sábado, 30 de setembro de 2017

VIENA, 1913




A century ago, one section of Vienna played host to Adolf Hitler, Leon Trotsky, Joseph Tito, Sigmund Freud and Joseph Stalin.


Pelo seu interesse, transcrevemos o artigo de BBC Magazine, publicado em 2013  e hoje recordado no Facebook pelo embaixador Francisco Henriques da Silva:


1913: When Hitler, Trotsky, Tito, Freud and Stalin all lived in the same place




In January 1913, a man whose passport bore the name Stavros Papadopoulos disembarked from the Krakow train at Vienna's North Terminal station.

Of dark complexion, he sported a large peasant's moustache and carried a very basic wooden suitcase.

"I was sitting at the table," wrote the man he had come to meet, years later, "when the door opened with a knock and an unknown man entered.

"He was short... thin... his greyish-brown skin covered in pockmarks... I saw nothing in his eyes that resembled friendliness."

The writer of these lines was a dissident Russian intellectual, the editor of a radical newspaper called Pravda (Truth). His name was Leon Trotsky.


The man he described was not, in fact, Papadopoulos.

He had been born Iosif Vissarionovich Dzhugashvili, was known to his friends as Koba and is now remembered as Joseph Stalin.

Trotsky and Stalin were just two of a number of men who lived in central Vienna in 1913 and whose lives were destined to mould, indeed to shatter, much of the 20th century.

It was a disparate group. The two revolutionaries, Stalin and Trotsky, were on the run. Sigmund Freud was already well established.

The psychoanalyst, exalted by followers as the man who opened up the secrets of the mind, lived and practised on the city's Berggasse.

The young Josip Broz, later to find fame as Yugoslavia's leader Marshal Tito, worked at the Daimler automobile factory in Wiener Neustadt, a town south of Vienna, and sought employment, money and good times.

Then there was the 24-year-old from the north-west of Austria whose dreams of studying painting at the Vienna Academy of Fine Arts had been twice dashed and who now lodged in a doss-house in Meldermannstrasse near the Danube, one Adolf Hitler.
 
 
 
Image caption The characters would have spent much time in these same two square miles of central Vienna

In his majestic evocation of the city at the time, Thunder at Twilight, Frederic Morton imagines Hitler haranguing his fellow lodgers "on morality, racial purity, the German mission and Slav treachery, on Jews, Jesuits, and Freemasons".

"His forelock would toss, his [paint]-stained hands shred the air, his voice rise to an operatic pitch. Then, just as suddenly as he had started, he would stop. He would gather his things together with an imperious clatter, [and] stalk off to his cubicle."
Presiding over all, in the city's rambling Hofburg Palace was the aged Emperor Franz Joseph, who had reigned since the great year of revolutions, 1848.

Archduke Franz Ferdinand, his designated successor, resided at the nearby Belvedere Palace, eagerly awaiting the throne. His assassination the following year would spark World War I.

Vienna in 1913 was the capital of the Austro-Hungarian Empire, which consisted of 15 nations and well over 50 million inhabitants.

"While not exactly a melting pot, Vienna was its own kind of cultural soup, attracting the ambitious from across the empire," says Dardis McNamee, editor-in-chief of the Vienna Review, Austria's only English-language monthly, who has lived in the city for 17 years.

"Less than half of the city's two million residents were native born and about a quarter came from Bohemia (now the western Czech Republic) and Moravia (now the eastern Czech Republic), so that Czech was spoken alongside German in many settings."

The empire's subjects spoke a dozen languages, she explains.

"Officers in the Austro-Hungarian Army had to be able to give commands in 11 languages besides German, each of which had an official translation of the National Hymn."

And this unique melange created its own cultural phenomenon, the Viennese coffee-house. Legend has its genesis in sacks of coffee left by the Ottoman army following the failed Turkish siege of 1683.
 
 
Image caption Cafe Landtmann, much frequented by Freud, remains popular to this day

"Cafe culture and the notion of debate and discussion in cafes is very much part of Viennese life now and was then," explains Charles Emmerson, author of 1913: In Search of the World Before the Great War and a senior research fellow at the foreign policy think-tank Chatham House.

"The Viennese intellectual community was actually quite small and everyone knew each other and... that provided for exchanges across cultural frontiers."

This, he adds, would favour political dissidents and those on the run.

"You didn't have a tremendously powerful central state. It was perhaps a little bit sloppy. If you wanted to find a place to hide out in Europe where you could meet lots of other interesting people then Vienna would be a good place to do it."

Freud's favourite haunt, the Cafe Landtmann, still stands on the Ring, the renowned boulevard which surrounds the city's historic Innere Stadt.

Trotsky and Hitler frequented Cafe Central, just a few minutes' stroll away, where cakes, newspapers, chess and, above all, talk, were the patrons' passions.

"Part of what made the cafes so important was that 'everyone' went," says MacNamee. "So there was a cross-fertilisation across disciplines and interests, in fact boundaries that later became so rigid in western thought were very fluid."



LUÍS MIGUEL NAVA, EM DIA DE REFLEXÃO




No dia consagrado à "reflexão" eleitoral, é importante reflectir sobre o desaparecimento do poeta Luís Miguel Nava, que ontem completaria 60 anos. O jornal OBSERVADOR, pela mão de Joana Emídio Marques, evoca o poeta, em extenso artigo que, com a devida vénia, transcrevemos, por ser do interesse público.

Quem matou o poeta Luís Miguel Nava?




No tempo em que festejavam o dia dos seus anos o poeta estava vivo e escrevia imagens que explodiam os sentidos. A 29 de Setembro faria 60 anos. Quem celebra, quem lê, quem procura Luís Miguel Nava?


Não é certo o dia, a noite, a hora a assinalar no calendário. Sabe-se apenas que era maio de 1995 na Rue de la Madeleine, em Bruxelas e que aí morreria o poeta Luís Miguel Nava, tinha 37 anos. O corpo foi encontrado na cama, de mãos e pés amarrados e com um profundo golpe na garganta.

A história desta morte andou o poeta a escrevê-la durante 15 anos em seis livros de poesia e um de prosa, descoberto anos depois no disco rígido do seu computador estragado. A história desta morte não acabará enquanto a sua poesia e o seu corpo continuarem a originar novas matérias feitas de sangue, das cidades, de ossos, metáforas, azuis a pique, de mares e desertos absolutos. Metáforas que estilhaçam os nossos hábitos mentais, que nos põem os olhos a enterrar os dedos na carne, poemas terríficos que nunca encontraram um lugar na poesia portuguesa, que nunca mereceram grande atenção da crítica e dos quais muito poucos se lembram.

Ele sabia que “desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras”. Neste 29 de Setembro, o poeta faria 60 anos. Morreu há 25. Deixou uma Fundação com o seu nome,uma biblioteca, muitos discos de vinil, uma obra de uma inquietante estranheza, ensaios, amigos, amantes, mistérios. Mas quem matou afinal Luís Miguel Nava?

Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animais que à minha volta pendiam degolados fosse o meu. Dancei até que em mim houvesse espaço para um poema de que todas as imagens depois fossem desertando.” (LMN, ‘Matadouro’, 1989)

Ironicamente, só o seu brutal assassinato lhe deu a atenção dos jornais portugueses. Porém, um ano depois, quando o jovem marroquino Mohamed Tourki, de 19 anos, foi condenado a 25 anos de prisão pelo crime, ninguém por cá parece ter dado conta. Apenas no jornal belga Le Soir encontramos a notícia do julgamento.

Tourki foi apanhado devido aos diários de Nava que davam conta da presença deste jovem instável na sua vida havia para mais de um ano. Não se sabe em que condições se conheceram, se era namorado ou prostituto. Em tribunal o adolescente alegou que fora violado, mas essa tese foi descartada porque o agressor também roubou o cartão multibanco, dinheiro, um leitor de CD e, nos dias que se seguiram ao crime, levantou cerca de 50 mil francos da conta do poeta, que trabalhava, há já alguns anos, como tradutor no Conselho das Comunidades Europeias.

A luz que desse sangue irradiava, como se nele o sol tivesse mergulhado e os raios nele se houvessem diluído, atravessava-me os poros e fazia-me cantar o coração. Tratava-se de uma luz que nada tinha a ver com a piedade ou a esperança, mas cuja música, sem me passar pelos ouvidos, ia direita ao coração, que no dos animais acabados de abater por momentos encontrava um espelho ainda quente… “

Terá a sua morte sido pacientemente tecida pelo próprio, que vivia perigosamente testando os limites do Eu, do corpo próprio e dos corpos alheios? Terá sido o coroar da sua obra, erigida sob um metódico mas alucinado estilhaçamento das fronteiras do Eu e do corpo? O culminar de um desejo inconsciente de transfiguração e metamorfose que a sua poesia anunciava? Ou, como escreveu o amigo que o encontrou naquele fim de tarde de Maio de 1995, Amadeu Lopes Sabino, terá ele, caminhado “de cabeça erguida em direcção ao ato sacrificial que constituiria a chave da sua poética”?



Películas, de 1979, é a sua estreia numa editora importante como a Moraes e vence o prémio Revelação da APE


Certo é que aos 33 anos convocou vários amigos para testemunhas do seu testamento. Garantia que nunca teria coragem de se suicidar, mas que em certas circunstâncias a sua visão da vida era já de tal modo distanciada que não podia “deixar de a a encarar como uma espécie de morte”. Disse que faria de Gastão Cruz o seu Azeredo Perdição, e deixava o projecto da criação da Fundação Luís Miguel Nava, do prémio literário. O seu lado metódico, obsessivo contrastava com o seu constante testar os limites do abismo, a sua exuberância social e sexual, a sua poesia alucinatória e ímpar. Em 1997 nasce a Fundação e o prémio literário com o seu nome destinado a obras de poesia. Nasce também a revista literária Relâmpago. À frente do projecto ficaram Gastão Cruz, Carlos Mendes de Sousa e Fernando Pinto do Amaral, tal como instituía o testamento.

A luz néon, ante aquela de que se esvazia o coração dum porco, é uma metáfora de impacto reduzido. A luz que das vísceras emana é a de deus, aquela que, por uma excessiva dose de trevas misturada, mais que qualquer outra se aproxima da de deus, que resplandece nas carcaças em costelas onde é fácil pressentir as incipientes asas de algum anjo” (ibidem)

O Observador falou com o poeta Fernando Pinto do Amaral sobre a actual actividade da Fundação e confirmou que o prémio literário está suspenso “por falta de subsídios”, o apartamento nas Laranjeiras, em Lisboa, que constitui a sede da entidade, tem depositada a biblioteca do poeta, as suas obras de arte, os seus discos e documentos pessoais, mas também os muitos exemplares não vendidos da revista Relâmpago, da antologia de poesia publicada em 2002 pela D. Quixote e um enorme silêncio.

A casa foi preparada para tertúlias ou eventos que não acontecem e, desde 2004, quando saiu na Assírio & Alvim um volume que reunia os ensaios de Nava, nunca mais foi feito nada de relevante para promover a obra do poeta. Pinto do Amaral disse também que no Brasil estão a ser feitos mais trabalhos académicos sobre Nava do que em Portugal.

Em 2007, há 10 anos, saiu na Relâmpago nº16, aquilo que será a única coisa inédita, fragmentos de um romance inacabado intitulado O Livro de Samuel, e que se crê abrir novos caminhos de interpretação da obra do poeta. O também poeta Gastão Cruz está, portanto, longe de ser o Azeredo Perdigão da Fundação Luís Miguel Nava, nome que a pouco e pouco todos vão esquecendo, para que outros possam ocupar o seu lugar. Luís Miguel Nava é, cada vez mais, um fantasma na sua própria casa.



Em Rabat. O poeta tinha um fascínio pelo Magrebe, em especial por Marrocos


Hoje, Luís Miguel faria 60 anos. Não há actividades previstas na fundação, nos festivais literários das redondezas, não há, como nunca terá havido, homenagens, nomes de ruas. Mesmo Viseu, a sua terra natal parece continuar a não ter conhecimento que ali nasceu e cresceu um dos nomes mais importantes da poesia portuguesa do final do século XX.

Habitar o próprio sangue


Em 1974 publica o primeiro livro, O Perdão da Puberdade, que num gesto anunciador de algum distanciamento em relação ao seu ego, acabará por colocar numa fogueira depois de ler a poesia de Eugénio de Andrade. No ano seguinte casa com a poeta Rosa Oliveira. O casamento dura poucos meses e Nava vem para Lisboa estudar Filologia Românica.

Terminada a licenciatura passa pelo colégio alemão como professor de Português. Mas as suas aulas fulgurantes, as ideias libertárias que ia disseminado entre os alunos motivaram queixas dos pais. Fez então um mestrado e fica como assistente na Faculdade de Letras de Lisboa. Irá depois para Oxford como Leitor antes de se fixar em Bruxelas, como tradutor de documentos burocráticos na CEE.

Se nunca se adaptou à solene Oxford, a vida de funcionário na capital belga viveu-a como um inferno. Paulo Silveira, seu aluno no colégio alemão e depois seu namorado durante vários anos, lembra, num depoimento publicado na revista Relâmpago, nº16, a personalidade solar de Nava nesses anos 80, apesar do horror da sida, a vertigem da cultura da imagem que o poeta soube integrar na sua lírica, as “noites no bairro alto a meter conversa com todos os rapazes e magalas que se nos atravessassem no caminho (…) ir ver a Lídia Barloff, engatar uns rapazes e a seguir acabar tudo numa grande rebaldaria na estrada de Benfica”.



Vulcão, Quetzal, 1994, é o seu derradeiro livro


Apesar de ter partilhado a década de 80 com Al Berto e fosse, como este, assumidamente homossexual, a poesia de Nava despojada da melancolia albertiana, mais abertamente homo-erótica, têm uma violência verbal e imagética, uma discursividade que, na opinião de Prado Coelho, a torna mais próxima de Luiza Neto Jorge ou Herberto Helder.

Perdia-se-lhe o corpo através do deserto, que dentro dele aos poucos conquistava um espaço cada vez maior, novos contornos novas posições, e lhe envolvia os órgãos que isolados nas areias, adquiriam uma reverberação particular (…) a sua carne exercia aliás uma enigmática atracção sobre as estrelas, que,em breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de quem não soubesse, como luminosas cicatrizes cujo brilho, transmutado em sangue,lentamente se esvaia… “(‘O Corpo Espacejado’, 1989)

Luís Miguel Nava consegue, ao mesmo tempo, evocar o corpo crístico, o corpo espectral que edifica dois mil anos de cultura judaico-cristã e o corpo solitário, angustiado e sem deus do homem moderno, cuja carne se confunde com as cidades, o plástico, as latas, as paredes. Mas sobretudo pela ideia obcecante do olhar que fere, do olhar que destrói, que abre o corpo destituído de qualquer espiritualidade , lhe expõe o sangue e as vísceras, os ossos, a corrente sanguínea, o corpo que está pendurado no mundo como uma carcaça num talho.

Poucos poetas manejaram tão corajosamente as palavras como destruidoras das fronteiras entre o interior e o exterior do corpo e do espírito. Excessivo, dirão alguns, este corpo que é simultaneamente o Eu e o Universo, não cessa de crescer, de se expandir, nada o contem. Através da sua poesia, Nava procura ir ao extremo do corpo e do pensamento, superar as fronteiras que a linguagem nos impõe, tocar as regiões mais recônditas e impensadas da existência, torná-las visíveis, iluminá-las. Talvez por isso a poesia de Nava se aproxime tanto da pintura, sobretudo da pintura de Francis Bacon. E no entanto como poderia Bacon pintar um “azul a pique” ou “o sangue a fazer corpo com a manhã”?



Luís Miguel de Oliveira Perry Nava (Setembro de 1957- Maio de 1995)


Silvina Rodrigues Lopes, num ensaio escrito em 1997, nota logo a importância do tato como o mais importante dos sentidos no universo deste poeta, aquele que aglutina os outros e permite a criação dessas metáforas, contradições, jogos de forças que atiram o pensamento do leitor para fora da sua órbita: “Agora que escurece, impregnam-me e carne os sucos da memória”. O olhar de Nava assume sempre o duplo papel de autopsiador e autopsiado. Afastando-se de um desejo figurativo do mundo ou reflexão sobre o Eu, Luís Miguel Nava quer captar as suas forças, os seus fluxos, as suas intensidades.

Só um espelho assim saído há pouco tempo das entranhas de um ser vivo se desenha a nossa verdadeira imagem”. (Matadouro, 1989)
Quando morreu, apesar da solidão e desânimo que a vida em Bruxelas lhe provocava e do seu constante flirt com a morte, o poeta continuava cheio de planos para o futuro. A sua paixão pelo escritor Manuel Teixeira Gomes desejava convertê-la em documentário e já tinha até apresentado um projecto à então Secretaria de Estado da Cultura, estava a aprender árabe e planeava adoptar Rashid, uma criança que conhecera em Essauira, Marrocos, além do romance iniciado O Livro de Samuel que começa assim:

“Paredes de um branco meio entrincheirado no sono, gastas pelo sonho de quem exaustivamente as sonhasse…”

NA MORTE DE LILIANE BETTENCOURT




Só agora tomei conhecimento da morte de Liliane Bettencourt, proprietária de L'Oréal e a mulher mais rica de França, ocorrida no passado dia 27, na sua casa de Neuilly, em Paris.

Figura curiosa da sociedade, uma senhora muito "vieille France", elegante e discreta , Liliane Bettencourt contava 94 anos e fora, há alguns anos, alvo privilegiado das notícias da imprensa francesa e mundial, devido a um processo de interdição intentado por sua filha, devido às suas liberalidades, em especial com o seu amigo predilecto, e muito mais novo, o fotógrafo-escritor homossexual François-Marie Banier (que a acompanhava na vida social), e também de dádivas "suspeitas" para a campanha de Nicolas Sarkozy.

Com a sua morte desaparece toda uma época, e só restarão recordações.

Tanta tinta correu na altura acerca dela, e dele, que evoquei o caso neste blogue, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui, pelo menos.

Espero que alguém se decida a escrever a biografia da velha senhora. Existe um livro de banda desenhada, Tout le monde aime Liliane. L'affaire Bettencourt, mas importa uma investigação séria, desde a vida e os negócios do pai, Eugène Schueller, à carreira do marido, André Bettencourt, ministro do general De Gaulle, de Georges Pompidou e de François Mitterrand, às amizades de Liliane, que se concentravam nomeadamente nos círculos culturais e homossexuais masculinos, aliás, a maior parte das vezes coincidentes.

Agora, morta a mãe (o pai morrera em 2007), a filha única, Françoise Bettencourt Meyers, casada com Jean-Pierre Meyers, neto de um rabi, e que decidiu que os filhos fossem educados segundo a lei judaica, poderá dispor livremente da totalidade da imensa fortuna.


quinta-feira, 28 de setembro de 2017

O CURDISTÃO




O referendo realizado no passado dia 25, no Curdistão iraquiano, traduziu-se em cerca de 93% de votos favoráveis à independência daquela região semi-autónoma.

O povo curdo encontra-se disseminado pela Turquia, Iraque, Síria e Irão, desde a constituição daqueles Estados, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial. A constituição de um Estado independente, que fora prometida aos curdos pelas potências ocidentais, ficou por concretizar, atendendo a outros interesses que se sobrepuseram aos compromissos assumidos. Apenas os arménios lograram obter um estado independente, aliás bem pequeno em relação à parte arménia que ficou integrada na Turquia.

Não é propósito deste post historiar a odisseia do povo curdo, nem a sua tenaz luta pela independência, especialmente dentro do território turco, onde existe a maior concentração populacional. Com o Iraque já realmente tripartido, a oportunidade deste referendo é uma esperança para os curdos, mas o governo do Iraque opõe-se tenazmente ao desmembramento do país. Também a Turquia, alarmada pelas previsíveis consequências da criação de um Estado Curdo, já ameaçou intervir.

A criação de um Curdistão independente teria como consequência lógica a adesão das populações (e territórios) dos outros três países: Turquia, Irão e Síria. A concretização de uma promessa centenária. Desconhece-se ainda a reacção oficial do "Mundo Ocidental", mas ela será no sentido de inviabilizar este propósito, não tanto pelos curdos, mas porque mexe na ordem estabelecida por Bruxelas e Washington, ordem que se rege por insondáveis desígnios. Ou não tanto. Diríamos antes, por tenebrosos desígnios.

Aguardemos...


terça-feira, 26 de setembro de 2017

A QUESTÃO DA CATALUNHA



A Questão da Catalunha parece-me simples, na sua enorme complexidade. A maioria, ou uma significativa parte dos catalães pretende a independência em relação à Espanha. A única forma de saber-se qual é a percentagem da população que manifesta essa vontade é ouvi-la.

Os acontecimentos que se têm verificado nas últimas semanas deixam-me perplexo.

O problema em causa tem duas vertentes: uma jurídica e outra política, mas não são, nem poderiam ser, inconciliáveis. A Constituição do Reino de Espanha, que consagra a autonomia das regiões, prevê que possa haver uma secessão, mas o processo é tão complexo que a saída de uma região constitui na prática uma impossibilidade. Logo, nenhuma região poderá abandonar o Estado Espanhol. Resta aos interessados organizarem eles mesmos uma consulta eleitoral. Foi o que fizeram os catalães ao marcarem um referendo para o próximo dia 1 de Outubro. Que o Governo Central de Madrid se apressou a declarar inconstitucional - e é - tomando medidas para evitá-lo. Mas como saber doutra forma a vontade dos catalães?

Parece que a decisão do parlamento de Barcelona não cumpriu exactamente todas as regras processuais mesmo do ponto de vista catalão, já que do ponto de vista madrileno seriam sempre inválidas. Se assim foi, é pena.

Mas as medidas adoptadas pelo estulto Rajoy são um exemplo gritante do que não deveria ser feito neste caso. Não vale a pena aqui descrevê-las, já que são do conhecimento público, mas elas só podem exacerbar o nacionalismo catalão, e, o que será muito mais grave, provocar actos de violência.

Afigura-se que colocado perante a decisão de um referendo, o Governo de Madrid se deveria ter limitado a declará-lo inconstitucional, e aguardar os resultados. Porque, realizando-se o referendo com a normalidade e transparência que se exige a tal acto, só pode surgir um de dois resultados: ou a maioria dos catalães é favorável à independência, ou não.

Se a resposta das urnas for (ou fosse, caso não se realize) negativa, a questão ficava automaticamente encerrada, sem outros sobressaltos.

Uma resposta positiva levará (ou levaria) os catalães a um entendimento com o Governo de Madrid, para fixar o timing da proclamação da independência e proceder a um acordo quanto à transferência da plena soberania.

Esta vontade dos catalães não é um capricho de última hora mas existe desde há muito tempo. Estou convencido que  de que a Catalunha obterá o estatuto de nação independente, agora ou mais tarde. Conviria que o processo decorresse com tranquilidade.

Depois da Segunda Guerra Mundial, em que teriam ficado estabelecidas fronteiras "definitivas" para a Europa, assistimos à partilha, sem qualquer tumulto, da Checoslováquia, à desintegração da Jugoslávia, apoiada pela Alemanha e pelo Vaticano, o primeiro estado a reconhecer a independência da Croácia (no pontificado de João Paulo II, obviamente). Os Estados Unidos forçaram a criação de um novo Estado (fantasma): o Kosovo. O Mundo Ocidental empenhou-se na destituição e fuga do presidente legitimamente eleito da Ucrânia, o que teve como consequência a invasão e anexação da Crimeia pela Rússia e a criação da República (de mal definidas fronteiras) de Donetsk. Mesmo no Reino Unido, não se encara como um drama o próximo referendo visando a independência da Escócia. Nada é imutável, como Rajoy e o PP deveriam saber, mas a inteligência e a memória não abundam por aquelas bandas.

Ensina a História que não há fronteiras nem países eternos, nem mesmo civilizações, como todos sabemos e Arnold Toynbee tão bem explica no seu célebre livro A Study of History. Para não irmos mais longe, e num contexto diferente, Portugal perdeu numa dúzia de anos as suas "províncias" de África.

Eu sei que Madrid sabe que a seguir à Catalunha, outras regiões podem, há muito que o pretendem, desejar ascender à independência, a começar pelos bascos. E porque não Navarra, a Galiza, a Andalusia? É a vida!

O que tem de ser tem muita força. E não há atitudes de Madrid capazes de se oporem à vontade dos catalães, nem mesmo manu militari, o que, aliás, seria uma tragédia.

Que a independência da Catalunha, e algumas outras mesmo fora de Espanha (Bélgica, Itália, França, etc.) possam pôr em causa a existência da União Europeia nos moldes actuais, isso é verdade. Mas o estado decrépito em que a mesma já se encontra não poderá ser substancialmente agravado com a existência de mais alguns países. O que haverá a fazer é repensar todo o processo europeu, a partir do início.

Esperemos que, no limite, o bom-senso acabe por triunfar.


domingo, 24 de setembro de 2017

AS ELEIÇÕES NA ALEMANHA E O FANTASMA DE ADOLF HITLER




O resultado das eleições legislativas na Alemanha, efectuadas hoje, não é propriamente surpreendente. Desce a CDU/CSU, mas com votos suficientes para Angela Merkel voltar a formar Governo. Desce o SPD, com um péssimo resultado relativamente às expectativas, o que já levou Martin Schulz a declarar que não renovará a coligação com a CDU; aliás, as sucessivas derrotas dos partidos socialistas e sociais-democratas na Europa muito se deverá às alianças à direita. O FDP (Freie Demokratische Partei), de Christian Lindner, de orientação liberal, regressa ao Parlamento de onde fora excluído nas eleições anteriores, quase ex-aequo com o Die Linke (Partido da Esquerda) que recolhe as tendências mais à esquerda do espectro político germânico, e cujos eleitores são, em grande parte, nostálgicos da antiga RDA (República Democrática Alemã). Ligeiramente abaixo, aparece o Partido Os Verdes (Die Grünen), ecologista e pacifista. O único resultado que ultrapassou as previsões foi o obtido pelo AfD (Alternative für Deutschland), considerado de extrema-direita, xenófobo e nazi, e que pela primeira vez entra no Bundestag. A votação conseguida nestas eleições coloca-o como a terceira força política da Alemanha.

Ignoro neste momento a taxa de abstenção destas eleições em que têm direito a voto mais de 60 milhões de cidadãos, mas com os seus 13% de votos expressos o resultado do AfD representa a vontade de alguns milhões de cidadãos. Tem-se verificado um pouco por toda a Europa um alarme pela percentagem de votos deste partido. Mas a Democracia consiste exactamente na possibilidade de cada um exprimir livremente as suas convicções. Não é crível que todos os eleitores do AfD sejam saudosistas do regime nazi ou que se reconheçam por igual em todas as bandeiras do partido,  mas é inegável que ainda hoje o fantasma de Adolf Hitler continua a pairar sobre a Alemanha, mais do que exprimem os resultados eleitorais e daquilo que confessam os cidadãos germânicos. Tive ocasião de confirmá-lo, há meia dúzia de anos, durante uma permanência em Munique, cidade a partir da qual o Führer organizou o seu movimento. 



Neste xadrez político, na Alemanha como em muitos outros países, começa a ser confuso distinguir Direita e Esquerda, já que os programas dos partidos e as suas práticas não são de alguma forma coincidentes. E as causas que defendem cruzam-se, os valores confundem-se, as solidariedades são cada vez mais insólitas. Em certos aspectos, poderá haver maior afinidade entre o AfD e o Die Linke, supostamente situados nos extremos do espectro partidário, do que entre cada um deles e um dos partidos mais ao centro.

Evitemos tirar conclusões apressadas e aguardemos pela formação do novo Governo alemão (tarefa que poderá levar muitas semanas) e pela atitude que os recém-eleitos deputados adoptarão no Reichstag.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

A IGREJA PAROQUIAL DA BAIXA DA CIDADE, EM BUDAPESTE




A Igreja Paroquial do Centro da Cidade, em Budapeste, junto à Ponte Erzsébet é certamente o mais antigo edifício de Peste. A sua história tem cerca de dois mil anos. Na cripta pode ver-se o que resta de um posto de comando do exército romano. O templo foi edificado em estilo românico, no século XI, pelo rei Santo Estêvão, no local da sepultura do bispo S. Gellért, e de que se conservam alguns vestígios. No século XIV foi construída a actual igreja gótica, que os turcos utilizaram como mesquita durante a ocupação otomana. Em 1723 a igreja foi destruída por um grande incêndio, tendo sido posteriormente restaurada em estilo barroco.

A igreja possui um fresco do século XIV representando a Virgem e o Menino, e os restos de um Mihrab, local de oração do culto muçulmano, virado para Meca, e que foi conservado até hoje. O compositor Franz Liszt dirigiu alguns concertos nesta igreja.

Publicam-se a seguir, os folhetos relativos ao templo e algumas fotografias.










































Esta igreja, sobranceira ao Danúbio, é um dos templos que importa visitar, depois da Catedral de Santo Estêvão e da Igreja de Mattyas.

domingo, 17 de setembro de 2017

OS RAPAZES ÁRABES, O ISLÃO E O SEXO





O Islão, tal como o Cristianismo, manteve sempre uma relação complicada com o sexo. Com as relações sexuais em geral e com a homossexualidade em particular. Um problema que, no segundo caso, decorre afinal do Judaísmo, pois não fora o anátema do Génesis, livro da Torah, integrado no Antigo Testamento da Bíblia (um episódio que foi reproduzido séculos mais tarde no Corão), e a Humanidade, ou parte dela, teria sido mais feliz nos últimos milénios.

Têm corrido rios de tinta sobre o verdadeiro significado da condenação bíblica e corânica, já que existem interpretações divergentes, variando segundo as duas religiões (o judaísmo aqui é uma excrescência), as épocas, as regiões, as culturas. Mas, para lá das condenações religiosas, a homossexualidade tornou-se principalmente um estigma social na civilização (cristã) ocidental e na civilização islâmica, e penetrou mesmo noutras civilizações até então alheias ao facto. O que, de resto, nunca impediu, mau grado a inexorável repressão dos Poderes, a que a prática de relações homossexuais tenha sido uma constante desde que o mundo é mundo.

Tudo começou com o capítulo 19 do Génesis (Parashat Vaierá -Secção Vaierá) da Torah. Sigo a tradução de Luís Filipe Sarmento (Edições Sporpress), com os habitantes de Sodoma pretendendo ter relações com dois belos rapazes (afinal eram dois anjos!) que pernoitavam na casa de Loth. O episódio é suficientemente conhecido. Vai daí, o Senhor, como castigo, destruiu Sodoma pelo fogo. E Gomorra também.

Como a Bíblia integrou as escrituras judaicas (Antigo Testamento), esta maldição passou para o cristianismo. Nela pode ler-se, no primeiro livro do Antigo Testamento, o Génesis, igualmente no capítulo 19, versículos 1-29, uma descrição mais ou menos idêntica. Sigo a edição Paulus, enquanto aguardo pela versão de Frederico Lourenço. Escrevo mais ou menos idêntica, porque nada é idêntico nestas coisas de religião.

Por força das circunstâncias históricas em que surgiu (para os muçulmanos este surgir seria objecto de inevitável polémica a que agora me furto), o Corão encerra grande parte da tradição bíblica do Antigo e do Novo Testamento. Assim, os acontecimentos de Sodoma e a figura de Loth aparecem em várias partes deste livro sagrado, nomeadamente em diversos versículos da Sura (capítulo) 26 (As-Su'arâ - Os Poetas) e da Sura 27 (An-Naml - As Formigas).

As três religiões monoteístas consumavam assim a condenação formal daquilo a que, no século XIX se viria a chamar, lato sensu, homossexualidade. A palavra foi utilizada pela primeira vez em 1869 pelo escritor austro-húngaro Karl Maria Kertbeny. Nela cabe uma variedade imensa de possibilidades interpretativas, desde o amor do belo, a contemplação deslumbrada, a declaração de uma paixão até a práticas mais íntimas, estas também de notável latitude, desde o toque ou o beijo, até ao contacto físico, encerrando este ainda inúmeras possibilidades, desde uma simples festa a uma relação oral ou anal, distinguindo-se nesta última (e para o islão isto é relevante) a posição de activo ou passivo.




Não é propósito deste post entrar em pormenores. A matéria é de uma vastidão enciclopédica e ocuparia milhares e milhares de páginas. A intenção é chamar a atenção para o extraordinário livro de Khaled El-Rouayheb, L'amour des garçons en pays arabo-islamique - XVIe - XVIIIe siècle (2009), tradução francesa de Before Homosexuality in the Arab-Islamic World, 1500-1800 (2005). O autor é doutorado pela Universidade de Cambridge e professor da Universidade de Harvard e o estudo é dos mais completos que conheço sobre o relacionamento homófilo no mundo árabe no período em questão. A sua elaboração obrigou à consulta de milhares de documentos, devidamente assinalados nas citações e nas notas finais.

Propõe-se o autor demonstrar a tolerância que sempre existiu no mundo muçulmano relativamente às relações homossexuais no período estudado. Escusado será dizer que posteriormente a esse período essa tolerância aumentou, nomeadamente com os contactos mais estreitos com os europeus, não obstante alguns momentos de alguma severidade, conforme as circunstâncias, devido à influência de tendências moralizantes. O desenvolvimento do turismo, a partir da segunda metade do século passado, acentuou essa tendência.

A consulta dos poemas e outros escritos elogiando a beleza de jovens imberbes ou apenas com alguma penugem é uma constante da literatura coeva. É verdade que se pretendia que essa atitude não passava do papel, mas é evidente, e abundam as provas, que ela passava do texto ao acto. De alguma forma se ressuscitavam as tradições da Grécia Clássica e da Pérsia. O que era censurado era a relação entre dois homens adultos.

Esta inversão de conceitos, observando as posições sustentadas desde a segunda metade do século XX pela sociedade "ocidental", provocaria o riso se não fosse trágica. O que hoje se defende são as relações sexuais entre adultos do mesmo sexo, maxime o casamento, sendo absolutamente condenáveis as práticas com "crianças", considerando-se como crianças os jovens até aos 18 anos.

Eu sei que a ignorância é hoje apanágio dos poderes instituídos e que o processo de desinformação cultural em curso vai produzindo os seus efeitos. O próprio mundo árabo-muçulmano, objecto do estudo em questão, não é hoje indemne à propaganda habilmente conduzida por organizações internacionais de finalidades pouco claras, pretensamente sustentada por opiniões científicas consideradas indiscutíveis, como se nada fosse efémero.

Seria estultícia pretender condensar em meia dúzia de linhas o livro de Khaled El-Rouayheb. Apenas meia dúzia de notas. A obra está dividida em três capítulos: pederastia e pathos; estetas; sodomitas.

A utilização dos termos árabes é tarefa difícil, na medida em que os conceitos são diferentes dos ocidentais e está a tratar-se de uma época com mais de dois séculos. Mas o essencial permanece. Assim, no árabe clássico, liwât designa sodomia, o que não é de todo equivalente a homossexualidade. Recentemente, um autor traduziu o termo médico árabe ubnah por homossexualidade, o que também é errado, já que a palavra apenas se aplica ao homem que pretende ser penetrado analmente. Por isso, o que os ulemas condenavam neste período não era a homossexualidade mas o liwât, isto é, as relações anais entre homens. Este era o grande pecado, os desejos e as relações mais "ligeiras" ou com rapazes eram pecados veniais. Uma modificação profunda nos conceitos muçulmanos deveu-se ao contacto com a moral vitoriana que levou à elaboração do conceito de "inversão sexual" ou "perversão sexual" (shudhûdh jinsî) (p. 23)

Transcrevo: «La culture que j'étudierai est celle que partagaient les hommes musulmans citadins et cultivés de la partie arabophone de l'Empire ottoman, entre 1500 et 1800. Les témoignages textuels que j'ai réunis ont presque toujours été produits dans des agglomérations urbaines telles que Le Caire, Damas, Alep, Mossoul, Bagdad, La Mecque et Médine.» (pp. 24-25)

Tendo grande importância neste universo a distinção entre activo e passivo, o termo lûtî era reservado aos primeiros, e mukhannath, ma'bun ou (mais familiarmente) 'ilq, aos segundos.

Uma tradição antiga relatada pelo ulema xiita Muhammad al-Hurr al-'Amilî (m. 1693) confirma igualmente que liwât era antes de mais utilizado para falar da sodomia dos rapazes: um herético (zindîq) perguntou a Alî ibn Abî Tâlib (o genro do Profeta Muhammad) a razão que justificava a interdição religiosa do liwât. Alî terá respondido: "Se a penetração carnal de um rapaz (ityân al-ghulâm) fosse autorizada, os homens dispensariam as mulheres e isso conduziria a perturbações na procriação." (pp 47-48)

«Dans le monde arabe "homo-social" des début de l'époque ottomane, le symbolisme sexuel était donc toujours prêt à se manifester alors que par ailleurs les rapports sexuels entre hommes adultes étaient manifestement perçus comme une anomalie, aussi bien liée à la violence (viol) qu'à la maladie (ubnah). Les relations homosexuelles de cette période ont donc presque toujours été pensées comme des rapports impliquant un homme adulte (qui était classiquement le partenaire "masculin") et un garçon adolescent (la "femme"). Ce dernier - désigné dans les textes par amrad (garçon imberbe), ghulâm ou sabî (garçon), ou bien fatâ, shâbb, hadath (jeune homme) - bien que biologiquement masculin, n'était pas tout à fait un "homme" du point de vue social et culturel, son statut intermédiaire étant symbolisé par le manque du plus manifeste des attributs masculins: la barbe. L'importance culturel de la barbe et/ou des moustaches sur les terres arabes d'Orient en ces débuts de l'Empire ottoman est attestée aussi bien par la littérature européenne de voyage que par la littérature autochtone. Elles étaient le symbole de l'honneur masculin par lesquels on jurait et on s'insultait. Ainsi il était attendu des esclaves qu'ils ne portent pas la barbe et l'expression "il a laissé pousser sa barbe (arkhâ lihyatahu), au moins dans les débuts de l'Égypte ottomane, était un procédé classique pour indiquer l'emancipation d'un esclave à l'endroit de son maître.» (pp. 48-49)

Recorde-se que na Grécia e Roma antigas os escravos não usavam barba, pelo menos na altura da sua aquisição, quando eram jovens. Só a poderiam usar, excepcionalmente, quando, já idosos, faziam como que parte da família. Ao contrário da ideia corrente de que a escravatura era sempre um tormento, muitos escravos da Antiguidade tornavam-se com os anos familiares dos seus patrões  (donos) e alguns recebiam mesmo a carta de alforria. Serve esta nota para relembrar que os escravos (domésticos) serviam para muita coisa e uma das mais importantes, embora raras vezes mencionada, era irem para a cama com os donos. Daí a obrigação de se apresentarem barbeados. Também, por isso, no mercado dos escravos, uma das condições para subir o preço de um escravo era a sua juventude e beleza. Sabe-se bem porquê.

Muitos pais não se importavam que os seus filhos fossem cortejados. «Le juge damascène Ahmad al-Shuwaykî (m. 1598) avait ainsi, selon un collègue, pour habitude de payer des subventions régulières aux jeunes qu'il courtisait, de même qu'il conférait certains "avantages matériels" à leurs parents.» (p. 52)

«Les différents exemples de séduction pédéraste passés en revue pourraient laisser penser que les garçons étaient utilisés comme ersatz de femmes et conforteraient donc à première vue l'idée maintes fois véhiculée que l' "homosexualité" (supposément) répandue dans le monde arabe était le fait de la ségrégation des femmes. Les hommes ne se sont pourtant pas simplements tournés vers des garçons en raison de l'indisponibilité des femmes bien qu'il y ait certains passages de la littérature biographique qui mettent en lien l'attirance pour les garçons et le célibat.» (p. 52)

«Si la limite d'âge supérieure était la maturité physique aux environ de vingt ans, la limite d'âge inférieure censée suciter l'intérêt des pédérastes semble avoir été le passage de l'enfance à la jeunesse, soit l'âge de sept ou huit ans. Les nombreux témoignages disponibles amènent donc à la conclusion que le désir sexuel des pédérastes était plutôt tourné vers des garçons dont l'âge se situait dans cette fourchette, et que l'activité du garçon culminait habituellement à mi-chemin, vers quatorze ou quinze ans.» (p. 55)

As confrarias místicas (sufis) manifestavam uma certa predilecção por rapazes. Eram seleccionados como noviços os possuidores de uma estética particularmente agradável, a que chamavam bidâyãt. Os membros da confraria eram autorizados a isolar-se com os rapazes e a manter contactos corporais. Segundo uma tradição que remonta a Platão e da qual foi demonstrado (sobretudo por Helmut Ritter) que ela tinha sobrevivido no sufismo, uma bela aparência humana, habitualmente sob os traços de um jovem e belo imberbe, podia servir de caminho à manifestação da absoluta Beleza divina. (p. 64)

O médico inglês A. Russell, que passou algum tempo em Alepo em meados do século XVIII e que foi um observador consciencioso, escreveu na sua Natural History of Aleppo: "Pour ce qui concerne le commerce des esclaves, la beauté d'un homme accroît sa valeur tout autant que pour une femme, ceci en raison de la fréquence chez eux d'un crime que nous ne mentionnerons pas." (p. 68)

«Le Portugais Pedro Teixeira et le Britannique George Sandys, parlant respectivement de Bagdad et de Constantinople, notaient en effet que les cafés employaient volontiers de beaux garçons pour servir la clientèle et il est aisé de saisir la logique d'une tel pratique.» (Coffee and Coffehouses, Ralph S. Hattox) (p. 71)

Embora não seja esse o tema específico do livro, é preciso não esquecer que no universo em análise sempre houve relações entre homens, em que ambos os parceiros eram já adultos, ainda que neste caso importasse respeitar a conveniente discrição.

«Le sociologue britannique Mary McIntosh, dans un article important publié en 1968, insista sur la distinction qu'il convenait d'établir entre le comportement homosexuel et l'image qu'une société se faisait de ceux qui choisissaient de l'adopter. Alors que pratiquement toutes les sociétés admettaient que des individus se livraient à de telles pratiques, il y avait toutefois, selon elle, quelque chose de singulièrement moderne dans l'idée que cela ne pouvait concerner que des individus d'un style particulier ou d'une certaine constitution. Effectivement, pour l'Occident, l'homosexualité est habituellement le reflet des dispositions innées et anormales d'une minorité, celles-ci se révélant par l'envie régulière d'avoir des rapports homosexuels ainsi que par un certain nombre d'autres indices. Ainsi, l' "homosexuel" est classiquement un être efféminé aux moeurs dissolues, sexuellement indifférent aux membres du sexe opposé. McIntosh a montré que ce "modèle" ou stéréotype homosexuel n'était apparue en Angleterre qu'à la fin du XVII siècle. Antérieurement à cette époque ainsi que dans la plupart des sociétés contemporaines non occidentales, "il pouvait y avoir une multiplicité de comportements homosexuels mais il n'y avait pas d' "homosexuels"» (p. 74)

«Il a été jusqu'à présent tenu pour établi que l'adoption de comportements réducteurs ou idéalistes était indépendante du fait que l'objet de l'amour soit une femme ou un garçon. Cela semble avoir été la règle dans tout le Moyen-Orient arabo-islamique prémoderne. Ce n'était pas bien le cas en Europe  ou l'idéalisation de l'amour ne pouvait normalment concerner que des relations "hétérosexuelles". Un intéressant débat sur la question s'ouvrit dans les années 1820 entre le voyageur anglais James Silk Buckingham et "Ismael", un ami irakien qui l'accompagnait en tant que guide. Buckingham, habitué à sa propre culture et qui avait une conception idéaliste de l'amour entre hommes et femmes célibataires, répondit tout d'abord avec compréhension quand son compagnon lui dit qu'il aimait une personne de confession chrétienne à Bagdad. Lorsqu'il s'aperçut que c'était d'un garçon qu'il s'agissait, "il se retira de cette conversation comme quelqu'un qui aurait reculé devant un serpent sur lequel il aurait accidentellement marché". Cependant, après plus ample discussion avec son ami irakien, Buckingham en vint à la conclusion que si les sentiments amoureux avaient été bien dirigés vers un garçon, cela n'impliquait pas pour autant qu'ils n'aient pas été "purs" et "honorables"..........Buckingham put être porté vers cette conclusion grâce à sa formation classique qui lui avait enseigné que l'amour chaste pour les garçons était encouragé en Grèce ancienne.» (pp. 143-144)

As quatro escolas de direito (madhhab) reconhecidas no Império Otomano sustentaram opiniões diferentes quanto às penas a infligir aos praticantes de um pecado maior como o liwât. Havia entre as gentes sempre uma dúvida sobre o facto de poderem observar ou tocar uma mulher ou um rapaz, uma vez que estes actos poderiam ser considerados preliminares (muqaddimât) à fornicação (zinâ), cuja gravidade não era inferior à descrença (kufr).

A escola Hanafita, a escola oficial do Império, predominava na Turquia, mas tinha adeptos entre muitos muçulmanos sunitas doutras regiões, ainda que estes tivessem sido na maioria shafi'itas. Esta escola não considerava o liwât como um tipo de fornicação, considerando como zinâ apenas as relações vaginais entre duas pessoas legalmente interditas uma em relação à outra. Não cabem aqui os argumentos mas a punição seria menos severa que um hadd, a mais grave, revelada pelo Corão.

A escola Shafi'ita era maioritária na Síria, no Baixo Egipto, no Hijjaz e entre os sunitas do Iraque. Mais rigorosa que a Hanafita, especificava quanto às penas para fornicação o facto de se tratar ou de homem/mulher, ou de dois homens, e neste caso com diferença para o activo e o passivo. No caso de relações vaginais ilícitas, se o transgressor fosse muhsan, isto é, se ele ou ela estivesse no estado de ihsan, por ter já consumado um casamento válido, era passível de morte por lapidação. No caso de dois homens, segundo um hadith atribuído ao Profeta, deveriam ser ambos executados. Mas um dito do terceiro califa, Uthman, seguindo conselho de Ali, genro de Muhammad, considerava que um lutî que não fosse muhsan era passível de cem chicotadas. Entre as várias opiniões as soluções eram obviamente divergentes e tradicionalmente mais brandas, até porque a lei exigia a rigorosa comprovação do acto.

A escola Hanbalita era de menor importância que as anteriores. Os seus adeptos existiam especialmente na Síria, e também no Nadj (Arábia central), que estava fora do território otomano. Foi nesta região que começou no século XVIII o movimento revivalista wahhabita. A sua doutrina era próxima da escola Shafiíta.

A escola Malikita era predominante na África do Norte e no Alto Egipto. Era a única a fazer uma distinção clara entre as relações anais entre um homem e uma mulher (que não fosse a sua mulher ou concubina) e dois homens. No segundo caso eram passíveis de lapidação. Ao contrário das afirmações do artigo «liwât» da Encyclopédie de l'Islam, era mais severa que a escola Hanbalita, sendo assim a mais severa das escolas sunitas, pelo menos no começo da época otomana.

Uma referência ainda à escola xiita imamita duodecimana, com adeptos no Iraque, no Líbano, no leste da Arábia, que era (e ainda hoje se mantém) mais severa que as escolas sunitas. Prescreve a pena de morte para o liwat, independentemente do sexo e da situação matrimonial dos intervenientes.

A discussão de todas as interpretações acerca da matéria, suas origens e sua prática através dos séculos, descritas no livro, não cabe neste texto.

«Liwât a un sens plus restreint que l'homosexualité d'un autre point de vue. Dans les quatre écoles juridiques, il est fait précisement référence aux relations sexuelles anales plutôt qu'aux actes "homosexuels" en général. Les baisers, caresses et coît intercruraux entre hommes étaient considérés comme des actes répréhensibles qui méritaient châtiment, mais n'étaient pas pour autant des cas de liwat. Les manuels classiques de jurisdiction islamique étaient tout à fait explicites sur ce point. Un ouvrage chaféite faisant autorité définissait la fornication (zinâ) comme "l'insertion illicite d'un pénis dans un vagin" (îlâj al-dhakar bi-farj muharram) et ajoutait que l'introduction du pénis dans "l'anus d'un homme ou d'une femme a la même signification que [son introduction dans] le vagin du point de vue de l'école" (wa dubur dhakar wa unthâ kaqubul 'alâ al-madhhab). Il poursuivait, expliquant que la punition du hadd ne s'appliquait pas dans le cas de rapports intercruraux (mufâkhadhah) ou d'autres pratiques que n'impliquaient pas de pénétration (mimmâ lâ îlâj fîhi) comme les relations sexuelles entre femmes. Un manuel classique chaféite définissait également la fornication comme "la pratique d'une abomination par le vagin ou l'anus" (fi'l al-fâhishah fî qubul aw dubur), et poursuivait en précisant que la condition prérequise pour l'application d'un hadd comme châtiment était que le gland soit introduit (taghyîb al-hashafah) dans n'importe lequel des orifices. Un ouvrage malikite définissait de son côté la fornication comme "l'introduction" par un musulman légalement mature du pénis dans un vagin humain qui ne lui est pas autorisé", excluant donc de façon tout à fait claire les cas de pratique sexuelle sans pénétration comme par exemple un rapport entre les cuisses (lâ ghayr farj ka-bayn fakhdhayn). Le manuel précisait que "pénétration" (îlâj) voulait dire introduction du gland (taghyîb hashafah) dans un orifice, et la sodomie (liwât) était ensuite spécifiée comme l'introduction du gland dans l'anus d'un homme (idkhâlihâ fi dubur dhakar). Le châtiment du hadd ne pouvait donc pas s'appliquer aux relations sexuelles entre femmes "du fait de l'absence de pénétration" (li-'adam al-îlaj).» (pp. 208-209)

«Tomber amoureux d'un garçon était le plus souvent considéré comme un acte involontaire et, tant que tel, extérieur au champ de la censure religieuse. Beaucoup d'oulémas, si ce n'est peut-être la plupart, étaient disposés à admettre qu'une personne qui décéderait d'amour pour un garçon pouvait recevoir le statut de martyr (shahîd), ce qui lui garantissait une place au paradis.» (p. 211)

Para concluir este texto, que já vai longo, pode realmente afirmar-se que o conceito de "homossexualidade masculina" não existia no Médio-Oriente árabo-islâmico no começo do período otomano, não se podendo por isso aplicar aos homens que sentiam uma atracção especial mais pelos indivíduos do seu próprio sexo do que pelas mulheres. Mas algumas das especificidades excluídas deste conceito eram importantes aos olhos dos seus contemporâneos, como a diferença entre parceiros activos e passivos, entre o amor casto e o desejo carnal, entre os actos sexuais autorizados e os que o não eram. Isto dependia especialmente do meio cultural considerado.

Por influência europeia, sobretudo da chamada moral vitoriana, entre meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX a tolerância geral relativa ao amor manifestado aos rapazes foi corroída, o que não obstou a que a prática continuasse a verificar-se. Curiosamente, é este mesmo Ocidente que hoje adopta comportamentos liberais em relação à homossexualidade, ainda que tenha inventado a palavra "pedofilia" para excluir do contexto os chamados "menores", que o não foram, não só no mundo árabe como na Europa e noutras culturas, nos pretéritos séculos.


domingo, 10 de setembro de 2017

A IGREJA DE MÁTYÁS EM BUDAPESTE




A Igreja de Mátyás, em Budapeste (mais propriamente em Buda), dedicada à Virgem Maria, foi construída entre os séculos XIII e XV (fundada em 1255 pelo rei Béla IV), mas o seu nome refere-se ao rei Mátyás Corvinus que aqui foi coroado em 1458, um dos mais notáveis soberanos da Hungria, que reinou até 1490. Embelezou o templo, que já fora reconstruído em 1387 por Segismundo do Luxemburgo.



Muitos pormenores originais perderam-se quando os turcos, em 1541, transformaram a igreja na sua Grande Mesquita. Depois da expulsão dos turcos, em 1686, e com o templo quase completamente destruído devido à luta então travada, a igreja foi novamente reconstruída em estilo barroco. Em 1896, Frigyes Schulek terminou os trabalhos, emprestando-lhe um aspecto neo-gótico. Outra vez danificada durante a Segunda Guerra Mundial, foi recuperada em 1970.



Devem assinalar-se o Altar-Mor, com a estátua da Virgem, o Oratório Real, onde figura uma cópia da coroa da Hungria e das outras insígnias reais, que estavam no Museu Nacional e se encontram hoje no Parlamento, o túmulo do rei Béla III, a Capela de São Ladislau, o Púlpito, os vitrais, o Portal da Virgem e a estátua da Madona Barroca.








Altar Mor


Capela de Santo Emeric


 Na Capela do príncipe Santo Emeric figuram à sua direita seu pai Santo Estêvão e á sua esquerda o seu guardião São Gellért.


Túmulo do rei Béla III


Neste túmulo estão os restos mortais do rei Béla III e de sua mulher Ann Châtillon, encontrados em Székesfehérvár.


Capela do rei São Ladislau

 Nesta capela pode ver-se um relicário com uma cópia da cabeça do rei.


Oratório Real

Destinado às orações privadas dos monarcas, estão agora expostas no Oratório Real, em cópia, as insígnias reais da Hungria, cujo original está presentemente no Parlamento. O último rei a ser coroado nesta igreja foi Carlos IV (Carlos I como imperador da Áustria, em 1916).






Púlpito

Em volta do púlpito figuram, com os respectivos atributos, São João, Santo Agostinho, São Lucas, Santo Ambrósio, São Marcos, São Gregório Magno, São Mateus e São Jerónimo.






Portal de Santa Maria

Este Portal é o relevo mais importante da igreja. Data de cerca de 1370 e representa a Assunção da Virgem Santíssima. Destruído aquando do colapso da torre em 1384, foram os restos preservados e podem ser hoje vistos em caixas de vidro. O relevo que figura sobre a porta é uma reprodução completa do que terá sido o original.

Estatua da Madona

A esta estátua está adicionada uma lenda. A Madona foi colocada na igreja durante a ocupação turca. Quando a igreja foi destruída em 1686 a Senhora apareceu milagrosamente o que significou para os turcos um preságio de derrota.