias, O Grande Cagliostro, de que existe uma adaptação teatral que desconheço [Cf. João Bigotte Chorão, in Carlos Malheiro Dias na ficção e na história, 1992]. Refiro-me ao livro Cagliostro ou le dernier des alchemistes (The Last Alchemist, Count Cagliostro - Master of Magic in the Age of  Reason, no original), do historiador australiano Iain McCalman, natural da ex-Niassalândia, especialista do século XVIII europeu e professor da Universidade de Sydney.

Nesta obra, publicada em 2003 e traduzida para francês em 2005, o autor revisita a figura de uma das mais controversas personagens do século XVIII, para uns um charlatão, para outros um mágico, curandeiro e arguto manipulador, a quem muitos estudiosos atribuem uma contribuição fundamental para a eclosão da Revolução Francesa.

A sua figura não deixou indiferentes os mais cultivados espíritos modernos, mas foi o romance de Alexandre Dumas, Joseph Balsamo, publicado em 1846/7, primeira parte de uma tetralogia intitulada "Mémoires d'un médicin", que o tornou mundialmente célebre. O cinema não lhe foi indiferente: em 1949, surgiu Black Magic, de Gregory Ratoff, com Orson Welles no protagonista, e em 1979, Joseph Balsamo, de François Rivière, versão mais fiel ao romance, segundo o autor do livro [mas de que não achei rasto, apenas encontrei referência à mini-série televisiva homónima, realizada por Pierre Nivollet, e apresentada em 1973, com interpretação de Jean Marais].

A ideia que se formou na Europa, nos dois últimos séculos, acerca de uma conspiração internacional em que Cagliostro desempenhara um papel fulcral, é hoje devidamente analisada, inclusive por Umberto Eco, n'O Pêndulo de Foucault (1988).

A fonte mais importante para o conhecimento da vida de Cagliostro, publicamente reconhecido como franco-maçon, é o panfleto de monsenhor Giovanni Barbieri, que começou a circular pela Europa e viria a ser publicado em Dublin, em 1792, com o título La vie de Joseph Balsamo, appelé communément comte de Cagliostro etc., depuis sa naissance jusqu'à son emprisonemment au Château Saint-Ange, transcription des actes du procès, publiée à Rome sur ordre de la Chambre. Apostolique.

A obra de Barbieri provocou grande controvérsia entre católicos e maçons e nem mesmo Mozart, também ele franco-maçon, se eximiu de apresentar na sua ópera maçónica A Flauta Mágica (1791), uma personagem identificável a Cagliostro, o Grande Sacerdote Egípcio, Sarastro. 

O famoso poeta e mestre da gravura britânico William Blake, no seu poema profético de 1791, The French Revolution, apresenta Cagliostro como uma das grandes figuras da contra-cultura. Também o pintor Philipp de Loutherbourg elaborou vários estudos para a Loja Maçónica Egípcia do criador do novo rito e o próprio Houdon esculpiu o seu busto.


Cagliostro, por Houdon


Outros artistas dele se ocuparam igualmente, sem chegarem a formular um juízo quanto ao facto do indivíduo simbolizar Deus ou o Diabo. Entre outros exemplos, Schiller, no romance inacabado O Adivinho Fantasma (1789), Edward Bulwer-Lytton, no romance maçónico Zanoni (1842), Dupaty, no bailado Cagliostro ou le Magnétiseur (1851) ou mesmo Johann Strauss II, na opereta Cagliostro in Wien (1875).

O próprio Casanova, que chegou a encontrar-se com o mágico, refere-se-lhe na História da Minha Vida (edições diversas) e em Solilóquios de um Pensador (edição de 1998), onde se interroga sobre o sucesso de Cagliostro. O historiador e filósofo escocês Thomas Carlyle deu conta da sua existência em Count Cagliostro: In Two Flights (1833), estudo depois incluído em Critical and Miscellaneous Essays (1898). E no seu grande livro The French Revolution: A History (1837), julgou apropriado reservar a cena final a Cagliostro, o homem que profetizou a Revoução: «"... toujours les demeures des hommes détruites, les montagnes même pelées et fendues en deux, les vallées noires et mortes. C'est un monde vide! Malheur à ceux qui naîtront alors! Un roi, une reine précipités à terre... Iscariot Égalité précipité à terre, et toi, sinistre de Launay avec ta sinistre Bastille! Des familles, des peuples entiers, cinq millions d'hommes se détruisant mutuellement! Car c'est la fin de la domination de l'imposture (elle est les ténèbres, elle est le grisou, vapeur opaque). C'est la combustion dans un feu inextinguible de tout ce qui tourbillone sur terre." Cette prophétie, disons-nous, n'a-t-elle pas été accomplie, ne s'accomplit-elle pas?»

Transcrevemos da página 304 do livro de McCalman: «La description par Carlyle de Cagliostro comme l'archétype du charlatan en fait en mythe si fascinant que, comme tous les mythes, il s'est détaché de son ancrage historique et a vogué jusqu'à nous. Un critique de la société aussi brillant qu'Umberto Eco s'en est emparé et lui a trouvé un nouveau port d'attache. Pour Eco, Cagliostro a une valeur prophétique dans notre époque postmoderne. Cagliostro, c'est le signe vide, l'individu tellement ordinaire qu'il devient un aimant polarisant tous les fantasmes de gens qui ont perdu le sens des réalités. Aujourd'hui, soutient-il, les aventuriers du type Cagliostro ne vont pas en Italie ou en France - ils partent pour la Californie où ils s'affublent des oripeaux des prophètes, des magiciens et des guérisseurs de notre temps: ils exploitent l'incertitude psychologique et l'absence de repères moraux de nos contemporains. Les Cagliostro d'aujourd'hui proclament une «crise de la raison» et substituent au monde réel une «industrie du faux absolu»: «châteaux enchantés» hyperréalistes, «monastères du salut», cathédrales kitsch, etc. Les chamans modernes qui travaillent à la télé font écho au grand Copte: ils lèvent les yeux au ciel pour évoquer une visitation divine, ils grognent douloureusement quand ils affrontent le diable corps à corps et, pour guérir les gens, ils leur caressent les mains en débitant un flot harmonieux de paroles. C'est à Los Angeles plutôt qu'à Paris ou Rome que l'on peut trouver les descendants de la maçonnerie égyptienne, les gourous de tout genre, les voyants opérant sur Internet, les exorcistes ou nécromanciers, les pseudo-Rose-croix et les Templiers attardés.»

Walter Benjamin tem uma atitude diferente. Para o filósofo alemão, «o papel de Cagliostro enquanto porta-voz da magia fez dele um titã da história da cultura ocidental. Benjamin considera-o como um messias clandestino e um génio da desordem pregando a irracionalidade criadora num mundo repressivo. Ao ver em Doria um precursor do totalitarismo do século XX, Cagliostro aparece-lhe como um precioso grão de areia na máquina das Luzes, como o defensor das origens mágicas reprimidas da ciência - repressão que se acentuará depois da Revolução Francesa. Ele é o último verdadeiro alquimista - é o fantasma do irracional que regressa actualmente a assombrar os fetichistas da razão, à maneira dos espíritos que ele invocava nas suas sessões de vidência.»

Voltando ao livro de Iain McCalman, considerado como romance, o autor traça uma biografia (ficcionada) de Cagliostro, desde os seus  tempos em Palermo, onde nasceu em 1743, no então bairro judaico da Albergheria, com o nome de Giuseppe Balsamo, até à sua prisão em Roma pela Inquisição, em 1791, encerramento no Castelo de Sant'Ângelo, condenação à morte, comutada para prisão perpétua pelo papa, transferido para cela solitária no Castelo de São Leo, e morte em 1795. Durante a sua vida cometeu feitos extraordinários, frequentou dos lugares mais sórdidos às cortes da Europa, de Versalhes a São Petersburgo, viajou por inúmeros países do Velho Continente e até, segundo afirmava, pelo Egipto, Pérsia e Índia, relacionou-se com notáveis figuras do seu tempo, e foi envolvido no famoso caso do "Colar da Rainha", que comprometeu Maria Antonieta e, como se disse acima, terá contribuído para acelerar a eclosão da Revolução Francesa. Casou em Roma com uma beldade, Lorenza Feliciani, conhecida por Serafina, que muito o ajudou nas suas manigâncias e na obtenção de contactos com as personalidades que desejava conhecer. Quando, na juventude,  fugiu da Sicília, por roubo, passou a intitular-se conde de Cagliostro, e assim passou à história.

O livro aborda as diversas facetas desta personagem que, à época, foi conhecida em todo o mundo: o franco-maçon, o necromante, o xaman, o copta, o profeta, o rejuvenescedor e o herético, para concluir que, globalmente, ele se tornou o imortal.

Não cabe evidentemente aqui a descrição da vida e aventuras de Cagliostro, mas os interessados poderão ler com proveito o livro em apreço, ainda que esta tradução contenha alguns erros e imprecisões, nada porém que lhe retire o mérito de dar a conhecer tão extraordinária criatura.

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Também Carlos Malheiro Dias não foi insensível à personagem de Cagliostro. Na sua novela romântica (como ele lhe chama) O Grande Cagliostro (1905), o escritor e historiador coloca o mágico em Lisboa (usando o título de conde de Stephanis), no tempo de D. Maria I, insinuando-se junto do herdeiro do trono D. José, príncipe do Brasil (que haveria de morrer, vítima da varíola, aos 27 anos), e que era um adepto da Maçonaria, dos enciclopedistas e um fervoroso admirador do falecido marquês de Pombal. As suas ideias e a sua juventude, faziam dele um joguete da Corte (fora obrigado aos 15 anos a desposar sua tia materna 15 anos mais velha) e um alvo das suspeições do Intendente-Geral da Polícia Pina Manique, que lhe apreendia na alfândega os livros proibidos encomendados em Paris. Não sendo tomado a sério, considerado como uma criança, existia nele, todavia, o desejo de governar, que Cagliostro pretende aproveitar em proveito próprio, tecendo mais uma das suas proverbiais intrigas e convencendo-o de uma conspiração tendente a eliminá-lo, em que estaria envolvida a Nobreza, a Igreja e os conservadores mais poderosos do Reino. O propósito de Cagliostro seria  o de afastar (ou eliminar) D. Maria I, para que o príncipe do Brasil subisse ao trono com o nome de D. José II, afastasse dos negócios do Reino o poderoso arcebispo de Thessalonica, confessor da rainha e especialmente Pina Manique, o Intendente-Geral da Polícia, que lhe movia uma perseguição sem tréguas e que acabou por conseguir detê-lo e remetê-lo para Roma, apesar dos imensos recursos estratégicos do famoso mágico.

Não interessa, naturalmente, ajuizar da veracidade do relato de Malheiro Dias mas de enaltecer a verosímil trama em torno da personagem, que é suposto ter realmente efectuado uma passagem por Lisboa, durante as suas digressões pela Europa.



O ano passado foi publicada a tradução portuguesa do livro do falecido  Marc Haven, Cagliostro - O Mestre Desconhecido, pelas Edições Nova Acrópole.


segunda-feira, 1 de maio de 2017

A MORTE DO MARQUÊS DE LOULÉ




Foi publicado há poucos dias um interessante livro de Fernando de Almeida e Vasconcellos, O Marquês que Desafiou a Morte, cuja apresentação teve lugar na Sociedade Histórica da Independência de Portugal. Trata-se de uma obra sobre a estranha morte de Agostinho Domingos José de Mendoça Rolim de Moura Barreto, 1º marquês de Loulé e 8º conde de Vale de Reis, ocorrida no Paço de Salvaterra de Magos, em 28 (ou 29) de Fevereiro de 1824.

Esta edição recordou-me que há muitos anos comprara (mas não chegara a ler, devido a outros afazeres), um livro sobre o mesmo tema: Uma Tragédia na Corte  - A Morte do Marquês de Loulé, de António Cabral.

Por uma questão cronológica, resolvi ler agora, em primeiro lugar, o livro de António Cabral e só depois o de Fernando Vasconcellos.

O assunto é o mesmo. O marquês de Loulé (1780-1824), estribeiro-mor de D. João VI, foi encontrado morto, na manhã do dia 29, em cima de um monte de entulho de um saguão para o qual dava uma janela, sem protecção, próxima da saída da tribuna real do teatro do Paço de Salvaterra, onde tivera lugar, a 28, uma representação por ocasião das festas de Carnaval desse ano.

Tratando-se de uma das mais ilustres figuras do Reino, o facto provocou a maior comoção, tanto mais que, desde o primeiro instante, se suscitaram fortes suspeitas de que o fidalgo pudesse ter sido assassinado. O Auto de Exame do Corpo de Delito concluía como pouco provável uma queda acidental do marquês quando se dirigiu do teatro para os seus aposentos, ainda antes de terminado o espectáculo, atendendo à posição em que se encontrava o cadáver e à ausência de ferimentos, à excepção da cabeça, que teria sido atingida por instrumento contundente. Dadas as circunstâncias, ordenou D. João VI que se iniciasse imediatamente uma Devassa, com a finalidade de averiguar a identidade do(s) autor(es) do crime. A hipótese de acidente estava, pois, afastada desde o início. Ouvidas dezenas de testemunhas, nunca se apurou a verdade, e em 24 de Junho de 1825, numa tentativa de conciliação nacional, o rei decretou um indulto que abrangia os implicados no assassínio do marquês de Loulé e na "Abrilada", que ocorrera posteriormente ao crime, salvaguardando algumas pessoas que deveriam ser exiladas do país, mais por causa da "Abrilada" do que do caso Loulé. As devassas foram seladas e arquivadas na Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça.

Não cabe aqui uma descrição minuciosa do caso, tanto mais que ambos os livros aproveitam o tema para se debruçarem sobre outros assuntos da época.



Em António Cabral, podemos ler uma descrição da vida em Portugal naquele tempo, nomeadamente na Corte, e de alguns mistérios que a História para sempre guardou. E também, e inevitavelmente, a referência à disputa entre liberais e legitimistas, que percorreu todo o reinado de D. João VI. O autor transcreve o depoimento da maior parte das testemunhas e conta como conseguiu ter acesso ao volumoso processo, que julgava desaparecido. Foi através do escritor Rocha Martins que tomou conhecimento de que se achava arquivado na secção "Feitos findos", da Torre do Tombo, então junta à Basílica da Estrela. A partir dele, pôde elaborar o seu trabalho, concluindo que a morte do marquês se deveu a acidente e não a homicídio e procurando sempre afastar qualquer suspeita em relação a uma intervenção do infante D. Miguel, que, dadas as suas posições opostas às do marquês, sempre foi considerado como um provável instigador do crime. É aliás patente ao longo do livro a simpatia do autor pela causa legitimista, por D. Miguel e pela rainha D. Carlota Joaquina.

Fernando de Almeida e Vasconcellos procede também à descrição da vida na Corte e no país, mas começa por enfatizar a iniciação maçónica do marquês de Loulé, em Outubro de 1801. Descreve depois as conspirações da nobreza, as invasões francesas, a adesão de Loulé à Legião portuguesa de Napoleão Bonaparte, a condenação à morte por traição à pátria e a ida ao Brasil solicitar o perdão real, a "Vilafrancada", os laços estabelecidos com D. João VI e a lei anti-maçónica de 20 de Junho de 1823. Sendo discutida nas lojas maçónicas a hipótese de destronar o rei e afastar D. Miguel e D. Carlota Joaquina, resolveu Loulé manifestar publicamente a sua inequívoca lealdade ao  monarca, assinando um documento em que se comprometia a não pertencer desde então a qualquer sociedade secreta (8 de Julho de 1823).  Durante a sua brilhante carreira política e militar, Loulé fizera muitos amigos mas também muitos inimigos, um dos mais conhecidos o marquês de Abrantes. As suas ideias liberais incompatibilizavam-no com os mais legitimistas dos membros da nobreza. A sua morte, que foi certamente um homicídio, poderia dever-se aos ideais políticos, já que fora uma das personagens a incentivar D. João VI a tomar a decisão de "encabeçar" a "Vilafrancada", frustrando os desígnios de D. Miguel. Todavia, Vasconcellos, inclina-se decisivamente para uma conspiração maçónica contra o marquês, quer pela sua deserção da Maçonaria, quer pelo facto de poder estar na posse de segredos maçónicos que os outros maçons, entre os quais o conde de Paraty, receavam pudessem vir a ser divulgados. A própria morte, devidamente analisada, configura um assassinato ritual, embora ninguém fosse sentenciado devido ao régio indulto. Mas o livro regista determinadas personagens, algumas de baixa escala social, que poderiam ter sido as executoras do crime. Também Vasconcellos procede à transcrição do processo, como o fizera António Cabral.

A morte do 1º marquês de Loulé impressionou muito D. João VI, que imediatamente confirmou seu filho mais velho Nuno (havia também um filho bastardo)  como 2º marquês e 9º conde de Vale de Reis. Nuno José Severo de Mendoça Rolim de Moura Barreto, que haveria de casar em 1828 com a infanta D. Ana de Jesus Maria, filha (reconhecida) de D. João VI e de D. Carlota Joaquina, teve uma importante carreira política, tendo sido várias vezes ministro e presidente do Conselho de Ministros, senador e par do Reino. Em 1862, D. Maria II elevou-o à categoria de duque de Loulé.

A morte do 1º marquês de Loulé permanece oficialmente um mistério, embora se possa sustentar como inadmissível a hipótese de acidente. Tratou-se pois de um crime, e certamente que D. João VI teve conhecimento dos seus autores, seja de quem mandou, seja de quem executou.

Sendo hoje praticamente impossível encontrar o livro de António Cabral, poderão os interessados ler, com vantagem, o recém-publicado livro de Fernando Vasconcellos. E tirar as suas conclusões.