terça-feira, 23 de abril de 2024

A GUERRA NO DONBASS

O jornalista Bruno Amaral de Carvalho publicou há alguns dias um livro sobre a sua experiência de repórter de guerra na Ucrânia, A Guerra a Leste. Durante oito meses, o autor fez a cobertura da guerra no Donbass, sendo durante muito tempo o único jornalista português no teatro do conflito, do lado "separatista". Mais tarde haveria de juntar-se-lhe o jornalista Luís Peixoto, da Antena 1.

Em todas as guerras é fundamental conhecer os relatos de ambas as partes envolvidas nas hostilidades, a fim de se poder ajuizar da objectividade dos mesmos, já que em confrontações militares a primeira vítima é sempre a verdade.

Acontece que desde a invasão da Ucrânia, e devido à insuportável Ursula ter determinado a proibição na União Europeia de todos os canais russos de difusão de notícias, passámos a ter apenas conhecimento da narrativa “ocidental” divulgando a “verdade oficial”, ainda que soubéssemos (sabe-se sempre) que aquela não correspondia inteiramente à “verdade dos factos”.

Este livro devolve-nos, com grande lucidez, uma informação equilibrada, narrando aquilo que já suspeitávamos, mas agora com informação alicerçada numa testemunha ocular dos acontecimentos. Será essa informação isenta? Decorre da leitura do livro que ela é muito mais consentânea com a realidade do que o relato que nos tem sido veiculado desde Fevereiro de 2022.

A operação militar russa foi iniciada há mais de dois anos e esta obra refere-se tão só a oito meses de combates, mas permite avaliar a veracidade de muitos acontecimentos e a forma distorcida como nos foram apresentados.

Tenho dito e escrito que esta guerra é, mais do que qualquer outra, uma guerra inútil, onde o verdadeiro sacrificado é o povo ucraniano. E que o número de mortos ultrapassa largamente o que seria razoável (e nenhum morto seria razoável) para os interesses em questão.

O estabelecimento das fronteiras da Ucrânia foi efectuado de forma arbitrária em circunstâncias profundamente distintas das actuais. Quando da implosão da União Soviética não houve a preocupação de proceder ao reajustamento das mesmas de acordo com a nova situação estratégica, agora radicalmente diferente.

O Donbass foi incorporado na Ucrânia em 1918, por vontade de Lenin e contra a opinião de alguns dos seus colegas no governo da União Soviética, devido a ser uma importante zona industrial que equilibraria a extensa superfície agrícola do resto do país.

Além das centenas de milhares de mortos, feridos, estropiados, das destruições de casas e de instalações civis, e obviamente militares (para não falar dos milhões de exilados noutros países desde o começo da invasão, ou mesmo antes) acresce uma consequência trágica que é a desavença das famílias, com a quebra de laços afectivos que perdurará por longo tempo.

A Ucrânia é um mosaico étnico, religioso, linguístico e ideológico que pôde funcionar regularmente durante o período soviético. O desmoronamento da URSS foi, nas palavras de Vladimir Putin, a “maior catástrofe geopolítica do século XX”. A guerra na Ucrânia é uma das consequências.

Estou certo de que o cumprimento dos Acordos de Minsk, celebrados entre a Rússia e a Ucrânia, com a participação da França e da Alemanha, teria evitado esta guerra. Esses Acordos estipulavam, no essencial, duas coisas: a não adesão da Ucrânia à NATO (o que é compreensível em termos geoestratégicos) e a regionalização do país (o que permitiria nas zonas de Leste a utilização da língua russa, a manutenção dos antigos costumes, a obediência ao Patriarca Ortodoxo de Moscovo, etc.) Note-se que Volodymyr Zelensky promoveu a criação de um Patriarcado Ortodoxo autónomo em Kiev, para se subtrair à autoridade espiritual do Metropolita moscovita.

A guerra que se trava na Ucrânia é, como toda a gente há muito tempo percebeu, uma guerra entre a Rússia e o Ocidente colectivo, em que os ucranianos são utilizados como “mão-de-obra” descartável ao serviço de interesses que já nem são inconfessáveis. É por isso profundamente imoral.

O que custa a compreender neste conflito, que não data de 2022, nem sequer de 2014 (a revolta de Maidan) mas desde a revolução laranja de 2004, é a submissão total da Europa aos negócios norte-americanos. Nunca o Velho Continente abdicara por completo da sua soberania, embarcando numa aventura de contornos mal definidos e envolvendo riscos de proporções inimagináveis. Apesar da propaganda sistematicamente difundida pelos Governos “ocidentais”, os povos europeus mostram-se contudo cada vez mais cépticos em continuar a acreditar na versão oficial.

Até quando abusarão eles da nossa paciência, e das nossas vidas?

 

domingo, 7 de abril de 2024

OS MALEFÍCIOS DOS ESTADOS UNIDOS

Em 2002, o jornalista e professor Peter Scowen (n. 1959) publicou Black Hole of America, que foi editado nesse mesmo ano em português com o título O Livro Negro da América. Pesquisando na Amazon, este título desapareceu, existindo um outro livro do autor, com o título Rogue Nation: The America the Rest of the World Knows, editado em 2003, e que suponho ser a mesma obra com outra designação e eventualmente actualizada. Mas continuam a estar disponíveis, nos vários sites da Amazon, traduções do livro original, pelo menos em francês e em italiano.

Nesta obra, o autor analisa as intervenções políticas, militares, económicas, sociais, directas e indirectas, dos Estados Unidos em diversos países, com a exclusiva finalidade de afirmar ou consolidar os interesses americanos, ou aquilo que as administrações estadunidenses (democratas ou republicanas) supõem ser os seus interesses. Às vezes enganam-se. 

O texto de Peter Scowen está exaustivamente documentado com a inclusão, em apêndice, de todas as fontes que suportam as suas afirmações.

O autor desenvolve, com detalhe, as intervenções americanas na Nicarágua, Honduras, Guatemala e Chile. Sem esquecer o Vietname, a Malásia, o Camboja, o Sudão. Dedica especial atenção ao bombardeamento (inútil) de Hiroshima e Nagasáqui, a primeira (e até hoje única) vez que foi utilizada uma bomba nuclear. Alude à interferência no Irão para depor Mossadegh. Refere a guerra da Coreia e a guerra (a primeira) do Golfo. E o incentivar da guerra entre o Iraque e o Irão. 

São mencionados os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 e a Cruzada contra o Mal desencadeada por George W. Bush. E a forma como o terrorismo, agora já não o comunismo, justificou levar a cabo no estrangeiro actividades muito questionáveis. 

Dada a data em que o livro foi escrito, o autor menciona a invasão do Afeganistão mas não a do Iraque, que só teve lugar em 2003 e propiciou a criação do "Estado Islâmico". Nem a da Líbia, nem a interferência na Síria ou o apoio às chamadas "primaveras árabes". 

O fundamentalismo americano, só comparável ao fundamentalismo islâmico, levou Bush a considerar que o Irão, o Iraque e a Coreia constituíam um Eixo do Mal. A propagação das igrejas baptistas, metodistas e demais seitas evangélicas contribui largamente para esta mentalidade falsamente puritana que se julga detentora da única verdade e da sua superioridade moral sobre os restantes países do mundo.

É dedicado um capítulo especial à análise das eleições presidenciais americanas de 2000, cujo processo eleitoral foi manipulado por ambos os candidatos, George W. Bush e Al Gore, ainda que pareça ter sido Al Gore o vencedor e não o filho do ex-presidente George Bush. O processo é descrito minuciosamente e apontadas todas as deficiências da máquina eleitoral americana, susceptível das mais assombrosas manobras. 

O autor debruça-se ainda sobre a maneira como o estilo de vida e pensamento norte-americanos se têm introduzido progressivamente nos outros países, através do cinema e da televisão, da música e da forma de vestir, das tecnologias e da alimentação. É recordado, a propósito, o livro de Benjamin R. Barber (1995), Jihad vs. McWorld: How Globalism and Tribalism Are Reshaping the World. Mas existem muitas obras sobre este tema. Convém citar este parágrafo do livro, página 231: «A única defesa contra este imperialismo cultural é o nacionalismo, que tanto pode expressar-se no benigno e ligeiramente hipócrita antiamericanismo francês ou, de uma forma muito mais perigosa, no enraivecido fanatismo racial de Usama bin Laden e do defunto e nada lamentado governo talibã do Afeganistão. No mundo de George W. Bush, as duas únicas escolhas possíveis são entre a McDonald's e bin Laden; entre o bem do capitalismo e da globalização e o mal do terrorismo; entre o acesso sem restrições dos gigantes dos media americanos às cadeias de televisão e às salas de cinema estrangeiras e o Ministério do Vício e da Virtude dos talibãs.»

Poderia transcrever centenas de parágrafos, poderia mesmo transcrever integralmente o livro mas tal não é possível. Tendo sido publicado há vinte e dois anos este livro mantém plena actualidade e só é pena que, dado o intervalo de tempo, não estejam registados os acontecimentos das últimas duas décadas como, por exemplo, o conflito na Ucrânia que, na sua forma militar, já se arrasta há mais de dois anos. 

Para os interessados nas tentativas (grande parte com êxito) dos Estados Unidos, desde a Segunda Guerra Mundial, para controlarem o planeta, impondo uma só verdade, o livro em apreço (muito bem escrito, e bem traduzido) é de inestimável utilidade.