sexta-feira, 30 de setembro de 2022

A ESTRANHA MORTE DA EUROPA

Por sugestão de um amigo, li A Estranha Morte da Europa, de Douglas Murray, jornalista e escritor britânico (n. 1979). Trata-se da tradução de The Strange Death of Europe (2017), tendo a versão portuguesa sido publicada em 2018. Curiosamente, este livro passou-me despercebido, ou porque já não preste às recensões a mesma atenção de outrora, ou porque a sua difusão tenha sido alvo de uma certa discrição, para não escrever boicote, atendendo ao tema em apreço.

Não obstante, Murray tem colaborado regularmente em diversos jornais e é autor de livros sobre temas aparentemente diversos, que vão da política à sexualidade, da religião à sociologia. Este livro faz parte de uma "trilogia", sendo o segundo volume The Madness of Crowds: Gender; Race and Identity (2019), traduzido em português com o título A Insanidade das Massas (2020) e o terceiro The War on the West: How to Prevail in the Age of Unreason (2022), ainda não traduzido em português. 

Parece-me evidente que A Estranha Morte da Europa deveria ser de leitura obrigatória desde o momento da sua publicação. Não porque subscreva integralmente todas as teses do autor, mas porque o panorama descrito relativamente à Europa é de uma clareza meridiana, as informações bastante objectivas e todas as fontes de informação pormenorizadamente identificadas.

Sendo uma obra contra o mainstream, ela veicula ideias contrárias à doxa politicamente correcta que é geralmente adoptada pelos políticos europeus. Acusado de fomentar teorias da conspiração, Murray tem sido publicamente interpelado a propósito dos seus escritos e em muitas livrarias os seus livros não se encontram expostos ou sequer disponíveis. 

Importa, contudo, dizer que no livro em questão a informação é absolutamente factual, tendo o autor inventariado minuciosamente os acontecimentos que refere, num trabalho digno do maior apreço.

O tema central é a imigração para a Europa de pessoas oriundas de outras partes do mundo, fenómeno que se verifica sistematicamente há mais de meio século mas que assumiu nas últimas décadas proporções inimagináveis, designadamente depois da invasão do Iraque pela coligação anglo-americana, do ataque ocidental à Líbia na sequência das "primaveras árabes" e da guerra híbrida na Síria. Não é propriamente a imigração em si mesma que preocupa Douglas Murray mas o seu volume. O autor relata detalhadamente os fluxos migratórios  nos anos mais recentes, a dificuldade da sua absorção, as progressivas inquietações dos cidadãos europeus, e a forma como foram tratadas pelos governos europeus as vagas de migrantes, especialmente desde o princípio do corrente milénio. E denuncia o multiculturalismo como uma ideia durante anos muito defendida mas cujos resultados classifica de trágicos.

Segundo Murray, a principal preocupação inicialmente manifestada pelos europeus (brancos) era a cor da pele dos migrantes (negros, árabes, turcos e por aí forma) e muitos dos seus costumes e tradições não integráveis (pelo menos facilmente) nas populações. Hoje, porém, Murray considera a cor da pele um factor secundário, atribuindo à religião (no caso, a muçulmana) a principal dificuldade no convívio quotidiano. É que o islão, mais do que uma religião, é todo um sistema de valores incompatível (se levado a sério) com os valores dominantes da civilização dita ocidental.

Os governos da Europa Ocidental recusaram, durante longo tempo, admitir a existência de problemas com a permanência no continente de milhões de imigrantes provenientes de longínquas proveniências, ainda que inicialmente fossem norte-africanos, turcos e indianos (do subcontinente em geral) os representantes mais significativos do contingente. Essa recusa baseou-se no receio de serem considerados xenófobos ou racistas e só muito recentemente começaram a ser tomadas medidas realmente efectivas para conter o imparável fluxo. Muitas foram as razões invocadas: desde as vantagens para a economia, uma vez que a população activa da Europa está envelhecida e não cessa de diminuir, à oportunidade de estabelecer uma diversidade cultural no velho continente. E também razões de ordem mais pragmática, como a impossibilidade de travar a imigração devido à globalização. E de ordem moral, uma vez que muitos dos migrantes fugiam da fome, da guerra, de perseguições. Estes aspectos são minuciosamente tratados no livro. As imagens exaustivamente difundidas pela comunicação social confortaram a opinião dos governos e dos movimentos empenhados na imigração, uns por motivos humanitários autênticos, outros para justificarem a existência das respectivas associações.

É evidente que muitos dos argumentos sustentados por Murray são indesmentíveis mas é igualmente verdade que, desde a Segunda Guerra Mundial, a Europa necessitou da mão-de-obra migrante para numerosas tarefas, sobretudo aquelas que os europeus declinavam efectuar. Ainda hoje podemos constatar, até mesmo em Portugal, que os serviços considerados mais modestos são desempenhados por cidadãos das antigas colónias portuguesas de África e, mais recentemente, por brasileiros, bengalis ou paquistaneses. A juntar aos que abandonaram os seus países à procura de melhor vida, e para lá dos refugiados políticos (uma minoria, certamente), começaram a chegar à Europa homens, mulheres e crianças que fugiam da guerra (caso dos afegãos, dos sírios, dos líbios) e procuravam, e procuram, em territórios europeu, viajando a maior parte das vezes em precaríssimas circunstâncias, um porto de abrigo. A toda esta gente, deve somar-se um número imenso de imigrantes subsaharianos, que, após o assassinato do coronel Qaddafi, que os sustinha, começaram a utilizar a costa da Líbia par atravessarem o Mediterrâneo.

Pôs-se, assim, à Europa o dever moral de acolher estas populações em fuga por motivos económicos ou puramente de sobrevivência, fingindo ignorar-se que as capacidades de acolhimento não eram ilimitadas. Disse Michel Rocard (e estou a citar de cor) que a França não poderia acolher toda a miséria do mundo.

Todavia, o que Douglas Murray enfatiza não é apenas a quantidade dos migrantes mas a qualidade. Não a qualidade da raça mas a qualidade da religião. Sendo muçulmana a mais importante parcela de imigrantes na Europa, e sendo o islão uma religião que impõe os seus crentes normas especiais de conduta que excedem o domínio da fé, começaram a surgir problemas de convivência  com as populações autóctones, que conduziram a actos de violência que todos conhecemos, nomeadamente os praticados por adeptos do Estado Islâmico (o Daesh ou ISIS) surgido no Iraque após o enforcamento pelos americanos de Saddam Hussein e em consequência do desmantelamento do regime deste país.

Tudo o que escrevi, em sintética síntese, encontra-se pormenorizadamente descrito no livro de Murray. As tentativas de multiculturalismo falharam em quase todos os lugares, possivelmente porque teriam de falhar mas também porque, desde o começo das migrações argelinas para França ou indianas para o Reino Unido, ou depois turcas para a Alemanha, os governos não souberam (ou não puderam) criar as condições de habitabilidade para as populações recém-chegadas. O amontoar, durante décadas, de norte-africanos nas "cités", onde criaram verdadeiros baluartes, decorrentes de agrupamentos familiares, de proximidades geográficas ou de "afinidades electivas", é uma situação que devia ter sido prevista pelos governantes, mas não foi!

Com não posso transcrever todo o livro, permito-me, como exemplo, citar um período (p. 220): «Há alguns anos, durante uma conferência na Universidade de Heildelberg, que a catástrofe plena do pensamento alemão moderno me caiu subitamente em cima. Um grupo de académicos e outros tinham-se reunido para discutir a história das relações da Europa com o Médio Oriente e o Norte de África. Em breve se tornou claro que nada se poderia aprender, porque nada se poderia dizer. Sucessivos filósofos e historiadores passaram o tempo a tentar, cuidadosamente, não dizer nada com o maior êxito possível. Quanto menos se fosse capaz de dizer, maior o alívio e o aplauso. Nenhuma tentativa de abordar qualquer ideia, história ou facto conseguia passar sem primeiro ter feito uma paragem nas boxes da moderna academia. Nenhuma generalidade poderia ser aventada e nada de específico poderia ser proferido. Não era apenas a história e a política que estavam sob suspeita. A filosofia, as ideias e a própria linguagem tinham sido isoladas por um cordão, como se faz num cenário de crime. Para quem viesse de fora, a orla do cenário era claramente visível. O trabalho dos académicos era policiar o cordão, enquanto mantinham, ao mesmo tempo, algumas distrações para impedir, a todo o custo, os viajantes de tropeçarem de volta ao terreno das ideias.»

E, já agora, um outro período (p. 221): «Qual é a consequência de as pessoas virem para a Europa em quantidades enormes sem terem herdado as dúvidas e as intuições dos europeus? Neste momento ninguém sabe, nem ninguém alguma vez soube. A única coisa de que podemos estar certos é que isso terá uma consequência. Pôr dezenas de milhões de pessoas, com os seus próprios conjuntos de ideias e de contradições, num continente com o seu próprio conjunto de ideias e contradições tem de ter consequências. A presunção dos que acreditam na integração é que, a seu tempo, todos os que chegam se transformarão em europeus, uma presunção tornada menos provável pelo facto de que tantos europeus não têm a certeza se querem ser europeus. É altamente improvável que uma cultura de dúvida e desconfiança de si mesma seja capaz de persuadir outros a adotar a sua própria posição. Entretanto, é possível que muitos - pelo menos - dos que cheguem se agarrem às suas próprias certezas ou até, muito plausivelmente, atraiam europeus das gerações futuras com essas certezas. É plausível também que muitos daqueles que chegam desfrutem o estilo de vida, participem das aspirações e dos resultados da melhoria económica, desde que ela continue, e, ainda assim, desprezem ou desdenhem a cultura para o interior da qual vieram. Podem usá-la - como o presidente Erdoğan disse, inesquecivelmente, da democracia - como um autocarro, e saírem quando ela os tiver levado ao destino que queriam.»

Este livro, com mais de 300 páginas e uma densa mancha tipográfica, sendo um retrato vivo da Europa actual torna, por vezes, a sua leitura um pouco cansativa, dada a minúcia das descrições do autor. Nada perdia em ser mais breve, evitando a repetição de muitas situações idênticas. Sendo objectivo, algumas interpretações denunciam, à medida que se aproxima do fim, uma certa subjectividade anti-islâmica. Convém considerar que a esmagadora maioria dos muçulmanos na Europa é pacífica e só os acontecimentos no mundo árabe desde o início do milénio radicalizaram as convicções de muitos adeptos.

Também é verdade que a Europa não pode acolher todos quantos demandam a instalação no velho continente. Não é uma questão de insensibilidade ou mesmo de recursos económicos, é uma questão de espaço. E também é verdade, como autor enfatiza, que, em muitos locais, a população autóctone está a ser (ou quase já foi) substituída pela população migrante, com todas as inerentes consequências.

Conseguirá a Europa sobreviver a esta prova? O autor não responde. Eu também não!

 

terça-feira, 6 de setembro de 2022

A OBRA AO NEGRO

Nas minhas arrumações de DVD's passou-me pelas mãos, há dias, o Coffret contendo o DVD de L'Oeuvre au Noir, de André Delvaux (1988), a partir da obra epónima de Marguerite Yourcenar, e cuja designação original é The Abyss, título de um dos capítulos do romance ("L'Abîme"). Contém a caixa, além do DVD, um opúsculo incluindo um texto de Adolphe Nysenhole sobre o romance e a sua passagem ao cinema, um texto de André Delvaux sobre a película, a biografia e filmografia deste cineasta, e, sobretudo, a quase integral correspondência trocada entre Marguerite Yourcenar e André Delvaux a propósito da adaptação cinematográfica da obra.

Lendo estas cartas, da ideia de realizar o filme (1982) até às últimas filmagens (1987), a que Marguerite Yourcenar já não pôde assistir por ter sido vítima de um acidente vascular cerebral (não chegando, assim, a ver o filme), nota-se a reserva da escritora, desde o início, quanto à adaptação da obra, e a sua progressiva aceitação das propostas de Delvaux, embora se tenham mantido sempre algumas reticências relativamente às sugestões do realizador. Ainda que Yourcenar tenha escrito, numa primeira carta a Delvaux, estar interessada no projecto, acrescentou que essa anuência era sans réticences, mais non sans angoisse. Como é sabido, e com o assentimento da autora, Delvaux eliminou a primeira parte do romance, iniciando-se o filme com o regresso de Zenão a Bruges, sua terra natal.

Antes de rever o filme de Delvaux, resolvi reler L'Oeuvre au Noir (1968), mas na edição portuguesa, saída em 1985 e que comprei nessa data. Tinha lido o original, alguns anos a seguir à sua publicação, mas nunca lera A Obra ao Negro. Tive uma profunda decepção. Apesar de ser assinada por António Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes, a tradução é muito irregular, algumas expressões são incompreensíveis, contém indesculpáveis gralhas e o aportuguesamento dos nomes próprios (de pessoas e locais) constituirá um verdadeiro pesadelo para quem não estiver familiarizado com a mais elementar história e geografia. Fui-me apercebendo desta calamidade à medida que lia a tradução portuguesa; sempre que o texto me suscitava desconfiança, comparava-o com o original francês e verificava as discrepâncias.

Posto isto, importa dizer que L'Oeuvre au Noir é uma obra excepcional, o grande romance de Yourcenar sobre uma personagem "histórica" fictícia, ainda que não tenha alcançado a celebridade de Mémoires d'Hadrien (1951), sobre uma personagem "histórica" real, que tornou a escritora conhecida em todo o mundo. A espantosa erudição de Marguerite Yourcenar, revelada nos seus livros, e as suas reflexões sobre Deus (deus), sobre o homem e o universo, sobre a vida e sobre a morte, fazem dela um dos mais interessantes autores do século passado. Cultivou todos os géneros literários, da ficção ao teatro e da poesia ao ensaio. E foi também uma notável tradutora de várias línguas, incluindo o grego antigo (dos Clássicos) e o grego moderno (do famoso poeta alexandrino Constantin Cavafy).

A sua recriação da Europa do século XVI, das lutas religiosas, das heresias e das perseguições, da magia e da alquimia, das tentações da carne e das confusões dos espíritos, das delações e das fogueiras - e da imaginação de personagens fictícias (a começar por Zenão) a partir de modelos reais e em diálogo com personagens reais -, testemunha uma concepção notável do ambiente dos fins da Idade Média e do despertar da Modernidade. Apesar de um outro lapso menor, quando, por exemplo, refere que Filipe II herdou a Flandres de sua avó (Joana a Louca) quando na verdade a recebeu de seu avô Filipe I, o Belo (Rei-consorte de Espanha e duque da Borgonha), o texto está solidamente assente na verdadeira História.

Escreve Marguerite Yourcenar nas Notas em apêndice ao romance: «La formule L'Oeuvre au Noir, donnée comme titre au présent livre, désigne dans les traités alchimiques la phase de séparation et de dissolution de la substance qui était, dit-on, la part la plus difficile du Grand Oeuvre. On discute encore si cette expression s'appliquait à d'audacieuses expériences sur la matière elle-même ou s'entendait symboliquement des épreuves de l'esprit se libérant des routines et des préjugés. Sans doute a-t-elle signifié tour à tour ou à la fois l'un et l'autre.»

e

«Les quelques soixante années à l'intérieur desquelles s'enferme l'histoire de Zénon ont vu s'accomplir un certain nombre d'événements qui nous concernent encore: la scission de ce qui restait vers 1510 de l'ancienne Chrétienté du Moyen Âge en deux partis theólogiquement et politiquement hostiles; la faillite de la Réforme devenue protestantisme et l'écrasement de ce qu'on pourrait appeler son aile gauche; l'échec parallèle du catholicisme enfermé pour quatre siècles dans le corselet de fer de la Contre-Réforme; les grandes exploitations tournées de plus en plus en simple mise en coupe du monde; le bond en avant de l'économie capitaliste, associé aux débuts de l'ère des monarchies.»

Revisto o filme, que mal recordava, creio que, no geral, teria merecido a aprovação de Yourcenar, embora algumas cenas lhe tivessem suscitado óbvias reservas. É verdade que, mesmo reduzido o livro a metade, seria sempre difícil, mesmo impossível, encaixá-lo em 1 h 48 m de película. Além de muitas omissões há algumas contradições quanto ao texto e ao espírito da obra, mas o essencial permanece. Poderá culpar-se o realizador por uma excessiva discrição nas alusões à homossexualidade (tema caro à autora), tanto mais que a primeira parte do romance foi omitida no filme, mas o pouco que se diz e que se vê sugere o clima da época. Também é verdade que a ausência de legendas, especialmente num filme desta natureza, dificulta a compreensão dos diálogos, nem sempre bem articulados em francês Mas isso é um problema das editoras de língua francesa que pensam (ou pensavam) que todos compreendem perfeitamente a sua língua, mesmo quando usada por actores doutras nacionalidades, cuja pronúncia é naturalmente afectada, ou que não existem espectadores surdos ou de audição diminuída.

Concluindo, felicito-me por ter relido o livro e revisto o filme. L'Oeuvre au Noir continua a ser de uma pertinente actualidade. No mundo actual, cheio de certezas, as dúvidas de Zenão tornam-no, como escreveu algures André Delvaux, o primeiro homem europeu. O que não faz dele o primeiro homem da União Europeia.