sábado, 29 de dezembro de 2012
PAULO ROCHA
Num país que, por diversas razões, se encontra já de luto, há que acrescenta-lhe mais um motivo de pesar: a morte, esta manhã, do cineasta Paulo Rocha (n. 1935).
Deve-se-lhe a realização de alguns dos mais notáveis filmes do novo cinema português, entre os quais Verdes Anos (1963), obra de referência da cinematografia nacional.
Para melhor informação sobre o homem e a obra, consulte-se o PÚBLICO, na versão online.
sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
O PRÓXIMO ANO
José Pacheco Pereira, há dias, no PÚBLICO e no blogue "Abrupto":
DEZ TENDÊNCIAS PARA 2013
1. De mal a pior - Esta é a mais sólida tendência para
2013. Tudo o que está suficiente será medíocre. Tudo o que está mau
ficará pior. Pobreza, desemprego, economia, dívidas, falências,
direitos, liberdades, garantias, corrupção, ataques à democracia.
2. O "exercício" vai ter maus resultados - O primeiro-ministro chama "exercício" à governação, incapaz de escapar a uma mescla de economês com a linguagem escolar que o caracteriza. O "exercício" é o Orçamento, no "país de programa" que é Portugal. A devastação intelectual do vocabulário corrente no poder é apenas mais um sinal do nosso empobrecimento, da impregnação do espaço público por um vocabulário de má consultora. Mas como vai ser possível insistir no mesmo quando o "exercício" falhar? Vai. Vai, porque eles só sabem fazer isto e não sabem o que fazem. O país corre o risco de ser entregue aos que se seguem em muito pior estado do que foi recebido em 2011. Em Paris vai haver um aprendiz de filósofo que se vai rir. Sem desculpa.
3. Haverá novos planos de austeridade - Tão certo como dois e dois serem quatro. O primeiro chama-se pomposamente "refundação do Estado" e recairá directamente em cima dos funcionários públicos e dos pensionistas e indirectamente sobre os portugueses que mais precisam dos serviços públicos, educação, saúde, Segurança Social. Será anunciado em Fevereiro como um plano aberto para discussão até Agosto, mas tudo já está decidido: cortar quatro mil e 500 milhões de euros permanentemente. Depois, em seguida, haverá novos planos de austeridade, sempre que os números do "exercício" falharem.
4. A Grécia aqui tão perto - A situação grega caracteriza-se, em linhas muito simples, pela conjugação de números de "contabilidade criativa" apresentados a Bruxelas desde a entrada no euro, pela instabilidade política e maiorias muito frágeis, pela incapacidade de os governos cumprirem o que acordam com a Comissão, o BCE e o FMI, por uma dívida gigantesca, pela inexistência de uma fiscalidade eficaz, por muita corrupção, pela turbulência na rua, manifestações em série e greves, pela existência de lóbis e corporações poderosas e pela quebra maciça do poder de compra da população e crescimento da pobreza exponencial nos últimos anos de "programa".
Em
que é que Portugal é diferente, ou vai a caminho de ser diferente?
Números criativos existiram nos últimos orçamentos Sócrates, embora numa
dimensão mais benigna. Instabilidade política é menor em Portugal, mas a
coligação é uma ficção muito frágil. A dívida é igualmente gigantesca
em Portugal e está a aumentar. O incumprimento do acordado com a troika
no défice, o aspecto central do "ajustamento", é total. A nossa
fiscalidade tornou-se mais eficaz na última década, mas pouco pode fazer
contra a fuga generalizada aos impostos, por fraude ou por absoluta
necessidade. A economia paralela está a crescer. As ruas portuguesas são
mais calmas do que as gregas, mas uma minoria violenta começa a
aparecer. Uma quebra maciça do poder de compra da população e o
crescimento da pobreza exponencial nos últimos anos de "programa" existe
em Portugal numa dimensão semelhante à grega, com tendência para ser
igual em 2013-4. A corrupção grega e portuguesa atingem extractos
diferentes da população, a nossa tende hoje a ser mais da "alta", mas no
seu conjunto está a agravar-se. Na verdade, muitos números são piores
na Grécia do que em Portugal, mas não parece haver nenhuma diferença
qualitativa entre as duas situações. A tendência é para Portugal ficar
cada vez mais "grego" à medida que o tempo passa.
5. Vai tudo parar aos tribunais - Em 2013, tudo vai parar aos tribunais com uma intensidade até agora nunca vista. Autarquias, sindicatos, políticos, grupos de cidadãos, indivíduos vão invadir os tribunais, dos tribunais comuns ao Tribunal Constitucional, com queixas e reivindicações sobre atropelos, direitos, garantias, abusos, que o Governo, o Estado, a maioria, tem vindo a fazer. Desde decidir se é legítimo a candidatos apresentarem-se a eleições após mais de três mandatos até à extinção de freguesias, ou à equidade orçamental, rendas, avaliações, IMI, IRS, impostos, direitos laborais, violações da lei, violação de contratos, etc., tudo vai parar aos tribunais. É um processo muito arriscado e delicado: por um lado, ameaça politizar os tribunais; por outro, representa a ultima instância que pode garantir direitos e garantias e combater injustiças e ilegalidades por parte do Estado e do Governo.
6. O PS continua no limbo - Enquanto o PS tiver à sua frente António José Seguro, e for aquilo que é, Seguro estará para Passos Coelho como Passos Coelho esteve para Sócrates. Do mesmo modo que Passos Coelho e Relvas, frutos do aparelho, descaracterizaram o PSD como partido social-democrata, e Portas faz equilíbrios no arame para o mesmo não acontecer no CDS como partido democrata-cristão, Seguro transformou o PS numa coisa amorfa e mole, sem sentido nem direcção. Isso significa que a sua governação será muito semelhante à de Passos Coelho em três aspectos fundamentais: trará o aparelhismo para o Estado, será subserviente face aos poderes fácticos, em particular a banca, e será muito incompetente. Como isso não entusiasma ninguém, poderá lá chegar apenas pelo mesmo fenómeno de rejeição do anterior Governo que levou lá Passos Coelho. Mas um remake é sempre pior do que o original, e o PS caminha para um desastre mais anunciado e rápido do que o PSD em 2011.
7. A coligação não é uma coligação é um ajuntamento de conveniência - A coreografia da diferença e demarcação que deputados e governantes do CDS fazem todos os dias, a começar por Portas, é penosa de se ver. Quando discursam é para elogiar ministros do CDS, quando se calam é para abafar com o seu silêncio a discordância activa que mantêm com Passos Coelho e Gaspar. Não vai acabar bem, mas também já não está bem de todo.
8. O que sobra das nossas Forças Armadas não vai servir para nada - A "refundação do Estado" vai atingir ainda mais as Forças Armadas, o que é facilitado pela nula empatia dos governantes vindos das "jotas" pela instituição militar e pela crescente deslegitimação da própria existência de forças militares. Como a cada corte elas se tornam mais frágeis, aparecem cada vez como mais inúteis, e perdem razões de existência. Um dia, quando Portugal precisar de concorrer a um comando estratégico para os nossos interesses nacionais, ou defender a nossa ZEE, vai ver o que lhe falta, mas será tarde.
9. Os negócios entre a elite no poder vão continuar frutuosos - O nosso establishment do poder, partidos - sector financeiro -, administração superior e Governo, vai continuar a fazer o que sempre fez. A forma como o faz muda, havendo agora uma centralidade do sector financeiro correlativa da maior fragilidade dos outros sectores económicos. A banca é hoje parte inteira da governação, definindo activamente os limites das decisões governamentais e detendo um efectivo poder de veto. As privatizações e o "ajustamento" são enormes oportunidades que estão a ser aproveitadas. Elas permitem também alguma circulação das elites, entre a área governamental, essa importante plataforma de intermediação que são as sociedades de advogados e as consultoras, e os lugares de confiança nas grandes empresas. Aqui dominam as personalidades com fortes ligações à política que vivem na órbita dos partidos, mas acham que lhes são superiores. Os aparelhos partidários estão por regra na parte intermédia e baixa da cadeia alimentar, mas estão bem aí ancorados. Nos partidos, o acesso ao poder continua a permitir a constituição de empresas cujo objectivo é usufruir das ligações privilegiadas para obter fundos e benesses. Antes era a área da formação a mais importante, hoje isso faz-se à volta de empresas de comunicação, marketing, assessoria e consultadoria, mas o esquema é o mesmo.
10. O "bom povo português" vai ficar mau - A razão é muito simples: não aguenta. Nem vale a pena perder tempo e palavras com isto. Está escrito nas estrelas.
MARGARET THATCHER, UMA MULHER SINISTRA
Margaret Thatcher foi uma das mulheres políticas mais sinistras do século passado. Já o sabíamos há largos anos, mas a notícia de hoje no PÚBLICO confirma a opinião que os britânicos e estrangeiros honestos têm a seu respeito e conforta-nos na nossa convicção. Oiçamos (que é como quem diz, leiamos) o jornal:
Arquivos de Downing Street revelam que Thatcher quis acabar com serviço nacional de saúde
Documentos do Governo foram abertos após 30 anos e mostram que a
primeira-ministra britânica encomendou um plano para desmantelar o
Estado social no Reino Unido.
Documentos relativos ao primeiro Governo da conservadora Margaret Thatcher, divulgados nesta sexta-feira pelo Arquivo Nacional, revelam que a primeira-ministra britânica foi forçada a travar um ambicioso plano para o desmantelamento das instituições do Estado social no Reino Unido, nomeadamente o serviço nacional de saúde e a educação gratuita, para evitar “um motim” dentro do seu executivo.
O plano, que saiu do gabinete do chanceler Geoffrey Howe, previa introduzir pagamentos obrigatórios para a frequência do ensino obrigatório e acabar com o financiamento público do ensino superior, e ainda o congelamento dos subsídios atribuídos pela Segurança Social ou o estabelecimento de um sistema de saúde privado, através da privatização dos hospitais.
As propostas, redigidas pelo Central Policy Review Staff em 1982 por instrução de Thatcher e Howe, tinham como objectivo reformar o Estado e diminuir a despesa pública. Os documentos que circularam por Downing Street notavam, claramente, que a ser executado, o plano significaria "o fim do sistema nacional de saúde”.
Um dos parágrafos explicava que “vale a pena considerar um período de tempo para eliminar o financiamento público da saúde para a grande maioria da população”, para que “as unidades médicas possam ser detidas e geridas pela iniciativa privada”. O resultado seria que “quem buscar cuidados médicos seja obrigado a pagar por eles” – com algumas excepções previstas, nomeadamente para as famílias na pobreza ou os indivíduos com doenças mentais.
Segundo mostram os documentos desclassificados pelo Arquivo Nacional (após um período de 30 anos de segredo), estas propostas foram discutidas numa reunião alargada do executivo a 9 de Setembro de 1982, na qual vários ministros se insurgiram contra o que descreveram como uma “agenda radical”. O “motim” levou Thatcher a engavetar o documento.
Anos mais tarde, Thatcher recordou o episódio nas suas memórias, escrevendo que ficou “horrorizada” quando leu o documento e que imediatamente tinha notado que se o relatório chegasse ao conhecimento público “causaria uma impressão totalmente errada”.
Os arquivos de Downing Street divulgados nesta sexta-feira revelam ainda que Thatcher foi apanhada de surpresa com a invasão das ilhas Falkland/Malvinas pela Argentina. Só dois dias antes das tropas argentinas entrarem na ilha, a 2 de Abril de 1982, é que a perspectiva de uma guerra pelo território se tornou clara para a líder britânica.
Num depoimento perante uma comissão parlamentar, meses depois do fim da guerra, Thatcher confessou que a possibilidade de uma invasão argentina sempre lhe tinha parecido uma ideia tão “estúpida, absurda e ridícula” que nunca acreditara que pudesse acontecer.
A primeira-ministra testemunhou que, quando foi confrontada com informação militar apontando a iminência da invasão, ninguém lhe soube dizer se o Reino Unido teria capacidade para defender a ilha ou recuperar o território. “Foi o pior momento da minha vida”, confessou.
Documentos relativos ao primeiro Governo da conservadora Margaret Thatcher, divulgados nesta sexta-feira pelo Arquivo Nacional, revelam que a primeira-ministra britânica foi forçada a travar um ambicioso plano para o desmantelamento das instituições do Estado social no Reino Unido, nomeadamente o serviço nacional de saúde e a educação gratuita, para evitar “um motim” dentro do seu executivo.
O plano, que saiu do gabinete do chanceler Geoffrey Howe, previa introduzir pagamentos obrigatórios para a frequência do ensino obrigatório e acabar com o financiamento público do ensino superior, e ainda o congelamento dos subsídios atribuídos pela Segurança Social ou o estabelecimento de um sistema de saúde privado, através da privatização dos hospitais.
As propostas, redigidas pelo Central Policy Review Staff em 1982 por instrução de Thatcher e Howe, tinham como objectivo reformar o Estado e diminuir a despesa pública. Os documentos que circularam por Downing Street notavam, claramente, que a ser executado, o plano significaria "o fim do sistema nacional de saúde”.
Um dos parágrafos explicava que “vale a pena considerar um período de tempo para eliminar o financiamento público da saúde para a grande maioria da população”, para que “as unidades médicas possam ser detidas e geridas pela iniciativa privada”. O resultado seria que “quem buscar cuidados médicos seja obrigado a pagar por eles” – com algumas excepções previstas, nomeadamente para as famílias na pobreza ou os indivíduos com doenças mentais.
Segundo mostram os documentos desclassificados pelo Arquivo Nacional (após um período de 30 anos de segredo), estas propostas foram discutidas numa reunião alargada do executivo a 9 de Setembro de 1982, na qual vários ministros se insurgiram contra o que descreveram como uma “agenda radical”. O “motim” levou Thatcher a engavetar o documento.
Anos mais tarde, Thatcher recordou o episódio nas suas memórias, escrevendo que ficou “horrorizada” quando leu o documento e que imediatamente tinha notado que se o relatório chegasse ao conhecimento público “causaria uma impressão totalmente errada”.
Os arquivos de Downing Street divulgados nesta sexta-feira revelam ainda que Thatcher foi apanhada de surpresa com a invasão das ilhas Falkland/Malvinas pela Argentina. Só dois dias antes das tropas argentinas entrarem na ilha, a 2 de Abril de 1982, é que a perspectiva de uma guerra pelo território se tornou clara para a líder britânica.
Num depoimento perante uma comissão parlamentar, meses depois do fim da guerra, Thatcher confessou que a possibilidade de uma invasão argentina sempre lhe tinha parecido uma ideia tão “estúpida, absurda e ridícula” que nunca acreditara que pudesse acontecer.
A primeira-ministra testemunhou que, quando foi confrontada com informação militar apontando a iminência da invasão, ninguém lhe soube dizer se o Reino Unido teria capacidade para defender a ilha ou recuperar o território. “Foi o pior momento da minha vida”, confessou.
A MANTA
Transcreve-se um artigo de Vítor Bento, no Económico:
Uma das histórias contadas na minha infância – creio que integrava um dos livros de leitura – falava de uma terra onde os filhos costumavam levar os pais velhos, que já não podiam trabalhar, para o cimo de um monte, onde ficavam sozinhos, à espera do fim.
Certa vez, quando um dos filhos dessa terra cumpria o ritual, colocando o velho pai no tal monte e deixando-lhe uma manta para se abrigar do frio enquanto sobrevivesse, o ancião perguntou-lhe se não teria por acaso uma faca consigo.
Ao que o filho respondeu: "Tenho, sim senhor. Para que a quer?". "Para que cortes esta manta ao meio e guardes metade para ti, para quando o teu filho te trouxer para este lugar!".
Como estas histórias eram destinadas a retirar uma consequência moralizadora, o rapaz percebeu o alcance do pedido, levou o pai de volta para casa e com isso se acabou o terrível costume.
Lembrei-me da história a propósito do artigo 76º do OE 2013 (versão da proposta) e, muito em particular, em particular do seu número 2. Este preceito exige dos reformados - e só deles! - o pagamento de uma "contribuição extraordinária de solidariedade", que, em termos marginais, pode ir até aos 50%, para além do corte de 90% de um subsidio e dos impostos a que as pensões já estão sujeitas - nomeadamente o IRS, progressivo. Isto provoca, em muitos casos, uma drástica redução de rendimento para quem, tendo planeado a fase final do seu ciclo de vida com base numa promessa do contrato social, nuns casos, ou de puros contratos, noutros casos, já não dispõe de condições nem de tempo para reajustar o seu plano de vida à violenta quebra dessa promessa e ao consequente desmoronamento da fase final desse seu plano.
Por isso - e a não ser que me esteja a escapar qualquer coisa que torne este meu raciocínio num grave erro - me parece que aquela norma viola tantos princípios da justiça distributiva - da justiça intergeracional, à equidade, à igualdade, à proporcionalidade, ... -, que não vejo como tal manta possa escapar à faca da vigilância constitucional. E, se não escapar, será um risco desnecessário para a execução orçamental.
E não é apenas a justiça distributiva que está em jogo. É que, ao estender-se às pensões oriundas de fundos de pensões e às rendas vitalícias - que não constituem uma redistribuição contemporânea de rendimento, como é o caso das pensões da Segurança Social ou da Caixa Geral de Aposentações, mas são a distribuição de património já acumulado e que, por direito, pertence aos beneficiários dessas pensões -, a norma pode ainda ser vista como um verdadeiro confisco de património privado.
É pena que tal zelo nunca tenha sido aplicado às rendas no sector não transaccionável. Não só por questões suscitáveis em sede de equidade na distribuição dos imperativos de solidariedade, mas porque aquelas constituem um factor de erosão da competitividade do sector transaccionável, de que depende a recuperação e a sustentabilidade do crescimento da economia.
Enfim, tal como uma andorinha não faz a primavera, uma medida injusta não contamina todo um programa, nem define, só por si, a justiça global desse programa. Embora possa contribuir, desnecessariamente, para a erosão do consenso social e político de que depende o seu sucesso. Preserve-se, pois, o essencial - em que é preciso perseverar, com paciência e estoicismo -, porque ele é indispensável.
Vítor Bento, Economista
MACACOS E HOMENS
Em 2001, o escritor francês Michel Braudeau (n. 1946), [autor de cerca de 30 obras, prémio Médicis 1985 ( por Naissance d'une passion), director desde 1999 da "Nouvelle Revue Française" (NRF), fundada em 1909 por André Gide (o primeiro director), Jean Schlumberger, etc. e da qual Gaston Gallimard se tornou editor em 1911, criando as Éditions Gallimard], publicou um volumoso romance (quase 700 páginas) intitulado L'interprétation des singes.
Adquiri então a obra, que comecei a ler com interesse, mas, como muitas vezes acontece, compromissos com prazos obrigaram-me a suspender a leitura, ainda nas primeiras páginas. O livro voltou para uma estante, aonde permaneceu até há semanas. Nem o facto de ter conhecido pessoalmente Michel Braudeau, há uns sete anos atrás, em Paris, na sede das edições Gallimard, apresentados por um amigo comum, determinou que lhe voltasse a pegar.
Por razões que não consigo determinar, talvez o acaso, ou porque necessitei de algum volume da mesma prateleira, encontrei-me com L'interprétation des singes na mão.Que me encheu a mão. A volumosa edição original, porque existe agora uma edição de bolso.
Segundo o autor confessa no início, a ideia de escrever este texto foi-lhe sugerida pelas pesquisas de um homem extraordinário (e célebre no seu tempo, embora hoje, com a aceleração a que estamos sujeitos, pouca gente se recordará dele), o doutor Serge Voronoff, famoso por ter sido um pioneiro dos enxertos, nomeadamente dos enxertos de órgãos de macacos em homens, em especial dos testículos, para atenuar a diminuição da virilidade que o avanço na idade fatalmente provoca, embora nem sempre. Mas estando hoje a virilidade um pouco decadente, mesmo nos jovens, como facilmente se constata (uma das consequências da sociedade de consumo e dos malefícios de uma certa democracia), não admira que Voronoff seja ignorado.
A partir daí, Braudeau desenvolve um interessantíssimo romance, certamente desigual, mas, talvez por isso, não menos apaixonante. Narrado por Aliocha, pseudónimo russo de um jornalista francês encarregado de averiguar o desaparecimento de homens jovens, especialmente magrebinos, em Meudon (uma alusão a Céline?), onde o professor Sarastre (uma piscadela à Flauta Mágica, de Mozart?) possui uma clínica de operações estéticas e transplantes, frequentada pela nata da sociedade francesa e estrangeira, o jornalista assiste à perseguição e morte num bosque próximo de um rapaz marroquino, Saïd, cujo rosto irá substituir a cara desfeita de uma figura sinistra (Bayard G.), membro de uma influente seita esotérica e também financeira, uma daquelas organizações que supostamente controlam o mundo.
Decorrem em Meudon 500 páginas do livro, porventura as mais conseguidas. As outras 150 passam-se na Tailândia, também muito interessantes, mas por motivos diversos. As restantes, na Austrália.
O autor cruza com êxito diversas histórias, que são todavia uma e a mesma história, na complexidade e ambiguidade das suas relações. Há uma investigação policial sobre o desaparecimento dos magrebinos, que não chega a resultados concretos (os árabes, especialmente os não-documentados, desaparecem em França com facilidade, por razões várias); o professor encerra a clínica e foge para a Tailândia, após o transplante da cara de Saïd; o jovem e deslumbrante Damien, de 18 anos, que não sabe que é filho ilegítimo do professor, e a quem este terá inoculado inadvertidamente uma substância simiesca, desenvolve tendências homossexuais e passa á prática com um colega; a "filha", a igualmente deslumbrante e jovem Hermione (que afinal não é filha do professor mas de um seu colega) mantém indiferentemente relações com raparigas e rapazes e, até uma vez, com o suposto pai; uma prima de meia-idade de Sarastre, mas ainda muito tentadora, Laetitia, serve de ponte, e vai para a cama, com todas estas personagens, menos Damien.
Na Tailândia, para onde o sinistro Bayard, com um novo rosto, obriga o professor a mudar-se, seguem-no Hermione, e também, às escondidas Aliocha e Damien, que acabam por não resistir às tentações dos bares locais, onde se encomendam os rapazes pelos números que ostentam no palco. Damien não hesita obviamente em deitar-se com muitos e variados, e o próprio Aliocha, supostamente heterossexual, acaba por não resistir às tentações dos jovens com a pele cor de chá. Sempre com a maioridade verificada, para evitar as contrariedades das associações que zelam em todo o mundo pelos bons costumes dos menores de ambos os sexos, mas particularmente pelos dos rapazes. Que isto de menores tem mais a ver com o bilhete de identidade do que com a idade mental da pessoa.
Os desígnios da seita a que Bayard pertence, o Rayon Vert, vão agora no sentido de que Sarastre consiga aprisionar as almas dos pacientes que lhe são enviados (e mortos para o efeito) e conservá-las para aplicação futura (uma espécie do enxerto de almas), visto o professor ter em tempos começado a interessar-se pelo assunto. Mas este, perante a impossibilidade, suposta, do propósito, acaba por suicidar-se, frustrando as intenções da suprema cúpula da associação secreta.
Finalmente na Austrália, Damien e Hermione reencontram-se e resolvem, após se terem, finalmente apaixonado, dedicar-se às culturas aborígenes. Aliocha regressa a França. E Bayard morre, devido a uma deficiência do enxerto do rosto, a menos que tenho vindo a ocupar o lugar de outra pessoa.
A intriga do romance é perfeita, embora Braudeau não resolva as suas personagens, ou porque não quis, ou porque não encontrou a conveniente solução a dar-lhes, o que nos suscita alguma frustração. Mas o livro lê-se, do princípio ao fim (ou quase) com inegável prazer. E está escrito com indesmentível bom gosto, coisa de que nem todos os autores se podem gabar.
Também o título L'interprétation des singes nos conduz a "l'interprétation des songes", ou l'interprétation des rêves", convocando, e muito bem, Freud para este "pesadelo", que é de alguma maneira o "Sonho" que parece conduzir toda a vida de Damien, de quem ficamos sem saber se foi ou não inoculado pelas mãos do pai com algum vírus simiesco que pudesse suscitar a homossexualidade, como Sarastre receava, ou se tudo não passou de uma dúvida no cérebro afinal atormentado e ambicioso do professor, não obstante a convicção do rapaz de possuir um "dom" cuja origem ignorava ou fingia ignorar.
* * *
Uma das mais-valias da obra tem a ver com as considerações que Michel Braudeau faz, en passant, sobre muitos aspectos da sociedade contemporânea. A propósito do presente endeusamento da juventude, cuja pureza os zeladores públicos ou privados entendem dever ser preservada ad aeternum, mesmo contra a vontade dos interessados, de todos os males ou pseudo-males deste mundo, na mesma altura em que os velhos, agora ditos idosos ou da terceira idade (um eufemismo) são despejados em lares, quando não escorraçados para a valeta, o autor escreve:
«Nous vivons une époque de jeunisme superlatif, totalitaire et maniaque, voire maniaco-dépressif. Le jeune seul compte, seul le jeune est beau, désirable. Le jeune achète beaucoup de choses conçues pour les jeunes, par d'autres jeunes ou de vieux malins, le jeune a raison, il a l'innocence ou l'intuition, il faut écouter le jeune en toutes circonstances, c'est lui le thermomètre, le baromètre, l'indicateur de tendance, le futurologue, On ne peut pas avoir raison contre les jeunes. Faites un sondage démocratique. Si les résultats vous contrarient, vérifiez la proportion de jeundes qui a été consultée. Accordez-lui au besoin une double voix. On ne peut pas aller contre la jeunesse, ils ont l'oeil plus frais, ils sentent mieux l'avenir avec leurs narines non souillées par le tabac, les excès, ils paieront nos retraites et nous enterreront le moment venu. Donc le vote des jeunes est le plus digne d'être écouté et les vieux n'ont qu'à se taire, depuis le temps qu'ils ont menti, changés d'avis, vu le nombre de fois où ils se sont trompés dans l'histoire des cents dernières années, un peu de décence, ils ne devraient pas trop la ramener.
«Le jeune est sur toutes les affiches, promeut tout et n'importe quoi. À part les apareils auditifs pour les sourds et les couches pour les prostatiques, on ne voit pas ce qu'un vieux pourrait faire vendre. Même un modèle de chaise roulante sera illustré par un jeune. Un paraplégique jeune, peut être beau. Alors, les voitures, les vêtements, les sous-vêtements, les articles de sport, les boissons gazeuses, n'en parlons pas. Les vieux n'ont qu'à suivre, boire des choses pétillantes et sucrées, s'habiller en fluo. Et, d'ailleurs, ils le font. Certains chaussent même des rollers et se lancent comme de pauvres pantins sans ficelles ni haubans, roulent de façon très jeune vers leur suicide programmé. Mais en même temps, et c'est bien ce qui rend les vieux ou les non-jeunes malades de frustration, presque schizophrènes, ces jeunes admirables et partout célébrés comme des références et des divinités, il ne faut pas s'y frotter. Past avant tel ou tel âge, selon les pays, les législations, les rapports de parenté. Sinon c'est un crime de pervers. Les couples divorcés aux États-Unis, nation toujours en pointe, s'orientent volontiers vers ce genre d'arguments: il a trop savonné notre petite fille dans la baignoire, elle s'occupe trop de son zizi, etc., pour obtenir la garde au profit du parent vertueux. Si bien qu'on ose plus passer la main dans les cheveux d'un enfant sans penser aux dommages et intérêts, à la psychanalyse qu'il faudra payer; qu'on osera bientôt plus lui parler.
«Parce que le jeune est si intact, si vierge, si fragile, que tout geste déplacé le meurtrit à jamais. On se demande comment il fera pour cesser d'être jeune puisq'un jour les années le chasseront de cet enclos, le feront tomber du piédestal dans la foule des anciens jeunes, Comment franchira-t-il la frontière, l'apprentissage ne sera-t-il trop rapide et cruel? On s'en moque, puisqu'il ne sera plus jeune, il sera fort, d'un jour à l'autre, sans jamais avoir appris. Inutile de dire que cette vogue moralisante me paraît être une invention démoniaque du marché mondiale de la consommation et des fanatiques chrétiens associés, lesquels ont fort à faire sur le sujet avec leur propre clergé. Le résultat est qu'on ne sait plus penser aux âges de la vie autrement qu'en termes de souillure et de protection. Obsession de la tache bien normale dans une civilisation de la lessive et du blanchissement. Cela ne me pourrit pas l'existence comme à d'autres, parce que j'ai des goûts très élastiques, mais je considère cette vénération mutilante du jeune comme un moment de grand désarroi social, aussi dangereux et invalidant qu'une phobie peut l'être pour un individu. Et la paresse seule m'empêche de me lancer dans une croisade pour la protection des adultes, sans cesse ridiculisés pour leur bedaine, leur calvitie, leurs trous de mémoire, et harcelés sexuellement par des hordes de jeunes qui s'exhibent impunément en tous lieux et les provoquent à la moindre occasion. J'y viendrai peut-être.» (páginas 227, 228 e 229)
Ou, mais adiante, em outro registo:
«C'est quand tout conspire à la catastrophe, quand se manifestent les signes annonciateurs du pire, que les nuages s'amoncellent pour un grand orage, qu'il me semble approcher le mieux du bonheur. Le temps est compté, précieux. On goûte pleinement ce que l'on va perdre. Les gens et les choses trouvent leur juste place, enfin. C'est gai, cela coûte cher, il faut le boire vite, comme le champagne. Je n'aime pas le champagne, ni les occasions où on en sert, à midi une coupe me casse la journée
, le soir une bouteille m'énerve. Mais les moments ephémères qui précèdent la crise, et la crise elle-même, quand on s'en tire sans trop de dommages, c'est la vie paroxystique, exquise.
«Mes parenst m'ont souvent parlé de la guerre, la Deuxième, de l'humiliation de la défaite, des Allemands, des hivers sans chauffage, des cartes de rationnement, des privations, du marché noir, de toutes ces années où plus rien ne tenait debout. Ils ne m'ont jamais dit qu'ils s'étaient ennuyés. La plus jeune de mes soeurs, à trois ans, dormait comme un loir pendant les bombardements. Moi, je n'était pas né, je devrais me taire. Mais il me semble que la guerre dissipe absolument l'ennui, c'est un de ses moteurs secrets. L'ennui tue les nations. Personne n'était dépressif pendant la guerre, on n'y pensait pas. Même les fous l'étaient moins, la folie générale les remettait à niveau. Les fous communs, libres, j'entends, pas ceux des asiles psychiatriques que l'on exterminait. Des millions d'individus, me dira-t-on, sont morts sans s'ennuyer, dans une innommable atrocité. Honte éternelle à qui l'oublierait.
«Et les autres qui, dans le même temps de l'Histoire, survivent, vivent intensément des années qui en valent dix. Certains chantent, dansent, s'enrichissent. C'est grotesque, inexprimable, c'est l'homme. Je ne suis pas quelqu'un de cynique, en aucune façon. Je n'ai pas d'ironie sur le sujet. C'est la puissance de l'ennui qui m'interroge, cette passion aussi estrême et mortelle que la guerre. Est-ce que les animaux s'ennuient? Jamais, pour autant qu'on sache. Ils se reposent. Ils sont. Celui qui s'ennuie n'est pas, ne conjugue pas le verbe être. Les animaux enfermés non plus, sans doute. Ni les animaux domestiques. Plus ils sont proches de l'homme, plus ils sont susceptibles de s'ennuyer, les chiens plus que les chats. L'ennui, comme on dit: la mort dans l'âme.» (páginas 400 e 401)
Estamos na presença de um livro grande e de um grande livro. Onde, a propósito do enredo, se tecem considerações as mais pertinentes sobre o mundo de hoje, as suas contradições, as suas loucuras. Vivemos numa sociedade que se pretende normal mas que é a mais alienada (V. Hartmut Rosa) de sempre. Uma sociedade em que o espiritual cedeu o lugar ao material, onde desapareceu a privacidade, onde se perdeu a esperança, onde os nobres desígnios do futuro foram substituídos pelo vil comércio do quotidiano. Não querendo ser pessimista, julgo que se poderia colocar, à frente de todos os recém-nascidos, o dístico imaginado por Dante, na Divina Commedia, às portas do Inferno: "Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate".
quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
O HORROR DA SOBREMODERNIDADE
O antropólogo e etnólogo francês Marc Augé (n. 1935) é um dos mais importantes teóricos da sobremodernidade. Doutor em Letras e Ciências Humanas, Marc Augé foi presidente da École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHASS), de Paris, onde sucedeu a Fernand Braudel, Jacques le Goff e François Furet.
Dirigiu numerosas investigações na África Negra e na América do Sul e é autor de cerca de 30 livros e inúmeros artigos em publicações diversas sobre antropologia e etnologia.
Um dos seus livros mais importantes, Non-Lieux: Introduction à une anthropologie de la surmodernité (1992), cuja tradução portuguesa aqui se comenta, é uma obra de referência para o estudo da modenidade, da sobremodernidade, da pós-modernidade e daquilo a que Hartmut Rosa (a que nos referimos noutro local) chama modernidade tardia.
Não é fácil discorrer sobre a centena de páginas de Não-Lugares.Tentemos uma aproximação. E recordemos, porque importa que "non-lieux" é, em francês, a designação jurídica que designa a não-pronúncia; isto é, a decisão que significa não haver um procedimento judicial
Citamos o autor, a partir da superabundância espacial do presente, expressa em mudanças de escala. na multiplicidade das referências imagéticas e imaginárias e nas acelerações espectaculares dos meios de transporte: «Atinge, concretamente, alterações físicas consideráveis: concentrações urbanas, transferências de população e a multiplicação do que nós chamaremos "não-lugares", por oposição à noção sociológica de lugar, associada por Mauss e toda uma tradição etnológica à de cultura localizada no tempo e no espaço. Os não-lugares tanto podem ser instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias rápidas, viadutos, aeroportos) como os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são colocados os refugiados do planeta.».
Marc Augé define a "sobremodernidade", em oposição à "modernidade", por três características:
- a "superabundância de acontecimentos": «Para um certo número de intelectuais de hoje, o tempo deixou de constituir um princípio de inteligibilidade. A ideia de progresso, que implicava que o depois era explicável em função do antes, afundou-se, nos recifes do século XX, com o fim das esperanças ou ilusões que tinham acompanhado a travessia do século XIX. Este questionamento refere-se, na realidade, a várias constatações distintas umas das outras: as atrocidades das guerras mundiais, dos totalitarismos e das políticas de genocídio que, é o mínimo que se pode dizer, não abonam em favor de um progresso moral da humanidade; o fim das grandes narrativas, ou seja, dos grandes sistemas de interpretação que pretendiam dar conta da evolução do conjunto da humanidade e não o conseguiram, ao mesmo tempo que os sistemas políticos que se inspiravam oficialmente nalguns deles, se desviaram ou desapareceram.». É a própria superabundância (num planeta cada dia mais pequeno) que coloca problemas ao historiador da contemporaneidade. «A "aceleração" da história corresponde, de facto, a uma multiplicação de acontecimentos, na maioria dos casos não previstos pelos economistas, os historiadores ou os sociólogos.». «Há uma necessidade de dar um sentido ao presente, para já não falar do passado, e ela é o preço da superabundância de acontecimentos que corresponde à situação que podemos designar de "sobremodernidade" a fim de dar conta da sua modalidade essencial: o excesso.». «O prolongamento da expectativa de vida, a passagem à coexistência habitual de quatro e já não três gerações, arrastam progressivas mudanças práticas na ordem da vida social.». «Pode-se dizer que a sobremodernidade é a face de uma moeda de que a pós-modernidade nos apresenta apenas o reverso - o positivo de um negativo.». «É da nossa exigência em compreender todo o presente que decorre a dificuldade em atribuir um sentido ao passado próximo; a procura positiva de um sentido (de que o ideal democrático é, sem dúvida, um aspecto essencial), que se manifesta nos indivíduos das sociedades contemporâneas, pode, paradoxalmente, explicar os fenómenos que, por vezes, são interpretados como indícios de uma crise do sentido e, por exemplo, as desilusões de todos os desiludidos da terra: desiludidos do socialismo, desiludidos do liberalismo, e, muito em breve, desiludidos do pós-comunismo.».
- a "superabundância espacial": «Sobre o excesso de espaço, poderíamos dizer, em primeiro lugar e, também aqui, um pouco paradoxalmente, que ele é correlativo do estreitamento do planeta: dessa distância de nós a nós mesmos a que correspondem as performances dos cosmonautas e a ronda dos nossos satélites.». «Estamos na era da mudança de escala, no que respeita à conquista espacial, certamente, mas também na terra: os meios de transporte rápidos põem qualquer capital a umas horas apenas de qualquer outra. Na intimidade das nossas casas, por fim, toda a espécie de imagens, retransmitidas pelos satélites, captadas pelas antenas que se erguem nos telhados da aldeia mais remota, podem dar-nos uma visão instantânea e, por vezes, simultânea, de um acontecimento que se está a produzir no outro extremo do planeta.».
- a "individualização das referências": «É a figura do ego, do indivíduo, que reaparece na própria reflexão antropológica pois, à falta de novos terrenos, num universo sem territórios, e de chama teórica, num mundo sem grandes narrativas, os etnólogos, certos etnólogos, depois de terem tentado tratar as culturas (as culturas localizadas, à Mauss) como textos, acabaram por se interessar apenas pela descrição etnográfica enquanto texto - enquanto expressão do seu autor, naturalmente, de forma que, a acreditar em James Clifford, os Nuer ensinar-nos-iam mais sobre Evans-Pritchard que este sobre aqueles.».
Resumindo: «As três figuras do excesso por intermédio das quais procurámos caracterizar a situação de sobremodernidade (a superabundância de acontecimentos, a superabundância espacial e a individualização das referências) possibilitam a sua apreensão, sem ignorar as suas complexidades e contradições, mas também sem a transformar no horizonte inatingível de uma modernidade perdida da qual não nos restaria mais do que salientar os vestígios, registar as ilhas que subsistem ou inventariar os arquivos.».
Ainda sobre "lugares" e "não-lugares":
«Se um lugar pode definir-se como identitário, relacional e histórico, um espaço que não possa definir-se nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar. A hipótese aqui defendida é a de que a sobremodernidade produz não lugares, ou seja, espaços que em si mesmos não constituem lugares antropológicos e que, ao contrário da modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: inventariados, classificados e promovidos a "lugares da memória" estes ocupam naquela um lugar circunscrito e específico. Um mundo onde se nasce na clínica e morre no hospital, onde se multiplicam, em modalidades luxuosas ou inumanas, os locais de trânsito e as ocupações provisórias (as cadeias de hotéis e os squats (1), os clubes de férias, os campos de refugiados, os bairros da lata votados à destruição ou à perenidade e à degradação), onde se desenvolve uma rede compacta de meios de transporte que são, também, espaços habitados, onde o utente habitual dos grandes centros, dos multibancos e dos cartões de crédito recria, com os gestos do comércio "na linguagem dos mudos", um mundo votada à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efémero, oferece ao antropólogo, e aos outros, um objecto novo cujas dimensões inéditas há que medir, antes de perguntar de que olhar será passível.».
Muito mais haveria a dizer sobre este pequeno livro de Marc Augé, em cujo texto vem tudo muito bem explicado. E poderíamos fazer outras citações lapidares. E assinalar outros aspectos que transformam num horror quotidiano a vida dos cidadãos. Mas os interessados nestas matérias podem ler o livro, de que existe até esta tradução portuguesa.
(1) Casas devolutas ocupadas por grupos de jovens.
quarta-feira, 26 de dezembro de 2012
OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA EM TODO O SEU ESPLENDOR
Segundo o PÚBLICO de hoje:
Abriu em 1900 e três anos depois já se sabia que a Escola de Rapazes da Florida era uma casa de tortura, violações e assassínio de rapazes. A Universidade de Tampa estuda cem sepulturas e confirma as histórias
Na escola existiam duas salas do chicote. Uma nos edifícios para rapazes brancos. Outra no edifício para rapazes negros. O "chicote" era um cinto, comprido, de couro e metal, e as vergastadas eram tão fortes que bocados da roupa interior dos miúdos ficavam-lhes entranhados na carne.
Na escola existia uma sala de violações. Só uma. Para violar todos os meninos, os brancos e os negros; mais os negros.
Na escola existiam banheiras. Também não havia segregação nas banheiras. Qualquer uma servia para afogar crianças brancas e crianças negras; mais negras.
Na escola havia um cemitério. Quarenta e cinco menores foram lá enterrados. Mas nos registos há mais 31 mortos, com referência a corpos enviados para outros lugares. E sobre outros 22 não há informação sobre os corpos.
Podem ser ainda mais: o reformatório, rebaptizado com o nome de um director, Arthur G. Dozier, estava rodeado de mato - quantos corpos terão sido despejados ali?, perguntou a antropóloga Erin Kimmerle, da Universidade de Tampa, na Florida, ao divulgar este mês um primeiro relatório da investigação forense que está a ser feita no local.
A Escola de Rapazes de Marianna, na Florida, abriu no dia 1 de Janeiro de 1900. Três anos depois já se sabia que era um campo de tortura, de abuso sexual, de assassínio de menores - de meninos de cinco anos a rapazes de 18 -, porque são datados desse ano documentos que dizem que os rapazes eram mantidos acorrentados, agarrados às mesas ou às camas. Terá sido por isso que morreram seis de uma vez num incêndio num dormitório, em 1914.
Mas só encerrou em 2011. Um relatório de 2010 da polícia da Florida desenterrou histórias velhas - a maior parte dos crimes foram cometidos até ao final dos anos 1960, por funcionários -, confirmou relatos de terror, assumiu que o velho reformatório era uma casa de despejo de órfãos e indesejados. Miúdos brancos, mas sobretudo negros, presos, julgados (ou não) e condenados àquela espécie de prisão porque (está nos documentos oficiais) foram apanhados a fumar na escola, foram considerados incontroláveis, incapazes.
"A maior parte dos rapazes que morreram aqui eram afro-americanos", confirmou agora a antropóloga Erin Kimmerle. O documento foi citado em jornais e televisões americanos e europeus, por exemplo a BBC, a CNN, o Miami Herald e The Guardian. Diz, por exemplo, que não se devem esperar processos judiciais relativos a estes crimes. Ou já prescreveram ou não teriam base para provocar um julgamento. "Mesmo a documentação da época diverge e nos relatórios surgem várias causas de morte", disse Erin Kimmerle. A antropóloga explicou que, por agora, a sua equipa trabalha com a ideia de perto de cem vítimas (o dobro do esperado).
Disse Kimmerle que a equipa de antropólogos forenses vai continuar a procurar corpos. Identificá-los, será difícil. Muitos não tinham família. Pelo que o relatório forense foi sobretudo pretexto para relembrar uma história há muito conhecida e mesmo assim perpetuada durante quase 70 anos. E para recuperar testemunhos recolhidos em 2010, que foram usados para tentar indemnizar os sobreviventes, mas os tribunais estaduais rejeitaram o caso.
"Vi um morrer numa banheira, depois de ter sido espancado até desfalecer. Creio que [tentou fugir] e foi apanhado pelos cães. Nunca soube a verdade", disse uma testemunha. Muitos rapazes morreram depois de tentarem fugir ou nos primeiros três meses de "internamento". "Vi um rapaz morrer, puseram-no numa secadora de roupa."
Jerry Cooper, de 67 anos, citado pelo Miami Herald, disse que os colegas que teve nas décadas de 1950 e 1960 (estavam ali cerca de 550 rapazes entre os dez e os 16 anos) não eram criminosos, só eram tratados como se fossem. "Havia órfãos que não tinham para onde ir e que eram mandados para Marianna. Não éramos miúdos maus. Precisavamos de um pouco de respeito, mas não foi o que encontrámos." Cooper sobreviveu à "Casa Branca", a ala-prisão do reformatório, com 11 celas, construída em 1929 - era ali a sala das violações.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2012
O REFERENDO E A CONSTITUIÇÃO
Realizou-se ontem a 2ª "volta", chamemos-lhe assim, do referendo da nova Constituição egípcia, que se efectuou em dois fins de semana, votando parte do país primeiro e a outra parte depois. Segundo os resultados provisórios, a proposta apresentada pelos Irmãos Muçulmanos obteve 64% do sufrágios, embora tendo votado apenas 30% dos eleitores inscritos.
No sábado, o vice-presidente da República, Mahmud Mekki, resignou.
A Frente de Salvação Nacional, composta pelos partidos laicos, pelos cristãos e pelos muçulmanos não fundamentalistas, clamou já por grosseira fraude eleitoral, e pediu uma investigação, o que prenuncia que a agitação das últimas semanas vai continuar.
Entretanto, o Egipto afunda-se numa profunda crise política, económica, financeira e social, com o turismo, uma das principais fontes de receita, praticamente na estaca zero.
É por demais evidente, que metade do país, pelo menos, rejeita os termos da nova Constituição, que introduz preceitos da lei islâmica. num país em que mais de 10% da população é cristã e em que os muçulmanos não extremistas, e habituados à convivência com os ocidentais (pelo menos através do turismo) não estão dispostos a submeter-se a práticas de um islamismo ancestral.
A grande contestação que existia ao regime de Mubarak, altamente corrupto e pouco empenhado em atenuar as desigualdades sociais, transformou-se agora em contestação a Morsi, que embora considerado "moderado" tem de satisfazer os sectores religiosos mais extremistas.
Estamos em crer que Morsi será um presidente de transição, e que o Egipto encontrará uma solução de compromisso entre uma população tendencialmente "mais religiosa" e as grandes camadas laicas, cristãs e muçulmanas moderadas mas já habituadas a um certo secularismo, que lhes é veiculado não só por contactos pessoais mas através dos novos meios de informação. Aliás, esse compromisso será vital para a sobrevivência tout court do país e para que ele possa desempenhar o papel que sempre lhe foi atribuído no seio do mundo árabe.
domingo, 16 de dezembro de 2012
FAUSTO E A ZONA EURO
Fausto e Mefistófeles, por Delacroix (Colecção Wallace, Londres) |
O que tem a ver o velho professor Fausto (um dos mitos maiores da cultura ocidental, pela primeira vez consagrado por Marlowe em peça de teatro), Goethe, que o imortalizou em poema dramático, e a Zona Euro?
Num interessante e oportuno artigo sobre a crise da zona euro, em "The Irish Times", Derek Scally dá uma resposta:
O pacto da Alemanha com o demónio
Na conhecida tragédia de Goethe, "Fausto", este autor alemão expressa a opinião de que o papel-moeda é uma extensão da alquimia por outros meios. Esse ponto de vista é claramente evidente na posição atual da Alemanha relativamente à crise da zona euro, defende o correspondente do jornal "The Irish Times" em Berlim.
Para quem tentar compreender a atitude alemã em relação ao
dinheiro e à dívida, na crise da zona euro, todos os caminhos vão dar a
Frankfurt.
A capital financeira da Alemanha abriga não apenas dois bancos centrais, o Bundesbank e o Banco Central Europeu, mas também um edifício barroco amarelo, por trás da torre do BCE. Foi ali que, em 1749, nasceu o génio literário da Alemanha, Johann Wolfgang Goethe.
Agora um museu, a Goethe Haus tem em exibição uma exposição fascinante, Goethe e o Dinheiro (Goethe und das Geld), que explora o modo como as atitudes da sociedade influenciaram a escrita de Goethe, que, por seu turno, modelou a atitude alemã perante o dinheiro.
Goethe nasceu em berço de ouro, graças ao próspero negócio da família e a alguns casamentos vantajosos. Embora mantivesse relações sociais com várias famílias de banqueiros –Goethe quase casou com uma mulher de uma delas – as perdas sofridas por essas instituições depois das guerras napoleónicas deixaram no escritor uma desconfiança nos bancos que durou a vida inteira. .
Tornou-se mais rigoroso quando, depois de 1782, foi ministro das Finanças do ducado de Saxónia-Weimar, onde hoje se situa o Estado da Turíngia. Essa experiência modelou o seu pensamento e contribuiu para a criação da sua obra-prima literária, Fausto, de leitura obrigatória em todas as escolas alemãs, que se centra no célebre "pacto de Fausto" do erudito homónimo com o demónio Mefistófeles.
O demónio promete fazer tudo o que Fausto quiser na Terra, mas, se Fausto alguma vez desejar que um determinado momento dure para sempre, Mefistófeles fica com a sua alma. A parte II de Fausto, publicada postumamente, tem início na corte falida de um imperador hedonista. O tesoureiro real informa que os "os cofres continuam vazios", tal como as adegas, devido às festas frequentes.
O persuasivo Mefistófeles aparece com a proposta de transformar papel em dinheiro. O imperador endividado fica curioso: "Estou cheio do eterno Como e Quando / Falta dinheiro: pois bem, arranje-o." As notas assinadas pelo imperador fazem disparar o consumo e, assim, "metade das gentes só querem comer bem / a outra metade só quer ostentar novos trajes". Só depois de Mefistófeles e o seu parceiro Fausto desaparecerem alguém repara que o valor das notas não corresponde a qualquer equivalente real –ouro num cofre, por exemplo –e, sim, à promessa de ouro que ainda é preciso extrair da mina.
Os paralelos não passaram despercebidos aos leitores contemporâneos de Goethe: entre a história de Fausto e o capital necessário para impulsionar a revolução industrial. As suas advertências voltam a ser relevantes para as inúmeras figuras públicas alemãs que se aproveitam de Fausto para formular as suas preocupações relativamente à crise da Zona Euro.
O BCE argumenta que não é disso que se trata e as diferenças de pontos de vista fizeram ressurgir a ambivalência cultural em relação ao dinheiro e a dívidas, na Alemanha. Afinal, neste país, a palavra Schuld significa tanto dívida monetária como culpa moral. As intervenções do BCE no mercado de obrigações foram criticadas pelos mesmos economistas moralistas que atacaram os países endividados da zona euro, chamando-lhes Schuldensünder, ou “pecadores da dívida”.
Há, portanto, uma ligação entre atitudes de hoje e o Fausto de Goethe, que o teórico literário alemão Werner Hamacher considera como uma crítica da “estética do crédito e economia da persuasão”.
Ottmar Issing, antigo membro da Comissão Executiva do BCE, sugere que os alemães não têm dúvidas quanto ao dinheiro em si, mas são pessimistas quanto a este ser ou não utilizado de forma sensata. Num texto para o catálogo da Goethe e o Dinheiro, intitulado “Inflação –a obra do diabo?”, Issing defende que “a escolha entre bênção e maldição” oferecida pelo papel-moeda “está nas mãos da humanidade”. O antigo presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, concorda. Noutro texto, aplaude o debate de Goethe ao longo de toda a sua vida sobre o caráter dual do papel-moeda, que “produz o melhor e o pior na esfera económica”.
Os receios de Goethe ressurgiram no ponto de vista alemão predominante de que a crise da zona euro é o resultado destrutivo de empréstimos descontrolados e imprudentes, contraídos por sociedades que se recusam a aceitar os limites naturais das suas finanças. O colapso económico é, por conseguinte, um fio condutor que perpassa pelo trauma nacional da Alemanha e pelo seu drama nacional.
Fausto e Mefistófeles estão escondidos, à espreita da crise da zona euro, colorindo as exigências de Berlim de disciplina orçamental pan-europeia e lançando o debate, na Alemanha, sobre os limites do crescimento económico.
“Goethe viu que, quando utilizado adequadamente, o dinheiro traz consigo oportunidades positivas, como a ascensão da sua própria família”, disse Vera Hierholzer, uma das curadoras da mostra Goethe e o dinheiro. “Ao mesmo tempo, como muitos outros da sua classe, Goethe tinha medo das consequências do excesso e da exorbitância, de se querer sempre mais. É um ponto de vista muito alemão, mesmo hoje, ter em conta os limites e tentar controlar as coisas dentro desses limites.”
O debate sobre o autocontrolo monetário tem relevância para além da Alemanha de Goethe, em especial entre os países em crise, impacientes por se libertarem do jugo da troika e "regressarem aos mercados".
Curiosamente, alguns dos últimos leilões de dívida soberana da Irlanda foram presididos pelo defunto Brian Lenihan, no enorme Frankfurter Hof hotel, localizado a meio caminho entre a torre do BCE e a Goethe Haus.
Depois de recuperar a soberania económica, cabe à Irlanda decidir qual o passo seguinte. Na direção da Goethe Haus, sem pôr em perigo os limites dos seus meios financeiros, ou de volta ao hotel de cinco estrelas Frankfurter Hof, para ser a anfitriã das dispendiosas reuniões ao pequeno-almoço com bancos dispostos a emprestar-nos mais dinheiro de Mefistófeles.
A capital financeira da Alemanha abriga não apenas dois bancos centrais, o Bundesbank e o Banco Central Europeu, mas também um edifício barroco amarelo, por trás da torre do BCE. Foi ali que, em 1749, nasceu o génio literário da Alemanha, Johann Wolfgang Goethe.
Agora um museu, a Goethe Haus tem em exibição uma exposição fascinante, Goethe e o Dinheiro (Goethe und das Geld), que explora o modo como as atitudes da sociedade influenciaram a escrita de Goethe, que, por seu turno, modelou a atitude alemã perante o dinheiro.
Goethe nasceu em berço de ouro, graças ao próspero negócio da família e a alguns casamentos vantajosos. Embora mantivesse relações sociais com várias famílias de banqueiros –Goethe quase casou com uma mulher de uma delas – as perdas sofridas por essas instituições depois das guerras napoleónicas deixaram no escritor uma desconfiança nos bancos que durou a vida inteira. .
Trabalho sequioso
As contas da família do escritor mostram que este estava longe de corresponder ao estereótipo do alemão poupado, gastando por vezes 15% dos seus rendimentos anuais em vinho. Os resgates da sua mãe e dos seus empregadores foram recorrentes. Como salientam os curadores da exposição, Goethe argumentava que o seu comportamento de gastador era “essencial para o desenvolvimento da sua personalidade”.Tornou-se mais rigoroso quando, depois de 1782, foi ministro das Finanças do ducado de Saxónia-Weimar, onde hoje se situa o Estado da Turíngia. Essa experiência modelou o seu pensamento e contribuiu para a criação da sua obra-prima literária, Fausto, de leitura obrigatória em todas as escolas alemãs, que se centra no célebre "pacto de Fausto" do erudito homónimo com o demónio Mefistófeles.
O demónio promete fazer tudo o que Fausto quiser na Terra, mas, se Fausto alguma vez desejar que um determinado momento dure para sempre, Mefistófeles fica com a sua alma. A parte II de Fausto, publicada postumamente, tem início na corte falida de um imperador hedonista. O tesoureiro real informa que os "os cofres continuam vazios", tal como as adegas, devido às festas frequentes.
O persuasivo Mefistófeles aparece com a proposta de transformar papel em dinheiro. O imperador endividado fica curioso: "Estou cheio do eterno Como e Quando / Falta dinheiro: pois bem, arranje-o." As notas assinadas pelo imperador fazem disparar o consumo e, assim, "metade das gentes só querem comer bem / a outra metade só quer ostentar novos trajes". Só depois de Mefistófeles e o seu parceiro Fausto desaparecerem alguém repara que o valor das notas não corresponde a qualquer equivalente real –ouro num cofre, por exemplo –e, sim, à promessa de ouro que ainda é preciso extrair da mina.
Os paralelos não passaram despercebidos aos leitores contemporâneos de Goethe: entre a história de Fausto e o capital necessário para impulsionar a revolução industrial. As suas advertências voltam a ser relevantes para as inúmeras figuras públicas alemãs que se aproveitam de Fausto para formular as suas preocupações relativamente à crise da Zona Euro.
O pacto faustiano do BCE
O papel moderno do tesoureiro do imperador em Fausto, que alerta para o sistema do papel-moeda, foi assumido pelo presidente do Bundesbank, Jens Weidmann. “Se um banco central puder cunhar dinheiro sem limites, a partir do nada, como pode esse banco garantir que o dinheiro é suficientemente reduzido para manter o seu valor?”, perguntou Weidmann numa reunião, em setembro. “A tentação existe sem dúvida e boa parte da história monetária cedeu à tentação.” Weidmann adverte que o programa do BCE de compra ilimitada de obrigações, para estabilizar a zona euro, é potencialmente um pacto de Fausto, se oferecer aos políticos uma alternativa de financiamento mais agradável que as dolorosas reformas económicas.O BCE argumenta que não é disso que se trata e as diferenças de pontos de vista fizeram ressurgir a ambivalência cultural em relação ao dinheiro e a dívidas, na Alemanha. Afinal, neste país, a palavra Schuld significa tanto dívida monetária como culpa moral. As intervenções do BCE no mercado de obrigações foram criticadas pelos mesmos economistas moralistas que atacaram os países endividados da zona euro, chamando-lhes Schuldensünder, ou “pecadores da dívida”.
Há, portanto, uma ligação entre atitudes de hoje e o Fausto de Goethe, que o teórico literário alemão Werner Hamacher considera como uma crítica da “estética do crédito e economia da persuasão”.
Ottmar Issing, antigo membro da Comissão Executiva do BCE, sugere que os alemães não têm dúvidas quanto ao dinheiro em si, mas são pessimistas quanto a este ser ou não utilizado de forma sensata. Num texto para o catálogo da Goethe e o Dinheiro, intitulado “Inflação –a obra do diabo?”, Issing defende que “a escolha entre bênção e maldição” oferecida pelo papel-moeda “está nas mãos da humanidade”. O antigo presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, concorda. Noutro texto, aplaude o debate de Goethe ao longo de toda a sua vida sobre o caráter dual do papel-moeda, que “produz o melhor e o pior na esfera económica”.
Viver dentro das possibilidades
Para o professor Hans Christoph Binswanger, autor de Dinheiro e Magia – Uma crítica da economia moderna à luz de Fausto, Goethe encarou o papel-moeda como “a extensão da alquimia por outros meios”. Para transformar papel-moeda em riqueza real, defende o professor Binswanger, Goethe receou que tudo viesse a ser “arrastado para o processo de combustão lenta da produção mundial”. “A aparentemente mágica alquimia moderna suporta um preço profano, transforma o mundo num vazio”, acrescenta.Os receios de Goethe ressurgiram no ponto de vista alemão predominante de que a crise da zona euro é o resultado destrutivo de empréstimos descontrolados e imprudentes, contraídos por sociedades que se recusam a aceitar os limites naturais das suas finanças. O colapso económico é, por conseguinte, um fio condutor que perpassa pelo trauma nacional da Alemanha e pelo seu drama nacional.
Fausto e Mefistófeles estão escondidos, à espreita da crise da zona euro, colorindo as exigências de Berlim de disciplina orçamental pan-europeia e lançando o debate, na Alemanha, sobre os limites do crescimento económico.
“Goethe viu que, quando utilizado adequadamente, o dinheiro traz consigo oportunidades positivas, como a ascensão da sua própria família”, disse Vera Hierholzer, uma das curadoras da mostra Goethe e o dinheiro. “Ao mesmo tempo, como muitos outros da sua classe, Goethe tinha medo das consequências do excesso e da exorbitância, de se querer sempre mais. É um ponto de vista muito alemão, mesmo hoje, ter em conta os limites e tentar controlar as coisas dentro desses limites.”
O debate sobre o autocontrolo monetário tem relevância para além da Alemanha de Goethe, em especial entre os países em crise, impacientes por se libertarem do jugo da troika e "regressarem aos mercados".
Curiosamente, alguns dos últimos leilões de dívida soberana da Irlanda foram presididos pelo defunto Brian Lenihan, no enorme Frankfurter Hof hotel, localizado a meio caminho entre a torre do BCE e a Goethe Haus.
Depois de recuperar a soberania económica, cabe à Irlanda decidir qual o passo seguinte. Na direção da Goethe Haus, sem pôr em perigo os limites dos seus meios financeiros, ou de volta ao hotel de cinco estrelas Frankfurter Hof, para ser a anfitriã das dispendiosas reuniões ao pequeno-almoço com bancos dispostos a emprestar-nos mais dinheiro de Mefistófeles.
AS NAÇÕES UNIDAS E A RENEGOCIAÇÃO DA DÍVIDA
Segundo o EXPRESSO, as Nações Unidas propõem a renegociação com a troika da dívida portuguesa. Artur Baptista da Silva, o economista que coordena o Programa da ONU para o Desenvolvimento (PNUD), afirma que se Portugal não o fizer agora terá de o fazer daqui a seis meses de joelhos (salvo seja).
Pelo interesse, transcrevemos a notícia:
«"Se Portugal não o fizer já, terá de o fazer daqui a
seis meses, de joelhos", afirma Artur Baptista da Silva, o economista
português que coordena uma equipa do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), encarregada pelo secretário-geral Ban Ki-moon de
apresentar um relatório da situação crítica na Europa do Sul.
Em entrevista na edição de hoje do Expresso,
Baptista da Silva refere a preocupação das Nações Unidas com a evolução
da crise das dívidas soberanas na "periferia" da zona euro, as receitas
de ajustamento que têm sido colocadas em prática e os riscos
geopolíticos que esta situação acarreta.
Numa abordagem distinta de outras propostas de
renegociação da dívida - como a de Miguel Cadilhe, divulgada pelo
Expresso em outubro num artigo de opinião do ex-ministro das Finanças -,
a estratégia definida por esta equipa da ONU propõe uma renegociação de
41% da dívida soberana consolidada portuguesa projetada daqui a cinco
anos (uma parte da dívida que não deriva das políticas internas dos
diversos governos desde a adesão à União Europeia) e a mexida em dois
pontos do memorando de entendimento com a troika, que em detalhe o leitor poderá ler na entrevista publicada na edição do Expresso.
Artur Baptista da Silva será encarregado pela ONU
para dirigir o Observatório Económico e Social das Nações Unidas que se
instalará em Portugal por dois anos. O relatório será divulgado no
próximo ano.
A poupança de 10,3 mil milhões de euros daria para
cobrir um défice orçamental de 4,5% e ainda deixaria de saldo cerca de
2,3 mil milhões de euros, que poderiam ser aplicados à devolução de um
dos subsídios retirados aos funcionários públicos e aos pensionistas e
ao reforço do fundo de emergência social.»
ÓSCAR CARDOZO
O ano começou bem e acaba bem para o paraguaio Óscar Cardozo (n. 1983). Escrevemos aqui, em 4 de Janeiro passado, que o jogador do Benfica tivera então uma exibição extraordinária. Alcunhado, entre os seus, de Tacuara (que, em guarani, significa uma grande verga), Cardozo marcou ontem três golos contra o Marítimo, o que fez o clube da Luz ganhar o desafio por 4-1, e acabar 2012 na liderança do Campeonato.
Com o seu hat-trick de ontem, Cardozo já marcou 101 golos pelo Benfica, na Liga portuguesa, tendo representado o Paraguai na Taça do Mundo em 2010. O jogo de ontem foi dele.
sábado, 15 de dezembro de 2012
ENTRE SOCIALISMO E FASCISMO
Quando, a semana passada, procurava um livro numa estante, por entre montes de obras, caiu-me literalmente em cima o Gilles, de Pierre Drieu La Rochelle, cuja tradução portuguesa comprara em 1994, aquando da sua publicação, e que, pela habitual falta de tempo, não chegara a ler. Porque o autor foi uma controversa figura da vida política e cultural francesa, era agora tempo de fazê-lo.
Nasceu Drieu La Rochelle em Paris em 1893, cidade em que viria a suicidar-se em 1945. Romancista, ensaísta e jornalista, Drieu é, com Céline e Brasillach, um dos três grandes escritores que, durante a Segunda Guerra Mundial, se solidarizaram com o regime de Vichy e com a ocupação alemã, embora cada um a seu modo. Céline, um dos maiores nomes da literatura francesa do século XX, acabou amnistiado, embora votado à indignidade nacional, Brasillach, não tendo conseguido a graça do general De Gaulle, foi fuzilado em 1945 e Drieu tê-lo-ia sido certamente, não fora ter recorrido ao suicídio, apesar de lhe terem facilitado a fuga.
A trajectória de Drieu La Rochelle é sinuosa, como, aliás, a de muitos, ou quase todos os grandes homens. Frequentando os mais distintos círculos intelectuais franceses, amigo de Aragon (a quem inspirou o protagonista do romance Aurélien), de Mauriac e de Malraux, combatente na Primeira Guerra Mundial, onde foi ferido, cultivou ideias republicanas e progressistas, manifestou-se contra o racismo e denunciou o anti-semitismo e o fascismo, sempre guiado pelos ideais socialistas, que triunfavam na França da época e pretendiam constituir uma barreira ao comunismo. Isto, até 1934, quando se declarou, após uma viagem à Alemanha, simultaneamente "socialista" e "fascista" e publicou Socialisme fasciste. Durante a ocupação, assumiu, além do anti-semitismo, a direcção da prestigiadíssima "Nouvelle Revue Française" (NRF) e defendeu a colaboração com a Alemanha, na perspectiva de uma internacional fascista. Numa última provocação, aderiu ao Partido Popular Francês, de Jacques Doriot, e confiou aos seus escritos íntimos a sua admiração pelo estalinismo. Recusou a fuga, que lhe era proposta por amigos, como Malraux, e optou por pôr termo à vida.
A sua obra literária é vasta e Gilles é o seu maior (mesmo em tamanho, mais de 600 páginas) romance. Demasiado extenso, já que o plot poderia restringir-se, supomos, a metade das folhas, sem perder nada daquilo que o autor pretende transmitir. A época situa-se entre as duas guerras mundiais, tendo o livro sido publicado com cortes em 1939, e depois, em versão integral, em 1942. De certa forma, Gilles, o protagonista do romance Gilles, é um alter-ego de Drieu la Rochelle. De boa presença, Gilles torna-se um alvo apetecível das mulheres (Drieu também era un dandy) e entre casamentos, aventuras e desventuras, os seus amores são geralmente todos mal sucedidos, porque Gilles tem uma obsessão de conquistar mulheres mas depois aborrece-se e larga-as (diríamos que é um pouco como Don Juan, a quem só interessa a conquista - com uma lista comparável ao "catálogo" que Leporello mostra a Donna Elvira, no Don Giovanni, de Mozart). Existem, de facto, demasiadas mulheres neste livro, e o seu número em nada contribui para a economia da obra. Há quem argumente que uma tão prolixa inclusão se deverá ao facto de Drieu (sobre quem recaíam algumas suspeitas de homossexualidade) procurar um efeito de despistagem com tantos casos amorosos pormenorizadamente descritos. É sabido que os homens que falam sistematicamente em mulheres e conquistas no feminino são em geral aqueles que pretendem ocultar a sua homofilia mental ou mesmo praticante. Raramente conseguem enganar o próximo.
Mas o leit-motiv da obra é a decadência da França. Ao longo da ficção, estão espelhados episódios reais, muitas vezes sob nomes de empréstimo. E é evidente a vontade de Drieu de que a história seguisse determinado caminho, embora não seja evidente qual, tal como o próprio Drieu hesitou e mudou várias vezes o seu percurso político. Há umas ténues referências que um judeu fundamentalista poderia tomar como anti-semitas, não mais do que isso, mas nem sequer o livro faz uma apologia do fascismo, salvo na última parte, em que Gilles se encontra em Barcelona, ao serviço das forças que apoiam Franco. A xenofobia também é irrelevante, mas os imigrantes de então eram mais do Leste do que do Norte de África e a independência da Argélia e a vaga magrebina ainda estavam distantes.
Curiosamente, ao longo das 600 páginas, tecem-se muitas considerações perfeitamente aplicáveis ao nosso tempo. E já lá vai mais de meio-século. Não tanto porque Drieu pudesse prever o destino mas porque as coisas são o que são. A "grandeza" da França, que De Gaulle não se cansava de evocar, e a centralidade do Santo Império Romano-Germânico, que custou uma guerra a Guilherme II e outra a Adolf Hitler, são realidades que permanecem em confronto e não há União Europeia que lhes valha. Depois, o resto da Europa são trocos, um pouco mais volumosos no caso da Espanha e da Itália (ambas a caminho de uma eventual desagregação). O Reino Unido só entra parcialmente nestas contas, mais ligado aos EUA do que ao Velho Continente, e a Rússia oscila entre a Europa e a Ásia.
Antes de Jean Monnet e Robert Schumann, também Drieu pensou numa Federação Europeia, mas com a predominância da Alemanha e da França. E sem o empecilho da "democracia", que, segundo o autor, foi a tragédia da III República. Daí, a eventual admiração final por Estaline, que só poderá surpreender os mais incautos.
Mesmo assim, parece mais sério alguém assumir claramente uma opção soi-disant totalitária do que defender denodadamente um regime supostamente democrático (porque formalmente o é), mas que ignora e atropela as mais elementares regras da democracia.
Muitas das figuras de políticos que Drieu caracteriza no seu livro (tal como o nosso Eça de Queiroz umas décadas antes) podem ver-se hoje nos corredores do poder seja em Portugal, na Europa ou no Mundo. Nesse aspecto, nada mudou.
À guisa de conclusão, poderia dizer que Gilles é um livro interessante mas não indispensável, e sendo considerado por muitos o opus magnum do autor, igualmente considerado um dos grandes romancistas franceses da época, não lhe vislumbro foros de grandeza, mas talvez por defeito meu. E como, confesso-o, não li as outras obras de Drieu La Rochelle, não posso estabelecer comparações.
sexta-feira, 14 de dezembro de 2012
A ACELERAÇÃO SOCIAL
O recente livro Aliénation et accélération - Vers une théorie critique de la modernité tardive (aqui na versão francesa), do filósofo alemão Hartmut Rosa, um dos mais conceituados representantes do que poderíamos chamar a quarta geração da escola de Frankfurt, é uma das obras mais inteligentes, lúcidas, estimulantes e actuais que lemos nos últimos tempos. Simplesmente notável.
Começa Rosa por se interrogar sobre o que caracteriza a modernidade? Segundo ele, a sociologia e a filosofia social podem ser entendidas como reacções a experiências de modernização. E essas formas de pensamento social emergem quando os indivíduos são confrontados com mudanças profundas do mundo em que vivem e, em particular, do tecido social e da vida social. «Dans la littérature de référence sur la modernité et la modernisation, ces changements sont interprétés et analysés en tant que processus de rationalisation (comme le diraient Weber ou Habermas), de différenciation (fonctionelle - comme l'affirment plusieurs théories, de Durkheim à Luhmann), d'individualisation (comme le soutiennent Georg Simmel à son époque et Ulrich Beck aujourd'hui) ou, enfin, en tant que domestication ou marchandisation, termes utilisés par les théoriciens, de Marx à Adorno et Horkheimer, qui portent une attention particulière à l'essor de la productivité humaine et de la raison instrumentale.»
Deixando, por momentos, de lado a sociologia clássica, e examinando a multitude (ou multidão) de reflexões sobre a modernidade no campo cultural apercebemo-nos que falta alguma coisa a essas análises. «Des auteurs et penseurs, de Shakespeare à Rousseau et de Marx à Marinetti, mais aussi de Baudelaire à Goethe, Proust ou Thomas Mann, remarquent presque invariablement (toujours avec étonnement, et très souvent avec inquiétude) l'augmentation de la vitesse de la vie sociale et, en fait, la transformation rapide du monde matériel, social et spirituel. Ainsi, en 1999, James Gleick, dans son livre Faster, observe (dès son sous-titre) l'"accélération d'à peu prés tout", tandis que Douglas Coupland, quelques années avant, présentait Génération X (dès son sous-titre) comme une suite de "contes pour une culture accélérée". Par la suite, Peter Conrad affirme dans sa volumineuse histoire culturelle que "la modernité est caractérisée par l'accélération du temps", tandis que Thomas Eriksen la définit sans détour en ces termes: "La modernisation est la vitesse."»
Antes de mergulhar nas categorias da aceleração, Hartmut Rosa refere de passagem Max Weber (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo), quando este define a ética protestante como uma disciplina temporal rigorosa que considera a perda de tempo como "o mais mortal de todos os pecados".
Para Rosa não existe qualquer modo de aceleração universal e único que acelere tudo. Ao contrário, algumas coisas ralentissent, como o trânsito num engarrafamento e outras resistem contra ventos e marés às tentativas de as fazer passar mais depressa, como as constipações. Contudo, há muitos fenómenos sociais a que o conceito de aceleração pode ser aplicado de maneira pertinente. Os atletas parecem correr e nadar cada vez mais depressa; os fast-food, o speed-dating, as sestas relâmpago e os drive-through funerals parecem testemunhar a nossa determinação de acelerar o ritmo das nossas acções quotidianas, os computadores são cada vez mais rápidos, os transportes e a comunicação pedem apenas uma fracção do tempo necessário há um século, as pessoas parecem dormir cada vez menos, e mesmo os nossos vizinhos parecem mudar-se cada vez mais frequentemente.
Observando estes fenómenos, Rosa entende que podemos separá-los em três categorias analiticamente e empiricamente distintas: a aceleração técnica, a aceleração da transformação social e a aceleração do ritmo de vida. Tendo de sintetizar, salientemos que na aceleração da transformação social o autor escreve: «Pour le moment, je veux suggérer que le changement, dans ces deux domaines - la famille et le travail - a accéléré pour passer d'un rythme intergénérationnel aux débuts de l'ère moderne à un rythme générationnel dans la "modernité classique", puis à un rythme intragénérationnel dans la modernité tardive». A faceta mais opressora e espantosa da aceleração social é talvez a espectacular e epidémica "fome temporal" das sociedades modernas (ocidentais). Na modernidade, os actores sociais sentem de forma crescente que lhes falta tempo e que o esgotam. É a aceleração do ritmo de vida (social), que pode definir-se como "o aumento do número de episódios de acção ou de experiência por unidade de tempo", isto é, a necessidade de fazer mais coisas em menos tempo.
Hartmut Rosa analisa depois as forças motrizes da aceleração social. Considera o motor social (a competição) e o motor cultural (a promessa da eternidade). Segundo Rosa, quando se procura os mecanismos que suportam os processos de aceleração e de crescimento na sociedade moderna, não há dúvida de que os princípios essenciais e as leis do lucro inerentes á economia capitalista desempenham um papel determinante. A célebre frase atribuída a Benjamin Franklin "o tempo é dinheiro" é verdadeira a esse respeito. Donde conclui que «l'accélération sociale en général et l'accélération technique en particulier sont une conséquence logique d'un système de marché capitaliste concurrentiel.». Prosseguindo, entende Rosa que os actores sociais da modernidade não são simplesmente as vítimas sem defesa de uma dinâmica aceleratória que não podem controlar; ao contrário, a força motriz da aceleração é igualmente alimentada por uma forte promessa cultural: na sociedade moderna secular, a aceleração serve de equivalente funcional à promessa (religiosa) de vida eterna. «La société moderne est séculaire au sens où l'accent est mis sur la vie avant la mort.». Segundo esta concepção da vida, «la vie bonne est la vie accomplie», ideia que já não supõe a existência de uma "vida superior" depois da morte. «Goûter la vie dans toutes ses dimensions, toutes ses profondeurs et dans sa totale complexité devient une aspiration centrale de l'homme moderne.». E ainda: «La promesse eudémoniste de l'accélération moderne réside par conséquent dans l'idée (tacite) que l'accélération du "rythme de vie" est notre réponse (c'est-à-dire celle de la modernité) au problème de la finitude et de la mort,»
No capítulo da desaceleração social, o autor escreve: «Il semble ainsi plus que probable que la crise économique actuelle ne soit rien d'autre qu'un exemple manifeste des conséquences désastreuses de la tendance de la modernité tardive à se débarasser de toutes les institutions et régulations qui pourraient garantir une stabilié á long terme (par exemple infrastructurelle) pour la planification et l'investissement: la logique du capitalisme financier en général et des banques d'investissement en particulier est estrêmement myope et orientée à court terme. Elle vise à accélérer les vitesses de rotation du capital à tout prix - érodant ainsi les conditions préalables à des investissements économiques stratégiques, à long terme, "réels" et productifs.».
Porque este texto já vai longo, e o que importa é ler o livro, limitemo-nos a mais algumas citações.
«...il est presque évident que la formulation, le filtrage et la pondération collective d'arguments sont un processus chronophage. Cela est vrai dans le monde scientifique, où l'on pourrait très bien affirmé que la vitesse et la succession des conférences et des articles sont si élevées et, pire encore, que le nombre d'articles, de livres et de revues publiées est si excessif, que ceux qui écrivent et s'expriment dans cette époque où règne le mot d'ordre "publish or perish" ("publier ou mourir") ont beaucoup de mal à trouver assez de temps pour développer correctement leurs arguments, alors que ceux que lisent et écoutent sont perdus dans une jungle de publications et de présentations répétitives et à moitié achevées.».
«Même si l'on ne suit pas Habermas à la lettre, il est indéniable que la démocratie est un processus chronophage: la formation de la volonté et la prise de décision démocratiques (délibératives) nécessitent l'identification et l'organisation de tous les groupes concernés, la formulation de programmes et d'arguments, la formation de volontés collectives et, enfin, la recherche collective des meilleurs arguments.».
«En somme, il se pourrait bien que les mots, et même pire encore les arguments (ou, comme le spécule Myerson, le medium de la signification lui-même) soient devenus trop lents pour la vitesse du monde de la modernité tardive. Les modèles capitalistes de distribuition sont donc devenus plus ou moins inaccessibles ou imperméables aux revendications de justice: alors qu'il est extrêmement difficile d'évaluer les arguments pour ou contre certains modèles de distribuition, ces modèles sont tour simplement construits et reconstruits à une vitesse désarmante par le flux des courants socioéconomiques.».
«Considérons la différence entre les modèles contemporains de reconnaissance, ainsi que les peurs de la non-reconnaissance, et ceux et celles d'une âge prémoderne. Dans une société stratifié fondée sur la primauté de la propriété, les modèles de distribuition et de reconnaissance étaient préfixés: les positions, les privilèges, le statut et la reconnaissance que quelqu'un gagnait étaient plus ou moins définis par sa naissance. Un roi, un duc, un moine, un soldat ou un pauvre: tous avaient une part prédéfinie (statut, droits, privilèges, devoirs) sur une carte de distribuition structuré quasi ontologiquement. Il était donc possible d'être exclu de beaucoup de biens et de privilèges, et cette exclusion était due à la façon (fondé ontologiquement) dont fonctionnait le monde. Une lutte pour la reconnaissance (dans le monde macrosocial) était seulement possible en tant que lutte contre les structures sociales existantes et ne faisait donc probablement pas partie des préocupations quotidiennes.
«Aujourd'hui, il ne suffit pas d'atteindre des positions préfixées dans un jeu de compétition: les emplois et les familles ne durent pas toute la vie, ni les affiliations politiques et religieuses. Ainsi, il ne suffit pas d'être un directeur, un patron de presse ou un professeur (en haut du système de strates sociales) ou un employé de nettoyage, un vigile ou un concierge (vers le bas): la reconnaissance (et tout ce qui va avec: richesse, sécurité, privilèges, etc.) est distribuée en fonction de la performance; un directeur qui a de mauvais résultats selon les rapports d'activité trimestriels, un patron de presse dont les ventes dégringolent ou un professeur qui ne publie pas assez régulièrement dans les meilleures revues perdent sans cesse du terrain - et peuvent être mis á la porte tôt ou tard. Et même les employés de nettoyage et les concierges sont embauchés avec des contrats temporaires et obtiennent de nouvelles missions en fonction de leur performance.».
«Les positions que vous atteignez sont importants pour vos chances de conserver ou de gagner l'estime sociale - mais vous ne pouvez jamais les considérer comme certaines, et vous ne pouvez jamais être sûrs que ces positions resteront valables demain.».
Muito importantes as considerações sobre a aceleração como uma nova forma de totalitarismo.
«L'hypothèse que je voudrais défendre ici est que, en réalité, l'accélération sociale est devenue une force totalitaire interne à la société moderne et de la société moderne elle-même, et qu'elle doit donc être critiquée comme toutes les formes de domination totalitaire.».
«Je suggère que nous puissons considérer comme totalitaire un pouvoir lorsque a) il exerce une pression sur les volontés et les actions des sujets; b) on ne peut pas lui échapper, c'est-à-dire qu'il affecte tous les sujets; c) il est omniprésent, c'est-à-dire que son influence ne se limite pas à l'un ou l'autre des domaines de la vie sociale, mais qu'elle s'étend à tous ses aspects; et d) il est difficile ou presque impossible de le critiquer et de le combattre.».
«Nous appellerions évidemment "totalitaire" un régime qui amène ses sujets à se réveiller la nuit, en proie à une peur terrible et à une sensation de pression dans la poitrine - s'attendant à mourir dans la seconde, le coeur battant et le front ruisselant de sueur froide. Pourtant, nous pouvons être assez certains qu'il y a davantage de personnes qui se réveiilent toutes les nuits dans ces conditions précises dans les pays développés et soi-disant libres que dans, disons, l'Irak de Saddam Hussein ou même la Corée du Nord actuelle. Même les dictatures politiques brutales ne remplissent presque jamais complètement les conditions b, c et d. Il est toujours possible d'une manière ou d'une autre de résister, de se battre ou au moins de s'évader et d'échapper même aux services secrets des tyrans.».
Na linha de pensamento de Hartmut Rosa, poderíamos afirmar que, efectivamente, os regimes ditos "democráticos" do mundo ocidental são mais totalitários do que os regimes ditos "ditatoriais" da Coreia do Norte, da Síria ou do Iraque do tempo de Saddam Hussein.
«Bien au contraire, la politique "progressiste" - si le terme garde encore le moindre sens en 2010 - est aujourd'hui caracterisée par la volonté politique de ralentir les transactions et développements technologiques et économiques afin d'établir ou de conserver un peu de contrôle politique sur la direction et le rythme de la société (par exemple à travers des instruments comme la taxe Tobin). En revanche, les "conservateurs" libéraux optent de nos jours pour une accélération des processus socioéconomiques et technologiques par la réduction du contrôle politique. Nous trouvons, dans cette inversion du marqueur temporel de la politique entre progressiste et conservateur, une illustration claire de la désynchronisation entre la poliique et les sphères techno-économiques de la société, et donc du fait que l'idée d'organisation politique s'est transformée, passant d'un instrument de dynamisation sociale, aux débuts de la modernité et pendant la modernité classique, à un obstacle, ou à une nuisance, empêchant d'accélérer encore plus, dans les conditions de la modernité tardive. En conséquence de quoi le projet néoliberal des deux décennies entourant l'an 2000 a en fait poursuivi la politique d'accélération de la société(et en particulier des flux de capitaux) en réduisant ou même en éradiquant le contrôle ou l'organisation politiques - à travers des mesures de dérégulation, de privatisation et de justification.».
«Mais une désynchronisation nocive n'apparaît pas seulement entre l'économie et les autres sphères de la vie sociale, elle apparaît aussi à l'intérieur même de l'économie: ainsi, l'accélération rapide des marchés financiers après les révolutions politique et numérique, autour de l'année 1989, a clairement mené à une rupture nette entre les vitesses en constante augmentation de l'investissement et du capital, d'une part, et le rythme tranquille de l'économie "réelle", c'est-à-dire de la production et de la consommation réelles, d'autre part. Comme nous le savons tous, ceci a eu comme résultat en 2008 la plus grave crise financière et économique depuis 1930. Tandis que les transactions économiques ou financières peuvent être accélérées presque indéfinement, il n'en va pas de même de la production et de la consommation: vous pouvez réaliser des profits en achetant et en revendant des actions en quelques fractions de seconde, mais il n'y a pas d'équivalent en ce qui concerne la production réelle - et, de même, vous pouvez acheter des biens et des services en quelques secondes, mais vous ne pouvez pas les consommer en quelques secondes. Il semble donc exister un fossé temporel se creusant toujours un peu plus entre l'achat et la consommation (pensez par exemple au fossé tempotel entre le fait d'acheter un livre et le fait de le lire, ou entre l'achat d'un télescope et son utilisation). Cette forme de désinchronisation culturelle fournit selon moi un point de départ particulièrment fructueux pour la réintroduction d'un concept de faux besoins dans la Théorie critique contemporaine.».
«Nous ne sommes jamais capables d'arriver à la fin de notre liste de choses à faire; en fait, la distance qui nous sépare du bas de la pile augmente presque quotidiennement. Ainsi, les gens qui travaillent dans le secteur du conseil aux dirigeants et aux élites, ainsi qu'un nombre croissants de "coachs", rapportent que l'un de leurs défis principaux est d'apprendre à leurs clients à accepter le fait qu'ils ne sont jamias capables de diminuer la liste des tâches qu'ils ont à accomplir, ou d'arriver à la fin de leur messagerie électronique, et d'interpréter ceci comme quelque chose de normal et de sain. Cela rappelle les psychologues qui travaillent sur les complexes de culpabilité des gens qui ont été élevés dans un environnement religieux restrictif. On a blâmé les Églises (souvent, bien sûr, pour de trés bonnes raisons) pendant des siècles pour avoir surchargé les fidèles de sentiments de culpabilité et de honte ("mea culpa, mea maxima culpa"). Pourtant, elles fournissaient également quelques moyens d'espoir et de soulagement. Premièrement, elles nous apprennent que l'homme est coupable par nature, et que notre faiblesse ne relève donc pas d'un échec individuel, et deuxièmement que Jésus-Christ est mort pour nos péchés: aussi coupables que nous puissons être, il y a de l'espoir. Et enfin, comme nous le rappelle Weber, dans l'institution de la confession et de l'absolution, l'Église catholique donnait au moins à ses ouailles un moyen de se soulager de ces sentiments de culpabilité. Ce n'est pas le cas de la société moderne: elle produit des sujets coupables sans possibilité de rémission ni de pardon. Nous devons payer le prix de tous nos défauts et de nos échecs, et la masse croissante de tous ceux qui sont exclus de la roue des hamsters par le chômage nous rappelle combien ce prix peut être élevé.».
«En effet, le capitalisme semblait être un système économique culturellement acceptable à la seule lumière de la conviction profonde - propagée et partagée par ses partisans, d'Adam Smith à Milton Friedman - qu'il finirait par devenir si productif et si fort que les êtres humains seraient enfin libres de poursuivre leurs projets de vie individuels, leurs rêves, leurs valeurs et leurs buts sans être menacés par les épées de Damoclès du manque, du déclin et de l'échec. L'accélération et la compétition pouvaient ainsi être considérées comme des moyens d'atteindre l'autodétermination. On l'aura compris, ma thèse est que cette promese n'est plus crédible dans la "société de l'accélération" moderne tardive. Le pouvoir de l'accélération n'est plus perçu comme une force libératrice, mais plutôt comme une pression asservissante.».
«Politiquement, il est devenu évident aujourd'hui que la pauvreté et le manque ne peuvent pas être vaincus dans une économie capitaliste. Les réformes politiques du XXIe siècle ne servent pas à amèliorer les conditions sociales et à modeler la politique selon des buts culturels et sociaux définis démocratiquement. Le but presque unique de l'organisation politique est plutôt de maintenir ou de rendre les sociétés compétitives, de soutenir leurs capacités à l'accélération.»
«Je veux suggérer ici que l'aliénation peut être définie préliminairement comme un état dans lequel les sujets poursuivent des buts ou suivent des pratiques que, d'une part, aucun acteur ou facteur externe ne les oblige à suivre - il existe des options alternatives possibles - et que, d'autre part, ils ne désirent ou n'approuvent pas "vraiment".»
«De façon similaire, en politique, l'aliénation peut émerger lorsque nous décidons de participer à une guerre que nous ne sentons pas vraiment justifiée (et que nous ne voulons pas "vraiment"), ou lorsque nous soutenons des politiques de renforcement de l'industrie automobile contre toute raison écologique: à chaque fois que nous faisons "volontairement" ce que nous ne voulons pas vraiment faire.».
«Pour le jeune Marx, une quintuple aliénation de l'homme résultait du mode de production capitaliste: aliénation par rapport à ses actions (au travail), à ses produits (aux choses), à la nature, aux autres êtres humains (au monde social) et, au bout du compte, par rapport à lui- ou elle-même.».
«Cependant, comme Paul Virilio et beaucoup d'autres l'ont observé, à l'âge de la "mondialisation" numérisée, la proximité sociale et la proximité physique sont de plus en plus séparées: ceux qui sont proches de nous socialement n'ont plus besoin d'être proches de nous physiquement, et vice-versa.».
«Avec ma vieille radio portative, je savais comment régler l'heure, avec la nouvelle, je ne sais pas; je n'ai jamais pris le temps de le découvrir. À l'époque des cassettes, je savais comment enregistrer une chanson à la radio, avec les nouvelles technologies, je ne sais pas. Avec mon vieux téléphone portable, je savais comment changer la sonnerie, mais pas avec le nouveau.».
«Ainsi, alors que les choses deviennent plus compliquées, je deviens plus stupide en ce qui les concerne; en fait, je perds certaines de mes connaissances culturelles et pratiques. Ceci est une conséquence naturelle de la dévaluation incessante de l'expérience par l'innovation. Je deviens également aliéné par rapport aux choses que je possède, au sens où je me sens mal parce que je ne les traite pas bien.».
«J'étais vraiment familiarisé au vieux programme Word-pour-DOS. J'en connaissait chaque option, chaque petit truc. Je pouvais faire tout ce dont j'avais besoin, J'étais également assez familier du système XP: je savais bien m'en servir sur la base de mes besoins quotidiens. Mais je me sens totalement illettré face à ma nouvelle interface Vista: je ne sais plus comment utiliser les raccourcis, comment insérer des graphiques et des tableaux, etc. En résumé: le nouveau logiciel et moi, nous demeurons véritablement aliénés l'un par rapport à l'autre, et la même chose se produit avec ma nouvelle montre, mon nouvel iPod (bon, pour être honnête, je n'utilise pas d'iPod, mais je ne comprends pas mon nouveau baladeur), mon nouveau micro-ondes.».
«L'aliénation émerge habituellement du fait que nous ne trouvons jamais le temps de nous informer réellement au sujet des choses qui sont le point de nous concerner. Chaque manuel, chaque contrat que nous signons (particulièrement sur Internet) et chaque comprimé que nous prenons impliquent d'abord l'avertissement "Merci de lire attentivement les informations suivantes avant d'effectuer quoi que ce soit" - et bien sûr nous ne lisons jamais (complètement) le manuel, le contrat et les "conditions générales", ou la notice du médicament, avant de les utiliser. Ainsi, la surcharge d'information est l'une des raisons de notre sentiment d'aliénation (que nous l'appelions ainsi ou pas) dans le monde moderne.».
«Nous possédons davantage de livres, de CD, de DVD, de télescopes, de pianos, etc., que jamais auparavant, mais nous ne pouvons pas les digérer. Puisque la "digestion" demande trop de temps et que nous ressentons un besoin impérieux et croissant de ratrapper le retard temporel, nous compensons de plus en plus la consommation irréalisé à travers le shopping.»
«Ainsi, dans un sens, l'accélération mène simplement et directement d'abord à la désintégration, puis à une érosion de l'attachement: nous échouons à intégrer nos épisodes d'action et d'expérience (et les marchandises que nous acquérons) à la totalité d'une vie, et par conséquent nous sommes de plus en plus détachés, ou désengagés, des temps et des espaces de notre vie, de nos actions et de nos expériences, et des choses avec lesquelles nous vivons et nous travaillons. Il n'est pas surprenant que cela soit valable également pour le monde social. Comme Kenneth Gergen l'a dit de façon convaincante, l'être de la modernité tardive rencontre tant d'autres personnes (dans le trafic, au téléphone, par e-mail, etc.) en si peu de temps qu'il est complètement "saturé".».
«Le fait que l'autoaliénation soit donc un danger imminent dans la société de l'accélération moderne tardive est presque évident à partir de ce que j'ai montré jusqu'à maintenant. Si nous sommes aliénés par rapport à l'espace et au temps ainsi que par rapport à nos propres actions et expériences et par rapport à nos partenaires d'interaction, nous ne pouvons que difficilement échapper à une sensation de profonde aliénation de soi.».
«Ce qui pourrait très facilement mener à l'"épuisement de l'être" ou même au burn-out et à la dépression, comme Alain Ehrenberg le suggère.».
«Pour les sujets de la modernité tardive, le monde (qui inclut le moi) est devenu silencieux, froid, indifférent ou même repoussant. Cela indique cependant l'existence d'une forme d'aliénation très poussé si la "réactivité" dans la relation moi-monde est l'"opposé" adéquat de l'aliénation. Ce dont nous avons besoin, bien sûr, est un examen poussé de ce à quoi pourrait ressembler une forme de vie non aliénée, dont, jusqu'ici, je ne dispose pas même d'une esquisse.».
«L'idée que nous soyons réduits à lancer un appel dans le monde et à attendre une réponse que nous pourrions bien ne jamais obtenir est non seulement à la racine des analyses existentialistes de l'absurde, comme chez Camus, mais elle est également au coeur du concept d'aliénation du jeune Marx, de l'inquiètude de Weber au sujet du désenchantement, de l'analyse de l'anomie par Durkheim, de l'analyse de la réification chez Lukács (et chez Marcuse ou Honneth) et de la crainte d'Adorno et Horkheimer d'une domination complète de la raison instrumentale.».
No fim, uma palavra de advertência:
«Si vous croyez par exemple que Satan se cache à tous les coins de rue, vous pouvez commencer à considérer le monde comme un endroit hostile.».
Se bem interpretamos Hartmut Rosa, o mundo actual, na generalidade, é um local onde já não apetece viver.
Alongámo-nos mais do que o previsto, mas as citações a que procedemos pareceram-nos indispensáveis, quer objectivamente, quer no que respeita às nossas próprias preocupações pessoais.
Este é um dos livros mais importantes que lemos nos últimos anos. É de uma percuciente actualidade e, premonitoriamente, põe-nos de sobreaviso quanto ao que o futuro nos reserva ou poderá reservar. Além do mais, sendo obra de um conceituado filósofo, está escrito de forma absolutamente acessível e não numa linguagem hermética, de difícil penetração. Honra ao autor e, obviamente, também ao tradutor.
Os interessados na matéria, para quem as citações são insuficientes e forçosamente avulsas em relação ao contexto geral, e nem poderia ser de outra forma, a menos que transcrevêssemos o livro inteiro, deverão ler rapidamente esta obra, pois nem sequer é um "tijolo", tem apenas 150 páginas.
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