sábado, 31 de dezembro de 2022

TUT-ANKH-AMUN (2)

Acabei de ler Tutankamon - Faraó, Ícone, Enigma (2022), na edição original Tutankhamun - Pharaoh, Icon, Enigma, de Joyce Tyldesley, que comprara no mês passado, juntamente com Tutankhamon e o Túmulo que Mudou o Mundo, de Bob Brier, que já comentei neste blogue.

O livro de Joyce Tyldesley é mais interessante que o de Bob Brier e está mais bem escrito e mais bem traduzido, apesar de ambos utilizarem o sinistro Acordo Ortográfico 90. Encontra-se dividido em duas partes: I - Tebas, 1336 A.C.; II - Luxor, 1922 D.C., isto é, consagra a primeira parte à vida de Tut-Ankh-Amun e a segunda parte à descoberta do seu túmulo.

Registarei aqui apenas algumas notas, não só pela impossibilidade de mencionar o essencial como pelo facto dos principais acontecimentos serem já do conhecimento generalizado. 

Trata-se de uma história que anda em torno do faraó Amenhotep (ou Amenófis) IV, pelo facto de ter reduzido quase ao silêncio o culto de Amon e dos principais deuses egípcios, introduzido o culto do disco solar Aton, assumindo o nome de Akhenaton (Espírito vivo de Aton), e construído em Tell el-Amarna (ou simplesmente Amarna) uma nova capital denominada Akhetaton (Horizonte de Aton). Por isso foi amaldiçoado pelos seus sucessores e o seu nome praticamente desapareceu da História até ao século passado. 

Ocorre que Tut-Ankh-Amun, filho de Akhenaton, e que foi chamado, ao nascer, Tut-Ankh-Aton (Imagem viva de Aton) decidiu, ou foi obrigado a, regressar ao culto de Amon, alterando, em conformidade o seu nome. Escrevo, por hábito, Tut-Ankh-Amun mas poderia escrever Tut-Ankh-Amon ou Tut-Ankh-Amen, uma vez que as vogais, no egípcio antigo (tal como no árabe) são omitidas na escrita corrente. Mas já me parece menos correcto que o tradutor utilize Tutankamon, suprimindo o "h", já que a palavra "ankh", com "h", em escrita hieroglífica significa "vida".

O faraó Tut-Ankh-Amun terá nascido em Amarna, ainda em vida de seu pai, e só mais tarde, após regressar ao culto antigo de Amon, se mudou para a anterior capital, Tebas. Como é sabido, Amarna foi destruída quase completamente, para que não restasse notícia do faraó ímpio, e só no século transacto, em escavações diligentes, foram encontrados alguns vestígios desse passado longínquo, entre os quais o célebre busto da Grande Esposa Real, Nefertiti, (mulher de Akhenaton), que se encontra hoje no Neues Museum, em Berlim.

Sabemos que, mesmo durante o período de Amarna, Akhenaton permitiu a prossecução de alguns cultos antigos, como o de Ptah, em Mênfis, e o de Ra, em Heliópolis, já que a sua luta era contra o deus Amon, e em especial contra os seus sacerdotes, que controlavam uma parte da riqueza nacional. O templo de Amon, em Tebas, foi então encerrado.

É habitual considerar-se Akhenaton como um precursor do Moisés bíblico, criador da primeira religião monoteísta, mas não é bem assim. Esclarece-nos a autora: «Akhenaton não era um monoteísta, como eles supuseram. Era um henoteísta, que reconhecia vários deuses, mas só prestava fidelidade a um. E, embora a luz do Sol [Aton] estivesse inegavelmente disponível para todos, a religião estava longe de ser democrática. Akhenaton exercia um controlo apertado sobre o acesso ao seu deus, assegurando que a luz de Aton, particularmente dadora de vida - retratada como uns longos raios encimados por umas mãos minúsculas que empunham o ankh da vida -, estava reservada somente para a família real.» (p. 53). 

Já nesta I Parte, e depois na II Parte, Tyldesley avança com algumas ligações genealógicas, primeiro muito confusas e depois mais concretas, embora não se possam considerar definitivas. O estabelecimento de relações de parentesco dos familiares do rei Tut tem sido facilitado nos últimos anos pelos exames radiológicos e magnéticos das múmias disponíveis, embora subsistam dúvidas consistentes.

No estado actual dos estudos o que se afigura mais provável é o seguinte: Akhenaton é filho de Amenhotep III e da rainha Tiy (irmã do futuro faraó Ay); Tut-Ankh-Amun é filho de Akhenaton e da rainha Kiya (mas não da Grande Esposa Real Nefertiti; Tut-Ankh-Amon casou com Ankhesenpaton (depois Ankhesenamon) sua meia-irmã, filha de Akhenaton e de Nefertiti; Smenkhkare, que sucedeu no trono a Akhenaton e precedeu Tut-Ankh-Amun, é filho de Akhenaton e da rainha Kiya e irmão de Tut-Ankh-Amon, e segundo a famosa egiptóloga britânica Christine El-Mahdy (em livro que já comentei anteriormente), manteve uma relação homossexual com seu pai, que o fez co-regente e depois seu sucessor; Smenkhkare casou com sua meia-irmã Merytaton, que era filha de Akhenaton e de Nefertiti; Ay, filho de Yuya e de Thuya, casou com Tey, considerada a ama de leite de Nefertiti, mas poderá ter sido o próprio pai de Nefertiti. 

São os seguintes os faraós da XVIII Dinastia: Ahmés (1539-1514) - Amenhotep I (1514-1493) - Tutmés I (1493-1482) - Tutmés II (1482-1479) - Hatchepsut (1479-1458) - Tutmés III (1479-1425) - Amenhotep II (1425-1398) - Tutmés IV ( 1398-1388) - Amenhotep III (1388-1349) - Amenhotep IV/Akhenaton (1349-1333) - Smenkhkare/Neferneferuaton (uma rainha que poderá ter sido uma esposa de Smenkhkare) (1333-1330) - Tut-Ankh-Amon (1330- 1320) - Ay (1320-1310) - Horemheb (1310-1295)

Como todos os faraós, Tut tinha cinco nomes: Nome de Hórus; Nome de Duas Damas; Nome Dourado de Hórus; Prenome ou nome do Trono: rei do Alto e Baixo Egipto Nebkheperure (Senhor das Manifestações de Re); Nome pessoal: Tut-Ankh-Aton (imagem vviva de Aton), depois alterado para Tut-Ankh-Amon (Imagem viva de Amon). O seu penúltimo nome, Nebkheperure, é o nome pelo qual o povo o conhecia. 

Na sua época áurea, Amarna chegou a ter 50 000 habitantes, mas com a morte de Akhenaton e com o restabelecimento do culto de Amon, a população começou a declinar, primeiro pelo abandono das classes mais importantes, depois pelo resto dos residentes. E também os mortos que haviam sido sepultados no Real Wadi (local especial de necrópoles na vizinhança da cidade) foram progressivamente transferidos para o Vale dos Reis. Entre eles Akhenaton, Nefertiti (presumivelmente), Smenkhkare, Meketaton, Kiya, Tiy, etc. Terão ficado inicialmente alojados no KV 55. A sigla KV (Kings' Valley) seguida de um número, foi aplicada pelo egiptólogo John Gardner Wilkinson em 1827, que numerou os 21 túmulos até então descobertos no Vale dos Reis, pintando a tinta na entrada essa designação e o número atribuído.

Depois do regresso ao culto de Amon, e da destruição dos efémeros templos de Akhenaton a Aton, foram restaurados alguns templos tradicionais que tinham sido vandalizados, como o de Tot, em Hermópolis Magna, o de Ra (ou Ré) em Heliópolis, ou o de Ptah, em Mênfis.

Seguindo um precedente estabelecido no início da XVIII Dinastia, a sepultura ficava separada do templo funerário - a "Mansão de Milhões de Anos" - e embora fisicamente separados formavam uma unidade, e o ka que vivia com a múmia conseguia passar magicamente entre os dois. O templo mortuário de Tut desapareceu há muitos séculos, mas é provável que fosse próximo do arruinado templo de Ay e Horemheb, ou até que esse templo seja o de Tut readaptado ao novos utilizadores. Talvez até Ay tenha transferido o culto mortuário do antecessor para a Mansão de Nebkheperure na margem oriental. Tut começou a construir o seu túmulo ainda em Amarna, mas depois tudo mudou. O embalsamamento de Tut deve ter ocorrido no KV 54, próximo do túmulo de Hatchepsut. 

Abro um parêntese no meu comentário ao conteúdo do livro para salientar que na extensa bibliografia indicada no fim do volume não figura qualquer autor francês?!?

Os trabalhadores que construíam os túmulos no Vale dos Reis habitavam na proximidade, em Deir el-Medina. Era uma aldeia de operários que era pertença do estado e fora propositadamente construída para eles. Com o fim do Império Novo, o seu trabalho acabou e os os trabalhadores progressivamente desapareceram. Mas as casas, construídas em local fisicamente apropriado, sobreviveram em espantosa conservação. [Eu já visitei o local e guardo as melhores recordações].

Aquando da descoberta do túmulo de Tut, foi criado um laboratório para análise das peças retiradas da sepultura, que ficou instalado no túmulo de Seti II (KV 15). Também os almoços diários de Carter com os colaboradores durante as escavações tinham lugar no túmulo de Ramsés XI (KV 4).

A história da maldição dos faraós, ainda hoje muito comentada, começou a circular depois da morte de Lord Carnarvon, no Egipto. Ele fora mordido por um mosquito e, dias mais tarde, ao barbear-se, cortou-se e a ferida infectou. Como morreram, em circunstâncias diversas, algumas pessoas que tinham estado ligadas à descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amun, criou-se essa lenda, que decorreria de uma inscrição gravada no túmulo de Tut. Mas tudo não passa de um disparate, que terá rendido bom dinheiro a jornalistas e autores que propagaram a estória.

Lord George Edward Stanhope Molyneux Herbert, 5º Conde de Carnarvon (1866-1923), era possuidor de uma razoável fortuna que lhe permitiu custear as escavações de Howard Carter no Vale dos Reis, mas contribuiu também para a sua confortável situação financeira o facto de ter casado com Almina Wombwell, filha natural do banqueiro Alfred de Rothschild, que recebeu como dote 500 mil libras (o equivalente, em 2021, a 70 milhões de libras), além de uma renda anual de 12 mil libras da época, e do pagamento de todas as dívidas contraídas ao jogo pelo futuro marido.

Depois da morte de Carnarvon, a viúva, que não tinha qualquer interesse no Antigo Egipto, cumpriu todos os compromissos do marido relativos à conclusão da exumação do túmulo de Tut-Ankh-Amun.

No ano que hoje termina, e no qual se comemorou o centenário da descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amon, faraó sobre o qual existe imensa bibliografia, seja-nos permitido invocar Amon, Aton e todo o Panteão egípcio para que nos inspirem na vida terrena e, para os crentes, na vida do Além, as sábias virtudes que permitiram ao antigo povo Egípcio marcar um inolvidável lugar na História.


sábado, 17 de dezembro de 2022

TUT-ANKH-AMUN

Comprei há alguns dias duas traduções portuguesas de obras inglesas sobre Tut-Ankh-Amun, editadas, ao que suponho, a propósito do centenário da descoberta do túmulo deste faraó, o único que chegou (quase) intacto até ao nosso tempo.

Embora receoso da qualidade das traduções, arrisquei. Acabei, agora, de ler uma delas. Trata-se de Tutankhamon e o Túmulo que Mudou o Mundo (Tutankhamun and the Tomb That Changed the World) (2022), de Bob Brier.

Tinha lido deste autor, há vinte anos, um livro sobre o assassinato de Tut-Ankh-Amun, obra de carácter mais "policial" e desconhecia que ele seja hoje considerado um dos maiores egiptólogos e especialista em múmias.

O texto que acabei de ler é longo e confuso. Uma parte das informações consta já da célebre obra publicada por Howard Carter, que descobriu a sepultura. Brier acrescenta-lhe algumas informações complementares, não discriminadas exaustivamente por Carter, e acrescenta-lhe as pesquisas que foram realizadas após a publicação de Carter, por outros especialistas contemporâneos de Carter ou posteriores, incluindo as radiografias e tomografias sobre o esqueleto do faraó, o Projecto Múmia Egípcia.

Lamento dizer que a tradução é deficiente e que as transliterações dos nomes é surpreendente. Escrever Tutankhamon, em vez de Tut-Ankh-Amun ou Tut-Ankh-Amen não me choca, são variantes aceitáveis, por razões várias. Mas há outras coisas inaceitáveis.

Carnac em vez de Karnak, é inaceitável; Tel el Amarna em vez de Tell el Amarna, é errado. Tell تل é colina em árabe, e escreve-se Tell, com dois "l"; Aquenáton, em vez de Akhenaton (versão oficial), é muito mau; Deir el Bahri, em vez de Deir el Bahari (ortografia tradicionalmente aceite), é simplificação desnecessária, mas pior é isto: na página 40 vem escrito «O nome Deir el Bahri significa "Lugar do Mosteiro do Norte" em árabe». Ora Deir دير significa "mosteiro", mas Bahari  بحري significa "do mar" (ou do rio, dada a proximidade do Nilo). Eu sei que em alguns sítios é referido "mosteiro do norte", incluindo a Enciclopédia Britânica, mas é uma fantasia.

Na página 38, está escrito: «Cerca de 200 a.C., sete séculos antes de Tutankhamon nascer...». Tendo o faraó nascido cerca de 1300 A.C., esta frase é incompreensível. Segundo ela, ele teria nascido por volta de 500 E.C. !!! Talvez devesse estar escrito 2000 A.C. As revisões fazem muita falta.

Na página 48 lê-se: «O reis, capataz dos operários...» Ora não é "reis" mas "raïs", palavra que em árabe رئيس significa chefe, por excelência o chefe do Estado, mas que, por deferência, pode ser usada em outras circunstâncias. Recordo-me que, aquando das minhas primeiras visitas ao Egipto, os jovens engraxadores de sapatos que exerciam na rua (como outrora em Portugal) me tratavam por "raïs"!

Na página 241, está escrito que o «O país era governado por Maomé Ali». Ora o khediva chamava-se Mohammed Ali, ou até mais correctamente Mehemet Ali. Em Portugal é de uso chamar-se Maomé ao profeta Muhammad, o que é um francesismo decorrente de Mahomet, aliás um termo depreciativo. Mas tornou-se um uso. Agora usar Maomé para qualquer outra pessoa em vez de Mohammed é péssimo.

Na página 243, é referido Ismael Paxá. Trata-se do khediva Ismaïl Pasha, como é universalmente conhecido.

Na página 281, está escrito: «Os murais indicavam tratar-se do túmulo de Osocor II da XXII dinastia, que governou mais de três séculos antes de Tutankhamon.» Está errado. Osocor II é posterior a Tut-Ankh-Amun. Este é da XVIII Dinastia, Osocor (ou Osorkon) é da XXII e governou 500 anos depois de Tut-Ankh-Amun.

Há muitos mais erros que não apontei e, possivelmente, outros de que não me dei conta numa leitura rápida. A tradução é má, a revisão parece inexistente, e também é provável que haja disparates no próprio original de Bob Brier, que não li. No único livro que conheço de Bob Brier, lido há muitos anos, este propunha uma tese para o assassinato de Tut-Ankh-Amun, que na presente obra agora refuta. Fiquei com a opinião de que é pouco rigoroso, talvez mais interessado em especulações com fins comerciais.

Existe uma suposição - antiga - de que o túmulo da rainha Nefertiti se encontra por trás da câmara funerária de Tut-Ankh-Amun. Nunca houve autorização para efectuar uma perfuração, por receio de danificar as pinturas, mas fizeram-se já varrimentos com geo-radar, que nada detectaram. Em 2018, procedeu-se a um terceiro varrimento com uma equipa da Universidade de Turim. A conclusão das três operações foi unânime. Não existem câmaras ocultas, o que contraria a tese de Nicholas Reeves, que sustenta a existência da câmara (e tesouro???) de Nefertiti.

Os capítulos da III Parte do Livro (O Legado de Tutankhamon) são os que acrescentam alguma coisa ao que já se sabia. Brier sustenta que o faraó funcionou como um activista político, pois foi a partir da descoberta do seu túmulo que o Egipto começou a protestar contra os ingleses, que administravam o país, no sentido de passarem a governar-se autonomamente. E a questão da pertença do seu tesouro fez despertar esse sentimento nacional. Não terá sido exactamente assim, mas poderá ter contribuído. Também foi importante que a área das Antiguidades estivesse sob controlo não dos ingleses mas dos franceses, desde o tempo da expedição de Napoleão Bonaparte.

O texto é bastante desordenado e pouco sistematizado, sendo confusas as próprias genealogias, depois de tudo o que até hoje escreveram conceituados historiadores e egiptólogos de muitos países. A que acresce a utilização do sinistro Acordo Ortográfico 90, mas, neste caso, a culpa é dos editores. Também há no livro muitas repetições e coisas supérfluas.

O primeiro museu das antiguidades egípcias foi na zona de Bulaq, no norte do Cairo. O actual é na Praça Tahrir, no centro da cidade. O novo (o Grande Museu), que deveria ser inaugurado ainda este ano (a abertura foi prevista para cerca de dez anos atrás, mas sucessivamente adiada, também devido à Revolução), é junto às pirâmides de Gizeh. Entretanto, foi inaugurado, em 2021, o Museu Nacional da Civilização Egípcia, a sul e do outro lado do Nilo, na zona do mais antigo Cairo (Fustat), perto do Lago Ain as-Sirah.

Em 1858, Auguste Mariette foi nomeado primeiro director do Serviço de Antiguidades. Está sepultado num sarcófago no jardim do Museu Egípcio da Praça Tahrir, junto ao qual me costumava sentar quando saía de visita do Museu. Sucedeu-lhe o egiptólogo Gaston Maspero. Ambos prestaram às antiguidades egípcias preciosos serviços. O também francês Pierre Lacau foi director de 1914-1936. Estava em funções aquando da descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amun, em 1922, por Howard Carter, com quem colaborou de forma notável.

O romancista francês Théophile Gautier escreveu um interessante livro sobre as múmias egípcias, intitulado Le roman de la momie (1858). E o escritor e cineasta egípcio Shadi Abdel Salam realizou o filme Al Mummia, em 1969.

A primeira grande exposição internacional sobre Tut-Ankh-Amun teve lugar no Museu do Louvre, em 1967. Outra exposição maior (incluindo a máscara de ouro) teve lugar em 1972, no British Museum, percorrendo depois outras capitais.

Os últimos quatro parágrafos são da minha lavra, e por hoje, fico por aqui!

sábado, 10 de dezembro de 2022

A HISTÓRIA DA RÚSSIA

Adquiri há algumas semanas o livro A História da Rússia, de Orlando Figes, publicado recentemente e cuja edição original, The Story of Russia, é de Setembro passado.

Propõe-se o autor traçar um panorama da evolução da Rússia, desde os primórdios até ao momento actual, não exactamente segundo uma rigorosa cronologia mas antes sobre as épocas que modelaram a Rússia de hoje.

Está, evidentemente, fora de questão, proceder aqui a um resumo do livro, pelo que indicarei apenas alguns aspectos que suscitaram particularmente a minha atenção. 

O autor começa por abordar as origens da Rússia, sobre as quais existem inúmeras divergências, e refere a Crónica Primária, obra compilada pelo monge Nestor e outros monges de Kiev durante os anos de 1110.  Segunda ela, em 862 as tribos guerreiras eslavas do Noroeste da Rússia concertaram-se para convidar os Rus, ramo dos Vikings, a governá-los. Vieram três príncipes irmãos, de que sobreviveu Rurik, que governou Novgorod, a mais importante das cidades comerciais do Norte, e a quem sucedeu Oleg, que conquistou Kiev, estabelecendo a Rus de Kiev, o primeiro Estado "russo". No século XVIII, Mikhail Lomonosov sustentou que os Rus eram eslavos do Báltico, descendentes da tribo Roxolani iraniana, cuja história remontava à Guerra de Tróia, contrariando Gerhard Müller, que afirmava que os Rus eram escandinavos, eventualmente suecos. 

A polémica sobre as origens da Rússia continua ainda hoje, e é conhecida como Controvérsia Normanda (porque os Vikings eram normandos), e tem uma alta carga política e ideológica, já que se trata de saber se a Rússia foi criada por russos ou por estrangeiros. As discussões prosseguiram, perdendo força a tese normanda (que identificava os Vikings como "germanos"), considerada inadmissível no tempo de Stalin. Os russos seriam necessariamente eslavos. Não é possível descrever aqui os pormenores desta magna questão, devendo notar-se que Vladimir, grão-príncipe de Kiev ( 980-1015) converteu os russos ao cristianismo, estreitando as relações com o Império Bizantino. Assim, a Rus entrou na órbita da Igreja Ortodoxa. Sobre a relação entre a Rússia e o Patriarcado de Constantinopla, e o futuro Patriarcado de Moscovo, seria necessário escrever dezenas de páginas. Na página 40 está escrito que Yaroslav, filho de Vladimir, reinou entre 1019 e 1014, o que é obviamente impossível. Ele reinou até 1054. Aliás, a tradução é deficiente, talvez por ter sido feita com muita rapidez, suponho, por questão de oportunidade. Por exemplo, na página 41 figura "inconóstase", em vez de "iconóstase".

Sobre a invasão mongol, a "Hora Dourada", está escrita na página 51 uma frase que me suscita outras memórias. O sublinhado é meu. «Em Riazan, primeira cidade que saquearam, os Mongóis "queimaram a cidade santa com toda a sua beleza e riqueza", segundo o Conto da Destruição de Riazan por Batu. "E as igrejas de Deus foram destruídas e muito sangue derramado sobre os altares sagrados. E nem um só homem ficou vivo na cidade. Todos morreram... E não havia sequer quem chorasse os mortos

Com a invasão mongol, os príncipes e boiardos russos ficaram submetidos ao Canato da Horda Dourada. Em 1252, Alexandre Nevsky (que derrotara os suecos no rio Neva, donde recebeu o nome), foi nomeado por Batu grão-príncipe da cidade de Vladimir, a mais importante após a queda de Kiev. 

[Sobre essa vitória deve ver-se o filme Alexandre Nevsky, de Sergeï Eisenstein. Sobre o grande pintor religioso Andreï  Rublev, deve ver-se o filme homónimo de Andreï Tarkovsky]

«As primeiras muralhas e igrejas do Kremlin de Moscovo foram erigidas por volta desta altura - as muralhas por ordem do Grão-Príncipe Demétrio em 1366-67. Mais de 50 000 metros cúbicos de pedra foram trazidos de pedreiras longínquas por enormes equipas, muito maiores de que a mão--de-obra que qualquer soberano europeu conseguiria reunir para um projeto daquele tipo. A construção do Kremlin era um símbolo do poder em Moscovo. Era, também, resultado de um novo acordo com a Igreja, que se aliou à causa de Moscovo como centro de poder nacional para libertar os ortodoxos do domínio mongol. A aliança tivera início em 1352, quando o metropolita de Kiev e Toda Rus, Pedro II, mudou a sé de Vladimir para Moscovo a pedido de Ivan Kalita [Ivan I]. Para assinalar a mudança, logo Ivan ordenou a construção da Catedral da Dormição no Kremlin, a primeira igreja de pedra dentro das muralhas.» (p. 59)

«São três as principais correntes de opinião na Rússia. Na maioria das versões o impacto mongol foi totalmente negativo. [...] Segundo esta narrativa, os Mongóis são culpados de tudo o que fez a Rússia atrasar-se. [...] Uma segunda corrente foi introduzida por alguns eslavófilos, nacionalistas do século XIX que se opunham a que a Rússia seguisse o modelo de desenvolvimento ocidental. Reconhecendo, embora, o impacto destrutivo dos Mongóis na Rússia, viam na ocupação mongol um período com alguns elementos positivos para a fundação do futuro Estado russo. Em particular, o isolamento da Rússia em relação ao Ocidente ter-lhe-ia permitido preservar a herança bizantina, a antiga cultura eslava e a fé ortodoxa, incólumes às tendências seculares e individualistas do humanismo renascentista da Europa. Uma terceira corrente, mais generalizada, negava que os mongóis tivessem tido qualquer influência: chegaram, aterrorizaram e saquearam, mas depois partiram sem deixar vestígio. [...] Essa continua a ser a perspectiva dominante na inteligência europeizada, que vê uma Rússia virada para o Ocidente.» (pp. 62-3)

Há muitos nomes famosos na história da Rússia que são de origem tártara ou asiática: «autores (Karamzin, Chaadaev, Turgueniev, Bulgakov), compositores (Rimsky-Korsakov), czares (Boris Godunov) e revolucionários (Bukharin)». (p. 64) 

«Foi no Norte e Leste da Rússia, o domínio da Moscóvia, que os legados do domínio mongol mais perduraram. No Sul e no Oeste, correspondentes á Ucrânia e à Bielo-Rússia, a autoridade mongol era mais fraca e cedeu mais cedo, pois muitos desses territórios foram atraídos para a Polónia e a Lituânia desde o início do século XIV. Em certa medida, a maior liberdade em relação à influência mongol colocou as terras de Kiev numa trajetória histórica diferente da Moscóvia. As terras quievanas orientavam-se mais para o Ocidente, e estavam menos expostas as instituições da autocracia patrimonial. Ma esse contraste não foi tão grande que justifique as afirmações dos nacionalistas ucranianos de hoje, nomeadamente, de que a Rússia se tornou despótica e asiática, e o seu povo servil, devido ao "jugo tártaro", enquanto os Ucranianos sempre foram amantes da liberdade e mais "europeus", por não terem sido governados pelos Mongóis. Este tipo de distinções pertence à mitologia nacionalista, embora, evidentemente, à semelhança de muitos mitos, haja nela elementos de verdade.» (p. 70)

[Alguns períodos afiguram-se-me ortográfica e sintácticamente estranhos, com palavras grafadas com inicial maiúscula umas vezes, minúscula outras, mas não possuo o original inglês. Transcrevo como está no texto.] 

«No dia 16 de Janeiro de 1547, o grão-príncipe de Moscovo, Ivan IV, tornou-se o primeiro czar e autocrata de toda a Rússia. Ivan, o Terrível, como é mais conhecido, tinha apenas 16 anos quando foi coroado na Catedral da Dormição, a principal igreja do metropolita de Moscovo, Macário, chefe da Igreja Russa.» (p. 71)

«Coroá-lo como czar foi igualmente importante para a missão de Macário de promover Moscovo como derradeira e genuína sede da fé cristã, herdeira de Bizâncio após a conquista de Constantinopla pelos Turcos.[...] Em 1448, numa declaração de independência em relação a Constantinopla, os bispos russos assumiram a missão de nomear Iona de Riazan como seu metropolita, um cargo cuja nomeação cabia normalmente ao patriarca de Constantinopla. A queda da capital bizantina, cinco anos depois, convenceu os Russos de que tinham feito bem em criar uma igreja nacional independente. Essa convicção cimentou-se em 1458, quando a Lituânia cortou relações religiosas com Moscovo, e colocou a sua população ortodoxa sob a autoridade espiritual da Igreja Uniata de Roma.» (p.74)

«Moscovo tornara-se a derradeira capital da verdadeira fé, defendia Filoteu [um monge], "pois duas Romas caíram, a Terceira perfila-se, e não haverá uma quarta".» (p. 75)

[Sobre o carácter sagrado da pessoa do czar deve ler-se Les Deux Corps du roi, de Ernst Kantorowicz]

«O nome dos Cossacos derivava da palavra túrquica qazaqi, que significava "aventureiros" ou "soldados errantes", que viviam em liberdade como bandidos da estepe. Muitos dos cossacos eram remanescentes do exército mongol (Tamerlão começara como qazaq).» (p. 82)

«A conquista de Kazan [1552] foi celebrada como uma vitória providencial para os ortodoxos, a primeira sobre o islão desde a queda de Constantinopla, quase cem anos antes. A Igreja Russa definiu-a como o início de uma cruzada e exigiu a conversão forçada dos infiéis muçulmanos.» (p. 83)

«Quatro anos mais tarde, em 1556, os russos conseguiram nova vitória, desta vez contra o Canato de Astracã. Para comemorar a sua vitória, o czar ordenou a construção de uma nova catedral na Praça Vermelha de Moscovo, assim chamada porque a palavra para "vermelho" (krasny) deriva da palavra para belo (krasivyi). A Catedral da Intercessão da Virgem tornar-se-ia conhecida popularmente por São Basílio.» (pp. 83-4)

«Ivan tornou-se "o Terrível" - no sentido em que entendemos hoje - só em inícios do século XVIII. O epíteto (grozny) foi-lhe aplicado pela primeira vez em inícios do século XVII, altura em que começava a desenvolver-se um rico folclore acerca do czar. Ao tempo, o sentido da palavra estava mais próximo de assombroso e formidável do que de cruel ou brutal, ou seja, era basicamente positivo. No folclore, Ivan era retratado como um czar poderoso, guardião da justiça, que tinha protegido o povo punindo os boiardos por seus pecados. Seria só um século mais tarde, depois de os historiadores estudarem mais atentamente o terror por ele desencadeado, que as palavras Ivan, o Terrível, se tornaram sinónimo de execuções, tortura, massacres bárbaros e uma tirania ensandecida e monstruosa que a razão mal consegue explicar.» (p. 88)

«Durante os vinte e cinco anos subsequentes [depois da morte de Ivan IV(1584)] a Rússia seria dilacerada por guerras civis e invasões estrangeiras - um Tempo de Dificuldades (smutnoe vremia), como ficaria conhecido, que só cessaria com a "eleição" do czar Mikhail Romanov e a fundação da sua dinastia em 1613. Mas nem todas as dificuldades da Rússia terminaram aí. Ao longo do século seguinte, âmbito deste capítulo, a autoridade do Estado foi abalada por uma série de rebeliões. Elas revelavam a dificuldade de afirmação da autoridade do czar aos olhos do povo, que só acreditava numa monarquia que representasse os seus ideais utópicos.» (p. 95)

«O problema começara à morte de Ivan com as pretensões concorrentes de seus dois filhos, Fedor e Demétrio, ao trono. Como filho mais velho, foi Fedor [1584-1605] o sucessor, mas era demasiado débil mentalmente para as tarefas de governação, que foram entregues a Boris Godunov, irmão da sua mulher. Descendente de um príncipe tártaro, Godunov juntara-se aos oprichniki de Ivan e ascendera a uma posição de destacado boiardo na sua corte. Enquanto um dos quatro regentes do czar Fedor, deu provas de hábil governante. Mas desde o início que teve de enfrentar a oposição do corregente príncipe Vasily Shuisky (neto do Shuisky executado por Ivan IV), descendente dos ruríquidas, que desprezava como arrivista esse Godunov de "baixo nascimento". Os relatos sobre a morte de Demétrio, então com 3 anos, num acidente de barco em 1591 [estas datas devem estar erradas], desencadearam rumores de assassinato a ordens de Boris Godunov. Os rumores aumentaram de tom depois da morte de Fedor, quando a Assembleia da Terra elegeu Godunov como novo czar.» (p. 95-6)

«O povo considerava que a fome era castigo de Deus contra a Rússia e o seu maléfico czar Boris. Começaram a circular lendas populares sobre a reaparição do "verdadeiro czar Demétrio". Em certas versões, Demétrio não tinha morrido, tinha sobrevivido. Noutras, ressuscitara como Jesus Cristo, para libertar a Rússia do czar usurpador e salvar o povo da servidão. Esse homem apareceu em 1604, um rapaz carismático de 22 anos, provavelmente um monge excomungado chamado Gregório Otrepov, que dizia ser Demétrio. Apoiado pelos Polacos para que conquistasse a Rússia através de uma revolta popular, foi ajudado (e manipulado) pelos clãs boiardos que se opunham a Boris Godunov.» (p. 96)

[Sobre Boris Godunov deve ler-se o famoso romance homónimo de Pushkin e deve ver-se (e ouvir-se) a famosa ópera homónima de Mussorgsky.]

«Ali estava, bem patente, a fundamental instabilidade da monarquia russa. A autoridade do czar baseava-se no mito do seu estatuto divino, de agente de Deus para governar a Santa Rússia, sé derradeira da verdadeira fé ortodoxa, segundo a ideologia da Terceira Roma. No imaginário religioso popular, sempre um bom cadinho para ideologias políticas, a Rússia era a terra da salvação, uma nova Israel onde a liberdade, verdade e justiça seriam dadas ao povo pelo santo czar. Como escreveu Mikhail Bakunin, revolucionário do século XIX, "o czar é o ideal do povo russo, uma espécie de Cristo russo". O "czar-paizinho" ou czar-batiushka, era celebrado no folclore como protetor do povo, o vingador dos males causados pelos boiardos. Pela lógica deste sistema, se atuasse como "czar-atormentador" (czar-muchitel), os ortodoxos podiam opor-se-lhe como "falso czar", talvez um Anticristo enviado por Satã para pôr fim à soberania de Deus na Santa Rússia, e precipitar a destruição do mundo. O fator central na autoridade do czar - a sua pessoa divina plasmada no mito do Santo Czar - podia, portanto, ser virada contra ele próprio se as suas ações não correspondessem às expetativas do culto sagrado do seu povo.» (p. 97)

«Em Abril de 1605, estando as forças do falso Demétrio acampada perto de Moscovo, Boris Godunov morreu. O exército depressa se passou para o lado dos rebeldes. Com o apoio dos clãs boiardos, o pretendente entrou em Moscovo e foi coroado Czar Demétrio, o único czar posto no trono por uma revolta popular. As esperanças depositadas em Demétrio logo foram traídas. Começaram a correr rumores de que bebia demais e vivia em deboche. A sua corte estava cheia de nobres polacos. As suspeitas de que fosse católico aumentaram quando anunciou a intenção de casar com uma mulher polaca sem exigir a prévia conversão à Igreja Russa. Em maio de 1606, uma força boiarda chefiada por Shuisky invadiu o Kremlin e assassinou Demétrio. Shuisky foi coroado com o nome de Basílio IV.» (p. 97-8)

Basílio IV foi deposto em 1610, tendo-se seguido um período conturbado de guerra civil, com interferência de suecos e polacos. Em Fevereiro de 1613, a Assembleia da Terra elegeu como czar Mikhail Romanov, um jovem de 16 anos, filho de Filaret (Fedor Romanov), patriarca ortodoxo de Moscovo. Começava a Dinastia dos Romanov, que reinou na Rússia até 1917.

Em 1682, subiu ao trono (com 10 anos) Pedro I, o Grande, neto de Mikhail Romanov e filho de Alexei Romanov. Por morte deste, sucedeu-lhe seu filho mais velho Fedor II [e não Fedor III, como vem no livro, p. 119], que morreu em 1682. Por morte de Fedor, foram coroados czares, seu irmão Ivan V e seu meio-irmão Pedro I, ficando a irmã Sofia como regente, dado serem ambos menores. Sendo Ivan doente (morreu em 1696), Pedro assumiu a governação sozinho depois de exilar a irmã Sofia que pretendia governar a Rússia.

«Até ao século XVIII, os Russos seguiram o costume bizantino de contar os anos desde a criação do Mundo, um evento que criam ter ocorrido 5508 anos antes do nascimento de Cristo. Mas em dezembro de 1699, o czar Pedro decretou a reforma do calendário. A partir dali, os anos deveriam ser numerados a partir do nascimento de Cristo, "ao modo das nações cristãs europeias", começando em 1 de janeiro de 1700 (7209 no antigo sistema). Para celebrar o nascimento do novo século, Pedro organizou uma magnífica cerimónia com fogo-de-artifício, salvas simultâneas de 200 canhões, e cuspidores de fogo na praça em frente à Catedral da Dormição, no Kremlin. Por decreto, os moscovitas receberam ordens de se juntarem às festividades decorando as fachadas de suas casas, rapando a barba, e trocando os cafetãs tradicionais por vestes ocidentais ("alemãs" ou húngaras"), segundo o modelo dos manequins dispostos nas praças da cidade para sua orientação.» (p. 121)

«A partir de 1696, Pedro viajou incógnito por toda a Europa do Norte para ver com os seus próprios olhos aquilo de que a Rússia precisaria para se tornar uma potência militar no continente. Foi o primeiro soberano reinante russo a visitar o estrangeiro. Na Holanda, Pedro Mikhailov (como o czar se apresentava), trabalhou como carpinteiro naval. Em Londres, visitou o observatório de Greenwich, o arsenal de Woolwich, a Casa da Moeda e a Royal Society. Em Königsberg estudou artilharia.» (p. 123)

«Os Russos lançaram uma segunda campanha em 1701, ano em que os Suecos estavam ocupados com outra guerra contra a Polónia. Capturaram a Fortaleza de Nöteborg (que os Russos baptizaram com o nome Shlisselburg), localizada estrategicamente na desembocadura do rio Neva no lago Ladoga. Também conquistaram a ilha de Kotlin (rebaptizada Kronstadt, também ao estilo alemão), que, com Shlisselburg, garantia a defesa de São Petersburgo (pronunciado "Sankt Piterburg", outro nome de fonia alemã), a cidade fundada por Pedro no local onde o rio Volga desagua no mar Cáspio [SÃO PETERSBURGO NO MAR CÁSPIO NA FOZ DO VOLGA ?????????? Alguma coisa não bate certa!!!!!!!!!] fazendo a Rússia a principal rota entre Ásia e Europa.» (p. 124)

«Quando chegaram a Poltava, em 27 de Junho de 1709, já as tropas invasoras estavam demasiado débeis e exaustas para enfrentarem o exército russo modernizado que ali lhes deu combate. Os Suecos sofreram uma derrota esmagadora, e Carlos [XII], ferido, fugiu para território turco na outra margem do Dniepre. Os Russos aproveitaram a oportunidade. Viraram para noroeste, capturaram Riga, e dali avançaram a conquistar todas as possessões suecas no Báltico. A Grande Guerra do Norte, como ficou conhecida, arrastou-se durante doze anos. Os Russos atacaram os Suecos na Finlândia e realizaram uma série de incursões navais, saqueando e incendiando cidades ao longo do litoral sueco, e chegando a ameaçar a própria Estocolmo. Os Suecos viram-se forçados a pedir a paz, e assinaram o tratado de Nystad (1721), pelo qual cediam à Rússia os seus territórios bálticos.» (p. 125)

Em 1721, o czar Pedro I assumiu o título de Imperador.

«A adopção do título de "Imperador" por parte de Pedro acarretou uma mudança no próprio nome da Rússia. Anteriormente, o país fora conhecido como Rus, um apelido comum para a pátria étnica dos Russos (russkie). Pedro adicionou o termo helénico Rossiia, que viria a substituir Rus como nome do Estado russo. O nome Rossiia pretendia traduzir uma identidade imperial a unir todos os súbditos do Império Russo, independentemente de etnia ou nacionalidade, embora numa hierarquia racial que privilegiava aquelas nacionalidades (alemães do Báltico, Russos, etc.) mais próximos da liderança do Império. O Império era a Rossiiskaya (adjectivo derivado de Rossiia), ou, por vezes, Vserossiiskaya (significando "Omni-Russa"), mas nunca Russkaya (de Rus), um adjectivo aplicado ao povo russo (russkii narod), à língua russa (russkii yazik) e à Igreja russa (russkaya tserkov), mas nunca às instituições do Estado. Se Moscovo era a antiga capital da Rus, a "mãe de todos os russos", como Tolstoi escreveu em Guerra e Paz, Petersburgo era a capital da Rossiia, o centro administrativo de um império multiétnico que se estendia do Báltico ao Pacífico.» (pp. 127-8)

«No cerne deste governo imperial estava um novo conceito de Estado russo. Antes do Código de 1649, ele era tido como património pessoal do Estado. O conceito de Estado (gosudarstvo) era inseparável da pessoa do Czar (gosudar), que governava a Rússia como domínio seu. O Código assinalara um corte com essa conceção pessoal para a de um reino de primado da lei. Mas Pedro foi o primeiro czar a pensar o Estado como uma maquinaria impessoal cujo objetivo era servir o bem comum ou a comunidade. Bebera essa ideia nos ideólogos, juristas e governantes cameralistas alemães que atribuíam ao Estado um papel ativo e modernizador de servir o bem comum através da imposição da ordem e da dinamização da economia com práticas políticas assentes em delegação de responsabilidade e conhecimento pormenorizado da sociedade. [...] Como outros Estados absolutistas, o de Pedro regulamentava cada aspecto da sociedade. Criou colégios ou ministérios, nove para começar, em 1718, responsáveis pelas principais áreas da prática política (Negócios Estrangeiros, Guerra, Marinha, Justiça, Comércio, Manufatura e assim por diante).  Em 1721, alargou o controlo estatal aos assuntos da Igreja com a criação do Santo Sínodo, um órgão do clero sob o seu controlo, a substituir o patriarca independente. Isto significava a erradicação do conceito bizantino de sinfonia entre Igreja e Estado em que se baseara a filosofia política da Rus de Kiev e de Moscóvia. O czar era agora a única autoridade.» (pp. 128-9)

«Pedro, o Grande, divide os russos como nenhuma outra figura da sua história. Os eslavófilos insistem em que colocou a Rússia num caminho errado: seguir o Ocidente e importar uma cultura materialista só seria possível a expensas do caráter nacional, e dos valores e tradições espirituais que distinguiam a Rússia da Europa. Mas para a inteligência ocidentalista, que buscava na Europa valores e ideais, o czar estabeleceu uma nova pátria-mãe, a Rússia petrina, única que lhes merece crédito. Esta posição foi enunciada por Vladimir Soloviev, filósofo do século XIX, que defendia que Pedro salvara a Rússia de se tornar "puramente asiática": "Tudo o que de bom e original temos tido na esfera do pensamento e da criatividade emergiu unicamente em resultado das reformas petrinas; sem elas, não teríamos tido nem Pushkin, nem Glinka, nem Gogol, nem Dostoievsky, nem Turgueniev, nem Tosltoi".» (p. 133)

«"A Rússia é um estado Europeu." Assim escreveu Catarina na frase de abertura do seu tratado mais importante, o Nakaz ou "Instrução à Comissão Legislativa", a quem foi confiada em 1767 a missão de escrever um novo Código de Leis.» (p. 141)

«O plano de desenvolvimento da Rússia como potência meridional começara em meados dos anos de 1760, quando os territórios ucranianos, em tempos governados pelo atamanato cossaco, foram transformados em províncias do Império Russo administradas por governadores militares. Mas o projeto meridional só arrancou dez anos depois, quando Catarina colocou o seu amigo íntimo e antigo amante, príncipe Gregório Potemkin à frente da Nova Rússia, os territórios escassamente povoados recém-conquistados aos otomanos no litoral norte do mar Negro, com instruções para a colonizar. Alemães, polacos, italianos, gregos, búlgaros e sérvios fixaram-se nessas terras. Ali foram erigidas novas cidades - Ekaterinoslav, Kherson, Nikolaev e Odessa -, muitas delas construídas segundo o estilo rococó francês e italiano. Potemkin supervisionou pessoalmente a construção de Ekaterinoslav (que significa "glória de Catarina") como uma fantasia greco-romana para simbolizar a herança clássica que ele e os outros apoiantes do projeto grego sonhavam para a Rússia. Foram construídas lojas em círculo como no Propileu de Atenas; a casa do governador parecia um templo grego, e os tribunais, uma basílica.» (p. 144)

«O auge da política do mar Negro foi a anexação da Crimeia em 1783. Nos termos do tratado de Kuchuk Kainarji, o Canato da Crimeia tornara-se independente dos Otomanos. Três anos depois, foi eleito um novo cã, Sahin Giray, apoiado pela Rússia. Embora gozasse do apoio da substancial população cristã da Crimeia, Sahin era rejeitado pelos Otomanos, que encorajaram os tártaros da Crimeia a revoltarem-se contra o "infiel" Sahin, e enviaram uma frota com um cã de sua escolha para o substituir. Cristãos e Tártaros cedo se envolveram numa guerra religiosa. Cometeram-se atrocidades horríveis de ambos os lados, levando a Rússia a evacuar cerca de 30 000 cristãos para as cidades costeiras do mar Negro. A saída dos cristãos debilitou fortemente a economia crimeana. Sahin ficou dependente dos Russos, que o persuadiram a abdicar, e depois lançaram uma rápida invasão para afirmarem a soberania sobre a península contra os Turcos. Obrigados a submeter-se à soberania russa, os tártaros da Crimeia juntaram-se aos mullahs nas suas mesquitas e juraram lealdade sobre o Corão à sua nova imperatriz, a 2 500 quilómetros de distância.» (pp. 144-5)

«A simpatia de Catarina pelas ideias do Iluminismo quebrou-se irremediavelmente com a Revolução Francesa de 1789. "Haveis tido razão ao não desejardes ser contado entre os filósofos", escreveu ela a Grimm no auge do terror jacobino de 1794, "pois mostrou a experiência que tudo isso conduz à ruína; não importa o que digam ou façam, o mundo nunca deixará de necessitar de autoridade. Melhor é suportar a tirania de um homem do que a insanidade da multidão".» (p. 146)

«"Que nós Russos sejamos Russos, e não cópias dos Franceses", escrevia a Princesa Dashkova, presidente da Academia Russa. "Que sejamos patriotas e preservemos o caráter de nossos antepassados". Mas que significava isso de "ser russo"? Como poderiam os Russos tornar-se europeus, senão imitando-os simplesmente? Poderiam ser Europeus e também Russos? Eram perguntas que muitos russos se faziam enquanto o seu país dava combate a Napoleão.» (p. 147)

«Alexandre [I] acreditava que o seu império fora salvo por Deus. A vitória fortaleceu a sua fé no mito de uma Santa Rússia, providencialmente salvadora da humanidade. A partir de 1815, o czar foi-se tornando cada vez mais religioso, místico, até, nas suas atitudes, sob crescente influência da Baronesa de Krüdener, uma pietista alemã do Báltico. Foi ela que o ajudou a redigir o texto fundador da Santa Aliança, uma união de potências cristãs para garantir a paz à luz dos princípios das Escrituras Sagradas.» (p. 153)

Alexandre II tinha empreendido medidas para a liberalização  do regime e a abolição da escravatura e dado um grande incremento à educação e à cultura, medidas que desagradavam aos revolucionários que pretendiam a queda da monarquia.

«A consequência imediata desta viragem para métodos golpistas foi uma onda de ataques terroristas contra figuras do governo, muitos deles por um grupo, o Vontade do Povo (Narodnaya Volia), que matou o czar em 1881. Já antes fizera uma série de atentados contra a vida de Alexandre quando um dos seus agentes atirou uma bomba contra a carruagem do monarca em São Petersburgo, matando um dos cavaleiros cossacos que o flanqueava. Quando o imperador surgiu, ileso, outro agente lançou uma segunda bomba que lhe arrancou as pernas e rasgou o abdómen. Levado numa maca para o Palácio de Inverno, próximo do local, morreu pouco depois vítima dos ferimentos. É difícil pensar um momento mais decisivo na história da Rússia. No dia em que foi morto, 1 de Março, o czar tinha aprovado uma reforma que incluiria representantes eleitos dos zemstvos e dos conselhos urbanos numa nova assembleia consultiva. Embora fosse uma reforma modesta, de forma alguma indiciadora de uma monarquia constitucional, ela mostrava, ao menos, que Alexandre se dispunha a envolver o público no exercício da governação. Em 8 de Março, a proposta foi rejeitada pelo filho e herdeiro, Alexandre III, numa reunião de grão-duques e ministros. O crítico mais influente e reacionário, Konstantin Pobedonostev, procurador do Santo Sínodo, advertiu que a aceitação daquela reforma representaria um primeiro passo decisivo na via de um governo constitucional. Naquele tempo de crise, defendeu ele, a Rússia precisava, não de "conversa fiada", mas sim de ações firmes de governação. Desde esse momento, o novo czar, que reinaria de 1881 a 1894, tomou um rumo inflexível de reação política para restaurar o princípio autocrático.» (pp. 183-4)

Nicolau II foi o último czar da Rússia (1894-1917). Desde o início do século passado que se registava grande agitação no país. Os movimentos revolucionários pululavam. A situação económica e social tinha-se degradado. Por múltiplas razões, que aqui não cabem, Nicolau II não quis, ou não pôde, adoptar as medidas que a situação reclamava.

«No domingo, 9 de Janeiro de 1905, uma grande multidão de trabalhadores marchou rumo ao Palácio de Inverno para entregar uma petição ao czar, um costume do povo russo que remontava há séculos, como vimos. Eram chefiados por um padre, de nome Gapon, que ganhara fama como pregador nos distritos fabris de São Petersburgo. O padre Gapon dissera aos seus seguidores, em linguagem simples, que o czar-batiushka, o czar-paizinho, corresponderia aos seus pedidos se a ele se dirigissem como suplicantes, pois era essa a sua obrigação perante Deus. A petição pedia humildemente uma melhoria das condições de trabalho, que se tinham tornado intoleráveis: "SIRE", começava a súplica, "Nós, trabalhadores e habitantes de São Petersburgo, de várias condições, nossas esposas, nossos filhos, e nossos idosos e indefesos pais, acorremos a VÓS, SIRE, em busca de justiça e proteção. Estamos empobrecidos, estamos oprimidos, estamos sobrecarregados de labor excessivo, e somos tratados com desprezo [por nossos empregadores].» (p. 192)

«Acontece que o czar estava ausente da capital. Fora para o palácio de Czarkoe Selo (Vila do Czar) para o habitual descanso de fim-de-semana, com passeios pelo campo e jogos de dominó em família. A ordens suas, os soldados bloquearam os principais acessos ao centro da cidade, e dispararam contra a multidão para a fazer retroceder. Na Praça do Palácio, foi posicionado um enorme corpo de cavalaria e montados vários canhões em frente ao Palácio de Inverno para travar os que conseguissem passar, ainda cerca de 60 000 manifestantes. Os soldados tentaram dispersar a multidão a golpes de chicote. Nada conseguindo, tomaram posições de fogo. Os manifestantes caíram de joelhos descobriram a cabeça, e benzeram-se. Soou um clarim e os disparos começaram. Cerca de mil pessoas foram abatidas ou feridas nesse Domingo Sangrento, como a ocasião ficou conhecida.» (p. 193)

Este infeliz acontecimento provocou um divórcio definitivo entre o tsar e o povo. Desde então, não mais parou a agitação revolucionária na Rússia, apesar de algumas tentativas de conciliação levadas a cabo por Nicolau II. Entretanto, começou a Primeira Guerra Mundial, com o cortejo de tragédias inerente a todas as guerras. Havia conspirações por todo o lado. A emergência da figura de Rasputin, que viria a ser assassinado pelo príncipe Yussopov, contribuiu para exaltar os ânimos. Clamava-se contra a imperatriz Alexandra Feodorovna, que era acusada de ser partidária dos alemães.  A Revolução Bolchevique estava em marcha. Nicolau II pretendeu abdicar em seu irmão Mikhail, já que a frágil saúde do tsarevich Alexei o impediria de reinar. Mas os acontecimentos precipitaram-se. A Revolução de Fevereiro (Março de 1917), determinou a abdicação do tsar e levou Kerenski ao poder; a Revolução de Outubro (Novembro de 1917) levou ao poder o partido bolchevique, e o seu líder Vladimir Ilich Ulianov (Lenin).

O tsar e a família imperial foram fuzilados por ordem de Lenin, em Ekaterimburg, para onde tinham sido levados, em 16/17 de Julho de 1918.

Estes acontecimentos têm cerca de 100 anos e, por isso, são-nos já relativamente próximos. Assim, apenas mais alguns apontamentos, que o texto vai longo. 

«Devido a essas divisões, os negociadores bolcheviques, liderados por Trotsky, esforçaram-se por ganhar tempo em Brest-Litovsk. Trotsky entreteve-se a entreter os diplomatas e os generais alemães, submetendo cada frase do rascunho de tratado a longas dissertações abstratas. Por fim, os Alemães perderam a paciência e assinaram um tratado separado com a Ucrânia, e no Parlamento de Kiev os líderes nacionalistas declararam a independência da Ucrânia em 22 de Janeiro [1918], para logo pedirem auxílio alemão na luta contra os Guardas Vermelhos, baseados no Leste do país, onde os russos étnicos eram maioria.» (p. 222)

Em 12 de Março de 1918, a capital soviética foi transferida de São Petersburgo para Moscovo.

«Os exércitos da Guerra Civil estavam a ser formados. As forças anti bolcheviques, chamados os "Brancos" (nome derivado dos penachos brancos que os anti jacobinos usavam nos chapéus durante as guerras revolucionárias francesas) eram um grupo heterogéneo sem outra ideologia clara além de derrubar os "Vermelhos" do poder e restaurar a "Velha Rússia". Mas o que essa Rússia deveria ser - monarquia ou república, império ou federação, um sistema baseado na propriedade privada ou uma sociedade socialista - era questão que os dividia.» (p. 223)

Resumindo: por morte de Lenin, Stalin assumiu o poder, seguindo-se uma sucessão de secretários-gerais do Partido Comunista da URSS, de que se distinguiram Nikita Kruschev e Leonid Brejnev. O último dirigente da União Soviética foi Mikhail Gorbachev e com a sua queda o regime implodiu. A Rússia, herdeira parcial da URSS, tem hoje à sua frente Vladimir Vladimirovich Putin, depois de um período confuso da presidência de Boris Ieltsin.

O autor do livro, Orlando Figes, professor da Universidade de Londres e considerado um grande especialista de história da Rússia, é também uma figura algo controversa, até pelas acusações de utilizar textos alheios como sendo de sua autoria. Não posso assegurar que todas as transcrições a que procedi sejam historicamente exactas (assinalei o que se me afigurou mais evidente), mas a tradução é deficiente e a transliteração dos nomes caótica. E também uma flagrante ausência de uniformidade na grafia dos nomes, que se deverá certamente ao tradutor. Seguindo a tradição inglesa, nomes como Russos, Alemães, Cristãos ou Judeus são geralmente grafados com inicial maiúscula, mas neste texto uma vez são, outras não. Também há erros de datas e de locais.

Espero, contudo, que a leitura destas linhas seja, mesmo assim, proveitosa para os leitores, uma vez que a Rússia, pelas razões que conhecemos, é hoje centro das atenções mundiais. E este texto poderá, talvez, ajudar a compreender algumas posições actuais.

 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

CONSPIRAÇÕES E TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO

Foi publicado há um mês o livro As Conspirações que Mudaram o Mundo, de Frederico Duarte Carvalho, que, como o título indica, nos fala da existência, ao longo dos tempos, de várias conspirações e de teorias da conspiração. 

É certamente verdade existirem "teorias da conspiração" mas é ainda mais verdade existirem verdadeiras "conspirações" que, por motivos óbvios, são classificadas como "teorias". Têm sido editados muitos livros sobre a matéria.

A obra agora em apreço recolhe um manancial de informação sobre o "conspiracionismo". Muitas das questões apresentadas são já conhecidas, outras estavam esquecidas, embora não as tivéssemos ignorado, outras há que são novidade para a maior parte das pessoas. A forma como o livro está organizado provoca, por vezes, a dispersão do leitor; melhor seria uma apresentação sistematizada das questões, digamos, uma continuidade com princípio, meio e fim, mas compreendo a intenção do autor de ir juntando os fios da meada, articulando uns casos com outros. E há também questões que são apontadas e depois não desenvolvidas, talvez porque não existam elementos adicionais.

A recolha destes casos, ou "acasos", revela um aturado trabalho do autor para relacionar factos que, considerados isolados, não suscitam qualquer suspeição quanto à sua origem criminosa.

Não cabe aqui desenvolver os temas investigados por Frederico Duarte Carvalho, mas importa citar algumas ocorrências. Começa o autor por falar da Bíblia, dos extra-terrestres e dos nazis. E do Segredo de Fátima e suas implicações. E também das sociedades secretas e de Os Protocolos dos Sábios de Sião, tema retomado no romance famoso, embora menos conhecido, de Umberto Eco, O Cemitério de Praga. É pacífico afirmar-se que Os Protocolos... são uma falsificação da Okhrana, a polícia política dos czares. Todavia, independentemente da autoria, é um facto que muitas coisas que lá são afirmadas se verificaram ou estão a verificar-se. É também enunciado o poder da família Rothschild, mas os capítulos mais interessantes são os dedicados aos Estados Unidos da América e à Nova Ordem Mundial. São revisitadas as actividades criminosas dos presidentes Bush (Pai e Filho), Clinton e Obama, além de situações nebulosas de Roosevelt, Truman, Reagan, Johnson, Ford, Dick Cheney, Nixon, Donald Rumsfeld, Hillary Clinton, os assassinatos de John Kennedy, Robert Kennedy e John Kennedy Jr., o caso da Baía dos Porcos, a base Mena de Clinton no Arkansas, o 11 de Setembro, as invasões do Afeganistão e do Iraque, Osama Bin Laden, a morte da princesa Diana, o falso envolvimento de Qaddafi no avião caído em Lockerbie, o golpe de Estado contra o Xá, Bilderberg, Watergate, as manobras para a implosão da União Soviética, a morte de Aldo Moro, os negócios do Covid, etc., etc. 

Considero dois pontos fundamentais: o atentado que vitimou Francisco Sá Carneiro e acompanhantes em 1980, um dos casos mais discutidos e menos esclarecidos da nossa história contemporânea e o ataque às Torres Gémeas em 2001. Sobre este último, têm sido publicados dezenas de livros suficientemente ilustrativos para refutarem a tese oficial, entre os quais as obras de Thierry Meyssan. O 9/11 nunca me suscitou as menores dúvidas. Dois ou três dias depois do ataque, que logo estranhei, estava de manhã na minha casa de banho a barbear-me com um rádio-transistor ligado numa emissora portuguesa (RDP, TSF, não me recordo) e ouvi em tradução, quase directa, a informação de uma rádio americana que informava que, nos escombros, tinha sido encontrado o passaporte de Mohamed Atta, o egípcio que teria conduzido um dos aviões contra uma da torres. Encontrar, no meio dos destroços, um passaporte intacto e afirmar-se que o seu possuidor era um dos "aviadores" suicidas é uma grave falta dos serviços de "inteligência". Tal como determinar, sobre o momento do acontecimento, que o seu autor teria sido Osama Bin Laden. Aliás, um antigo piloto da TAP disse-me uma vez que era impossível um avião daquele porte ser conduzido contra uma torre e acertar em cheio se não lhe fornecessem as coordenadas de terra. Isso pode fazer-se com um automóvel contra uma parede, com um avião, nunca.

Por tudo o que não escrevi, deve ler-se com atenção este livro que nos dá informação bastante sobre o Deep State, o Estado "profundíssimo", sobre a indústria militar norte-americana e a necessidade de periódicos conflitos (a Ucrânia é agora um caso), sobre os negócios de droga e de medicamentos e muito mais coisas que passam já hoje despercebidas dos cidadãos mortais, anestesiados que estão pela propaganda dominante.

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O APOCALIPSE DA DEMOCRACIA

Publicou agora Manuel Maria Carrilho um novo livro, A Democracia no seu Momento Apocalíptico, em que aborda alguns aspectos da progressiva, e imparável, crise da democracia no mundo. Eu diria crise daquilo a que chamamos democracia. E, como nos adverte, logo no início, o autor, a democracia não é o fim da História, como, há anos, um tristemente célebre ensaísta tristemente proclamou.

Nos anos mais chegados, estabeleceu-se um império do infotretinimento, uma histeria comunicacional motivada pelo Covid-19 (criando um mundo novo), que só terminou com a invasão russa da Ucrânia que passou, pelo menos nos primeiros meses, a dominar por completo a comunicação social. [Eu não sei se os jornalistas "ocidentais", e os portugueses em particular, debitam esta informação totalitária voluntariamente (e isso denotaria uma estupidez incalculável) ou se a isso são obrigados por outras forças, ao serviço de agendas ocultas ou das redes sociais. Seria interessante elaborar sobre esse tema.] A crise da democracia, que vinha sendo intensamente discutida em todo o Ocidente, deu lugar ao incensamento da dita, que se transformou «num modelo exemplar de indiscutível vocação universal, sem problemas nem máculas» (p. 16)

Adverte-nos Carrilho que, em próxima obra, abordará temas indispensáveis para a compreensão do momento apocalíptico da democracia, como: cultura do cancelamento (cancel culture); wokismo (cultura do alerta, ou talvez melhor, da denúncia); desconstrução; políticas de identidade; multiculturalismo; sexo, género e "conexos"; interseccionalidade; vitimização como paradigma social; apropriação cultural, etc.

«Tal como o 11 de Setembro de 2001 marcou o fim da doutrina do fim da história, não tenho qualquer dúvida de que a invasão da Ucrânia pela Rússia a 24 de fevereiro de 2022 marcará o fim da ilusão de uma outra doutrina, a do pacifismo indolente, que tem caracterizado persistentemente a União Europeia nas últimas décadas.» (p. 19)

«Middelaar dissecou bem o estado de negação em que a União Europeia se foi habituando  a viver os seus principais problemas, preferindo sempre contorná-los com a prática dos "saltos em frente" de natureza eminentemente retórica, de resto a grande especialidade da actual Presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, nisso seguida pela quase totalidade dos dirigentes políticos europeus.» (p. 21)

O autor cita José Pedro Teixeira Fernandes (do jornal Público de 03.04.22) sendo seus os itálicos: «Sozinhas, as democracias liberais nunca ganharam nada. Nenhum dos maiores conflitos e guerras do último século foram vencidos por estas sem se terem aliado também a Estados não democráticos.» (p. 22)

«Que relações pretende ela [a Europa] ter, no médio e longo prazo, com a Rússia e com a China, entre tantas outras definições de relações com outros continentes e países, que cada vez mais se impõem? Que lugar estratégico pretende a Europa vir a ocupar, num mundo cada vez mais complexo e hostil, em que a Europa está - não tenhamos qualquer ilusão sobre isto - cada vez mais só?» (p. 23)

«Sejamos claros: sem forças armadas credíveis e sem fronteiras definidas, nunca a Europa conseguirá ter uma estratégia coerente ou ser uma efectiva potência no mundo de hoje.» (p. 24) Não há uma Europa ilimitada. E "os europeus perderam os instrumentos mentais para perceber e pensar que a história é uma permanente competição de potências" como escreveu Hubert Védrine.

Escreve o autor: «Uma fronteira não é, como parecem pensar os burocratas bruxelenses, um mero traçado num papel ou num ecrã. Não, uma fronteira é uma instituição, uma instituição que é resultado de conflitos e de compromissos com muita história, que visam definir os Estados no âmbito da sua soberania e, portanto, da sua identidade política.» (p. 25)

«Dir-se-ia que a União Europeia parece hoje uma zona privilegiada e protegida one se recreiam as suas elites, indiferentes à realidade das nações e à vontade dos povos, apenas obcecadas com a ortodoxia financista (nas suas várias vertentes) e com os humores das agências de rating. E mais recentemente também, claro, com a extravagante "democracia" ucraniana!...» (p. 26)

«E aqui, insisto, temos que ser claros: a Ucrânia, tal como a Albânia, a Macedónia do Norte, a Sérvia, o Montenegro, a Turquia, o Kosovo, a Bósnia-Herzegovina, a Moldávia ou a Geórgia, não entrarão nunca plenamente na União Europeia, a não ser que seja - e isso é infelizmente possível - para acentuar ainda mais os impasses criados em 2004 quando, imprudentemente, se saltou de 15 para 28 membros - como os Estados-Unidos queriam - tornando-se assim a Europa num gigante... de impotência.» (p. 29)

 «A não ser - mas isso levar-nos-ia para outro caminho que, por heterodoxo que pareça, não quero deixar de referir como uma interessante e ousada hipótese de interpretação política - que Peter Mair tenha razão na sua céptica análise da democracia ocidental, exposta no livro Ruling the Void. Nesta obra Mair apresenta a União Europeia, não sob a habitual perspectiva dos seus problemas  canónicos (défice democrático, heterogeneidade económica, débil representatividade, etc.), mas como um dispositivo construído justamente para contornar, e se possível evitar, os tão arrastados problemas das democracias. Seria este facto que explicaria a ausência de uma verdadeira oposição política no quadro da União Europeia, com debates efectivos sobre as suas principais iniciativas e medidas, ignorando-se deste modo na prática a vontade e as expectativas de um povo, o povo europeu, que na sua visão na verdade não existe, sendo a União Europeia constituída por uma inultrapassável pluralidade de povos distintos.» (pp. 31-2)

«O facto é que vivemos hoje, como escrevi no meu ultimo livro, uma era sem retorno, facto que tem implicações em todos os domínios da nossa vida individual e colectiva. Uma era estruturada por uma lógica do ilimitado - da dívida, dos direitos, do consumo, da energia, da vida, das fronteiras, etc. - que combinou, como factores da construção do nosso novo mundo, o financismo, a globalização, as novas tecnologias e o hiper-individualismo.» (p. 32)

O autor considera que a União Europeia criou, pelas suas práticas, um extremismo do centro, agitando o espantalho do populismo, populismo que foi um fenómeno político historicamente bem datado, nada tendo a ver com as formas políticas demagógicas surgidas nos últimos anos. O recurso ao termo apenas aproveita os que querem defender o status quo. «Pensar a política como consenso é uma armadilha que impede de ver que os extremismos se podem desenvolver, não só na radicalidade dos limites, mas também no dogmatismo do centro.» (p. 36) «Terão sido estas ideias que inspiraram o "centrismo radical" que foi explicitamente reivindicado  por Emmanuel Macron, fórmula que ele procurou depois traduzir no slogan "en même temps" (de direita e de esquerda, entenda-se), fórmula contudo não isenta de riscos, nomeadamente de natureza autoritária, como o de se pretender identificar o "en même temps" com uma posição análoga aos justo meio aristotélico, esquecendo que Aristóteles alertara para o perigo de, ao fazê-lo, se colocar numa posição de razão absoluta, procurando desse modo ilegitimar as outras posições, o que faria do extremo centro um extremismo afinal idêntico a todos os outros.» (p. 38) «Afinal, são os centristas, e não os esquerdistas ou os direitistas, aqueles que mais hostis se mostram à democracia... e também os que mais abertos e tolerantes se declararam perante o autoritarismo. (David Adler, "The Centrist Paradox", 2018, Universidade de Oxford)» (p. 39)

Segundo Tony Corn [L'Europe à la Dérive], o europeísmo consistiria em tornar o sentimento europeu num autêntico "ópio do povo". «No origem da perspectiva deste europeísmo como um extremismo do centro encontra-se uma surpreendente, mas significativa convergência entre o comunismo e o europeísmo, que ele [Corn] identifica em dois pontos muito precisos: no absoluto e dogmático primado dado à economia, por um lado, e no objectivo de abolir (se possível integralmente) a política, substituindo o governo dos cidadãos pela administração das coisas, por outro lado.» (p. 41)

A crise que se vive nas últimas décadas tem uma diferença e uma gravidade especiais que afectam a democracia. «O que temos hoje são instituições nacionais ou internacionais bloqueadas por anos e anos de interesses instalados e de múltiplos desajustes à realidade. O que temos hoje são líderes que preferem as fantasias do marketing político ao conhecimento da história, e trocam a visão de futuro pela obsessão dos ciclos eleitorais. O que temos hoje são Estados fracos, muitas vezes em estado terminal, e que agora vemos serem descaradamente parasitados por muitos daqueles que tudo fizeram para os fragilizar. O que temos hoje é uma Europa sem élan nem ambição, presa aos seus privilégios históricos e aos seus interesses nacionais.» (pp. 49-50)

«Porque estas décadas também foram um tempo de esvaziamento ideológico e de constante virtualização da realidade, em nome de exigências cada vez mais ocas. Falar de reforma passou a ser um estereótipo sem conteúdo. Proclamar a modernidade tornou-se num tique sem projecto. Invocar as novas tecnologias transformou-se no álibi de todos os impasses estratégicos. E o essencial continua por fazer: o essencial é que se ultrapasse, com decisões e medidas concretas, o abismo que se criou entre o poder da finança e o Estado de direito, entre as dinâmicas do mercado e as exigências da democracia.» (p. 50)

«A regulação que se impõe com mais urgência é, pois, a das interdependências - da finança, do meio ambiente, do trabalho, da fiscalidade, etc. - que, se não forem articuladas, podem conduzir o mundo ao caos.» (p. 52)

«Neste ponto, é bom ter presente que, quando hoje falamos de democracia, estamos a falar de uma realidade relativamente recente, que progressivamente se configurou e instalou no Ocidente a partir de meados do século XX, no pós-guerra, portanto. Num contexto em que ela pôde aparecer como o resultado de uma tensão em que o capitalismo aparecia como condenado pela história, em que a revolução se confirmava como tema político incontornável e em que o socialismo democrático se impunha como dominante. Tensão que converge de um modo inédito durante o chamado período dos "trinta gloriosos" na vitória de um Estado protector, em que, na sintética frase de Marcel Gauchet, "o socialismo reina e a democracia cristã governa - eis como se pode resumir o compromisso típico da Europa do pós-guerra" (Gauchet, M. 2007/2017, vol. 3, p. 573).» (pp. 56-7)

«O facto, hoje, é este: o capitalismo revela-se incapaz de encontrar soluções para a crise, mas também não se vê aparecerem alternativas estruturadas e credíveis que o desafiem. Só assim se compreende que uma crise desta natureza, dimensões e consequências - a maior que o capitalismo viveu desde 1929 - tenha completamente escapado à esquerda, que (com excepções sem significado político) vem somando desaires eleitorais desde então.» (p. 61)

«Há, claro, algumas razões para isto. Em primeiro lugar, generalizou-se a ideia de que a queda do muro de Berlim foi a vitória de uma forma de democracia que encontrava a sua forma final na pura e simples identificação com o mercado. Seguidamente, não se compreendeu que a globalização minava na sua raiz o compromisso social-democrata entre o trabalho e o capital, deixando o trabalho preso às suas raízes nacionais enquanto o capital se tornava cada vez mais livre num tabuleiro cada vez mais mundial. E a terceira razão encontra-se na identificação dos valores da modernidade com os da metamorfose do capitalismo na sua versão financista ~- e aqui a "terceira via" inspirada pela dupla Anthony Giddens/Tony Blair teve especiais responsabilidades. E tudo isto, note-se, sem nenhum pressentimento do brutal impacto que as economias viriam a ter no mundo do começo do século XXI.» (p. 61)

«É preciso sublinhar ainda uma outra razão, nunca referida mas que está, como já tenho dito, na origem do modo como, nas décadas de 80 e 90 do século passado, o tema europeu funcionou como compensação dos fracassos sofridos e das dificuldades encontradas pela social-democracia. Com François Mitterrand, Mário Soares ou Filipe González, num primeiro momento. e depois com Lionel Jospin, António Guterres ou Gerard Schröeder, procurou fazer-se da construção europeia - numa pirueta política de pesadas e impensadas consequências - o ersatz das ilusões perdidas do socialismo democrático.» (pp. 61-2)

Prossegue o autor referindo que a "saída da religião" que define hoje a civilização ocidental não evitou a sujeição a um novo deus, o mercado, instituído como valor supremo. Trata-se de uma nova servidão voluntária, cujo modelo foi interiorizado pelos indivíduos. 

«Nasceu aqui um fenómeno novo, que tenho designado como endividualismo, um fenómeno que cresceu com o paradigma do ilimitado (da energia, do consumo, dos direitos, da dívida, etc.) e triunfou com a convergência das metamorfoses do indivíduo e do consumo. Foi na verdade este endividualismo que deu forma, tanto ao ultraliberalismo como ao mini-socialismo dos nossos dias - ele constitui um novo tipo de individualismo, na verdade um "individualismo de massas" que nas últimas décadas mudou toda as regras do jogo político.» (p. 63)

«E o que é pior é que se continua a ler a realidade com as lentes de há décadas, as mesmas que levaram a não se pressentir as consequências da globalização, a não se perceber a transformação do capitalismo em financismo, a desvalorizar-se as alterações demográficas, a negligenciar-se a questão da distribuição da riqueza, a não se detectar o retorno das mais brutais desigualdades, a ignorar-se a fragilização do Estado-providência, a incensar-se a "estupidez sistémica" induzida pelas novas tecnologias.» (p. 65)

«É que vivemos hoje o pico do paradoxo democrático que exige cada vez mais igualdade, mas, simultaneamente, pretende ignorar as diferenças que a própria conquista da igualdade expõe, [...]» (p. 69)

Afirma o autor que vivemos hoje sob o signo do ilimitado. Tudo se exige, mesmo sabendo-se que certas reivindicações são inviáveis, em que a protecção diminui e a fragilização cresce. 

«[A] constatação quotidiana de que os políticos, seja qual for a sua ideologia, são incapazes de resolver os principais problemas do mundo, seja no domínio do emprego ou da saúde, da educação ou da finança.» (p. 73) 

«Na Europa este processo acentuou-se ainda mais com a perda de soberania dos Estados, conduzindo todos estes factores ao que Wendy Brown chamou a "des-democratização" das sociedades contemporâneas (Brown, W., 2003).» (p. 74)

Citando Yascha Mounk, Carrilho alude depois às democracias iliberais e aos liberalismos não democráticos, sendo as primeiras umas «democracias sem direitos, um sistema fechado que exclui a população de qualquer participação cívica concentrando todo o poder nas mãos de uma pequena mas poderosa elite, exercendo uma verdadeira tirania da maioria, onde não existe respeito por grupos minoritários, como acontece na Hungria ou na Polónia»; e as segundas as dos «liberalismos sem democracia, organizadas em torno de um simulacro mais ou menos sofisticado de democracia, mas onde a forma de governo é burocrática e tecnocrática, excluindo na realidade o povo das suas decisões, a fim de proteger o status quo, como - a seu ver - é o caso da União Europeia.» (p. 76)

«Para se revitalizar a democracia é preciso entender - e aqui seguimos as análises e as propostas de Pierre Rosanvallon - que a sua matriz histórica "representacionista" se transformou, que o seu ponto de maior fragilidade se situa agora justamente aqui, no modo como tradicionalmente se estabeleceu que a parte vale pelo todo. E, depois, no corolário segundo o qual o momento eleitoral vale, não transitoriamente, mas para toda a duração de cada mandato.» (p. 78)

«É por isso fundamental, nas democracias contemporâneas, distinguir e respeitar as duas formas bem distintas de legitimidade, a da eleição e a da acção.» (p. 84)

«A evolução oligárquica das nossas democracias está por isso, como há muito vem explicando Marcel Gauchet, em sintonia com uma profunda despolitização das sociedades, hoje tão atordoadas que não conseguem sequer definir com um mínimo de clareza, nem o que querem, nem o que recusam (cf. Gauchet, M. 2002 e 2007-2017)» (p. 88)

«[...] não será melhor começar a pensar no que poderá vir depois da democracia? De começar a pensar em termos de apocalipse, tal como Jacques Derrida o definiu ao escrever "o fim aproxima-se, mas o apocalipse é de longa duração" (Derrida, J., 1983, p. 81)? Dito de outro modo, não estaremos nós a viver o momento apocalíptico da democracia, no sentido em que já tantas e tão profundas mutações ocorreram e em que tantas metamorfoses já hoje se insinuam?» (p. 93)

«A colocação deste tipo de hipóteses é sempre recebida, não como uma possibilidade ou um desafio, mas como uma provocação, quase como se de um blasfema se tratasse. E logo chove, claro, em coro e em catadupa, a famosa frase de Winston Churchill, que "a democracia é a pior forma de governo, excepto todas as outras", omitindo-se sempre que o que Churchill afirmou a 11 de Novembro de 1947 na Câmara dos Comuns foi algo diferente, foi uma frase ligeiramente mais longa, que acrescentava a essas outras formas de governo o importante detalhe "that have been tried time to time". O que, a meu ver - e bem - liberta o futuro de um diagnóstico que só dizia respeito ao passado.» (pp. 93-34)

«Ora, o que é preciso ter em conta é que as sucessivas revoluções dos últimos cem anos, mais coisa menos coisa, implicaram imensas mudanças nas sociedades, bem como nos próprios indivíduos. Mudanças de tal ordem que se impõe perguntar se as transformações tecnológicas e culturais, entretanto ocorridas nas sociedades desenvolvidas, apenas alteraram, embora às vezes muito substancialmente, as características, as rotinas e as expectativas do ser humano, ou se elas não terão tido consequências e impactos de outra ordem, ao ponto de ser legítimo - ou mesmo imperativo - perguntar se não seremos nós já hoje, na verdade, seres mutantes.» (p. 97)

«Aqui, as novas tecnologias foram determinantes e sê-lo-ão certamente cada vez mais, elas criam um contexto completamente inédito para todas as modalidades de viver o corpo e o tempo. Na verdade, é com elas que efectivamente se muda de fase, no sentido da mutação antropológica a que atrás me referi. É que com elas, e nomeadamente com o telefone portátil e o computador pessoal, com os "tablets" e os "smartphones", que a definição do ser humano passa a ser dada pela sua conectividade, uma vez que a sua identidade decorre agora fundamentalmente, não do seu enquadramento familiar, profissional ou social, mas de se estar ligado, e das modificações desta conexão.» (p.101)

«Por outro lado, é preciso ter bem em conta que, para um ser humano ligado, o tempo é apenas o da actualidade, que assim lhe impõe viver no regime do mais completo curto-termismo. Uma actualidade que invade -como se a pudesse substituir - a própria vida interior dos indivíduos, ao mesmo tempo que os priva de qualquer visão global da sociedade a que pertencem. O que acontece porque se vive num regime de uma aceleração tal, que ela dilui a percepção das várias temporalidades da existência humana num presente perpétuo, excitantemente extático, em que os acontecimentos se multiplicam na razão inversa da compreensão do seu sentido. O tempo comprime-se, o atordoamento instala-se, vive-se com a angustiante noção - que contraria todas as promessas da utopia tecnológica - que realmente não há tempo para nada.» (p. 103)

«Ora, uma das razões mais fortes dos equívocos políticos do nosso tempo está justamente aqui, na frequente confusão criada pela errada identificação da democracia, da sua natureza e dos seus objectivos, com as ideologias, a sua natureza e os seus objectivos. Porque democracia e ideologia são coisas muito diferentes, pois enquanto estas têm uma natureza programática e objectivos programáticos, a democracia tem uma natureza reguladora e objectivos orientadores.» (p. 106)

«Foi esta confusão [entre democracia e ideologia] que, em boa medida, levou a que o processo de declínio da democracia fosse paralelo ao da erosão das ideologias, do seu lento desaparecimento, seja qual for a ideologia que se considere. Socialismo, liberalismo, democracia-cristã, comunismo, anarquismo, todos estes "ismos" ideológicos, bem como as suas diversas variantes, foram desaparecendo nas últimas décadas, com velocidade e identidades distintas conforme as diversas circunstâncias históricas que se considere.» (pp. 107-8)

«Há contudo aqui que considerar dois casos, que podem parecer desmentir o que acabo de afirmar: o do liberalismo triunfante na sua versão neoliberal, que arrancou nos anos 80 com a dupla Thatcher/Reagan e com o movimento da globalização. E o da social-democracia, que ensaiou um movimento de "modernização" nos anos 90, liderado por Tony Blair e a sua Terceira Via. Abordaremos numa outra ocasião o caso do liberalismo e dos principais equívocos que o rodeiam, deixando no entanto já bem claro que o seu domínio foi indiscutível nestas últimas décadas, tão indiscutível quanto o foi o fracasso da réplica social-democrata, apesar de nos anos 90 o socialismo democrático ter  chegado a dominar mais de uma dúzia de governos ocidentais.» (p. 109)

«E essa nova realidade é, insisto, a de um financismo global absolutamente inédito, coadjuvado - num contexto de intensa globalização - por um individualismo tão robusto como disseminado e por umas novas tecnologias que, numa convergência ainda sem nome - eu tenho proposto, como já referi, o de "endividualismo" -, fazem ajoelhar toda a gente, reinventado assim a "servidão voluntária" tão bem caracterizada pelo filósofo Boécio.» (p. 110)

«[...] sem formas de pensamento que estruturem convicções colectivas e assumam no tempo o compromisso da sua concretização - eram afinal isso, no essencial, as ideologias -, a política rendeu-se ao tacticismo sem princípios, ao pragmatismo sem visão e ao curto-prazismo sem responsabilidade.» (p. 111)

«Quero com isto dizer que a chamada "crise da democracia", que indiscutivelmente existe e exibe as características que fomos vendo, traduz uma outra crise, e que esta é que é a sua verdadeira causa de tal modo que, sem alterações a esse nível será difícil, talvez mesmo impossível, que algo mude. Essa causa, que está na raiz da crise da democracia é, na minha hipótese, a crise da própria sociedade em que se ancora e desenvolve a democracia.» (p. 112)

«[...] é na crise da sociedade, dada a unidimensionalidade que ferreamente se impõe a todos (e que tem no extremismo do centro uma das suas formas políticas de eleição), que se encontra a verdadeira raiz da crise da democracia, que a exprime de diversos modos, conforme as circunstâncias históricas, geográficas e políticas em que ela ocorre.» (p. 114)

«Na origem da opacidade em relação à origem da crise da democracia, estarão certamente muitos factores, mas creio ser de sublinhar o papel do que Jean-Marie Guéhenno chamou "les mensonges de 1989", que me parece preferível designar como os equívocos de 1989. E que foram três: primeiro, a confusão entre o fracasso do sistema soviético e a vitória da democracia; depois, a incapacidade de repensar seriamente a construção europeia; por fim, a insensibilidade quase total ao impacto que o fim da Guerra Fria teve na estabilidade das nações e, portanto, nas instituições internacionais que elas constituíam.» (p. 115)

No último capítulo, Carrilho refere-se a uma nova era política, a que chama era das geringonças. Não sendo exclusivo de Portugal - como o governo formado em 2015 por António Costa, com o apoio do Partido Comunista, do Bloco de Esquerda e de "Os Verdes" - esse tipo de alianças foi inaugurado no princípio desse ano por Alexis Tzipras, na Grécia, com o "Syriza" e os "Gregos Independentes" (de direita). Existiu mais tarde em Itália, com o "5 Estrelas e a "Liga do Norte"; em Espanha, com uma heteróclita coligação liderada pelo PSOE; em 2021, na Alemanha, com Olaf Scholz a fazer a aliança dos sociais democratas com a direita liberal e a esquerda ecologista; e em França «que apresenta, por um lado, uma geringonça atípica, em constante metamorfose em torno do seu próprio vazio estratégico e pragmático, criada por Emmanuel Macron com o seu "En Marche", agora rebaptizado como "Renaissance", e por outro lado a pletórica geringonça de Jean-Luc Mélenchon que, com o "NUPES", aglutinou nada menos do que 16 forças políticas distintas...» (p. 118)

«Esta era das geringonças traduz, na minha perspectiva, o apogeu do cinismo político contemporâneo, que vai adoptando as máscaras que a situação mais aconselha para aceder ao poder. Definitivamente pós-ideológica, esta era impõe-se no século XXI simultaneamente como o novo horizonte político de uma época que, na realidade, vive sem ideologias, bem como um novo dispositivo, estruturalmente híbrido, de governação dos homens e de administração das coisas, realidades que aparecem hoje cada vez mais identificadas.» (p. 118)

«Se assim for, a era das geringonças será a resposta política de uma nova época. E ela surge marcada por, pelo menos, oito mutações decisivas: 1) a dos programas pelas performances, 2) a das ideias pelos interesses, 3) a da substância pelo estilo, 4) a do colectivo pelo conectivo, 5) a do social pelo societal, 6) a do cidadão pelo consumidor, 7) a da pessoa pelo indivíduo, 8) a do nacional pelo global, abdicando assim de qualquer visão ou perspectiva de futuro. De uma época que vive como se estivesse anestesiada - ora em júbilo, ora em depressão - por uma actualidade frenética que é permanentemente ritualizada em termos de uma "crise interminável" pelos irmãos siameses da comunicação e da política.» (p. 119)

E termino, porque este texto vai já demasiado longo.

* * * * *

Pensara fazer um resumo das teses expendidas por Manuel Maria Carrilho, mas a importância do conteúdo do livro e o risco de involuntariamente trair o pensamento do autor em matérias tão delicadas, levou-me  proceder à transcrição de várias passagens, procurando transmitir as preocupações expressas na obra. Obra cuja leitura vivamente recomendo.

sábado, 26 de novembro de 2022

PETRA VON KANT E PETER VON KANT

ESTÁ LÁ TUDO!!!

Decorridos cinquenta anos sobre o filme As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972), de Rainer Werner Fassbinder, surge este ano Peter von Kant (2022), de François Ozon. Como peça de teatro, Die bitteren Tränen der Petra von Kant tivera estreia em 1971, em Frankfurt.

O texto de Peter von Kant  é praticamente idêntico ao de As Lágrimas Amargas..., mutatis mutandis a indispensável adaptação às circunstâncias das personagens. A relação entre duas mulheres transforma-se na relação entre dois homens. Adaptação realizada de forma magistral por François Ozon, que vai ao ponto de incluir no elenco Hanna Schygulla, atriz-fetiche de Fassbinder, no papel de Mãe, ela que interpretara há cinquenta anos o de amante da protagonista de As Lágrimas...   

Em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, Petra, uma designer de moda apaixona-se por uma rapariga de condição social modesta (Karin), instala-a em sua casa mas as relações deterioram-se e Karin, já celebrizada pela amante como manequim, acaba por abandoná-la. Petra fica devastada.

Em Peter von Kant, Peter, realizador cinematográfico, apaixona-se por um rapaz árabe (Amir), instala-o em casa, mas as relações entre ambos tornam-se também tempestuosas e Amir, já promovido no cinema pelo amante, vai também abandoná-lo. Peter fica igualmente devastado.

Enquanto no primeiro filme as duas personagens são alemãs, no segundo Amir é árabe (e o próprio actor que interpreta o papel é também árabe, Khalil ben Gharbia) para tornar mais picante a relação. Em fin connaisseur do meio, François Ozon cede à "tentation arabe" de que nos fala Frédéric Mitterrand no seu livro La Mauvaise vie. E baptiza o rapaz de "Amir" (ou Emir), que em árabe significa "Príncipe".

Repare-se que Ozon não hesitou mesmo em conservar a cena de Fassbinder em que é revelada a infidelidade conjugal dos amantes. Enquanto Karin diz a Petra que o facto de ter chegado muito tarde a casa uma noite se deveu a ter estado na cama com um negro, com uma pele de seda e um volumoso pénis, também Amir confessa a Peter que dormiu com um rapaz negro, igualmente de pele sedosa e generosamente dotado em termos sexuais. A alusão à performance sexual dos negros é perfeitamente compreensível em Fassbinder, que teve vários amantes negros, em especial El Hedi ben Salem, fiel à tradição de que os negros são os homens que a natureza privilegiou com falos de maior tamanho.

Em entrevista a "L'Obs"(nº 3011, de 30.06.2022), Denis Ménochet, que interpreta magistralmente o papel de Peter, diz: «Et puis Peter von Kant, c'est aussi François [Ozon]».

É indiscutível que Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) foi um dos mais notáveis e prolíferos realizadores alemães (também dramaturgo, actor e encenador) da segunda metade do século passado. Na sua curta carreira, devem-se-lhe cerca de 40 filmes e 20 peças de teatro.

As suas grandes preocupações foram a questão das relações sexuais (especialmente homossexuais) e sentimentais, a diferença das idades e das classes sociais, o espírito pequeno-burguês de crítica e de denúncia dos relacionamentos afectivos quando considerados impróprios pela sociedade, e, sobretudo, a solidão. Muitos dos seus próprios problemas transitaram para a sua produção artística. A sua desilusão com a humanidade levou-o a mergulhar no álcool e nas drogas que haviam de vitimá-lo. Sendo certamente homossexual e homem de esquerda, Fassbinder foi estranhamente acusado de não ter mostrado correctamente nos seus filmes a realidade que retratava, quer pelas associações homossexuais (e ainda não havia "me too" ou "LGBTI", nem o politicamente correcto tinha assomado à porta), quer pelas forças políticas marxistas ou esquerdistas e até pelos movimentos anti-semitas. E, naturalmente, foi atacado pelos conservadores. Possivelmente, hoje, nem conseguiria fazer filmes ou apresentar as suas peças em teatros.

A peça As Lágrimas Amargas de Petra von Kant foi representada várias vezes em Portugal. Estou a recordar-me da produção pelo Grupo Teatro Hoje, no Teatro da Graça (1986), com encenação de Carlos Fernando e interpretação de Lia Gama, Elisa Lisboa, Fernanda Alves, Sara Lima, Maria José Pascoal e Isabel de Castro. Um grande espectáculo a que tive o privilégio de assistir.

Como aconteceu com Fassbinder, talvez o filme Peter von Kant venha a ser ainda (inversamente na criação) uma peça de teatro. Para já, é um filme excepcional! 

 

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

MADAME BOVARY, C'EST MOI

A recente leitura do último livro de Julian Barnes, Elizabeth Finch, suscitou-me o desejo de reler O Papagaio de Flaubert (1988) - (Flaubert's Parrot, na edição original, 1984) - que tornou célebre o seu autor, ainda que The Sense of an Ending (2011), galardoado com o Booker Prize, seja considerado o seu livro mais importante, publicado em edição portuguesa com o título O Sentido do Fim (2011).

Excelente conhecedor da literatura francesa, estudioso de Flaubert, Julian Barnes reúne em O Papagaio de Flaubert a biografia, a ficção e o ensaio, tudo envolvido num notável sentido de humor e demonstrando a posse de uma vastíssima cultura. Aliás, uma ironia fina percorre a obra do princípio ao fim. 

Gustave Flaubert (1821-1880) foi um escritor que marcou indelevelmente a literatura francesa, sendo de realçar a profundidade das suas análises psicológicas sobre o comportamento humano e sobre a sociedade em geral. Entre os seus livros, deve assinalar-se Madame Bovary (1857), que o tornou conhecido da França e do mundo e do qual ele dizia não gostar, Salammbô (1862), L'Éducation Sentimentale (1869), Bouvard et Pécuchet (1881) e Dictionnaire des Idées Reçues (1913).

Publicado inicialmente em revista, o romance Madame Bovary provocou escândalo e levou o escritor ao banco dos réus. À pergunta sistematicamente formulada pelos seus leitores sobre a personalidade de Emma Bovary, a protagonista, Flaubert ironicamente (ou talvez não tanto) respondeu: «Madame Bovary, c'est moi.»

O título do livro tem como pretexto um papagaio embalsamado que Flaubert teve sobre a sua secretária, e acerca do qual se formularam os mais diversos juízos. Julian Barnes debruça-se sobre os vários aspectos da vida do escritor, desde Rouen, onde nasceu e seu pai era médico no hospital Hôtel-Dieu até à sua morte, provavelmente devia a AVC, em Croisset. É mencionada a epilepsia que o condicionou desde a juventude até à sífilis, contraída na sua viagem ao Oriente. O século XIX tornara obrigatória aos escritores uma viagem a terras do Oriente e Flaubert não falhou. Acompanhou-o o seu amigo e escritor Max du Camp (já conhecedor dos sítios) que lhe serviu de cicerone, especialmente no Egipto, e o iniciou nos banhos públicos do Cairo (nesse tempo eram abundantes) onde Flaubert pôde copular com jovens rapazes egípcios, que frequentavam tais locais com essa exacta finalidade.

Com pouca inclinação para o matrimónio, Flaubert nunca casou, embora lhe sejam atribuídas duas grandes paixões, Elisa Schlesinger e Louise Colet, a sua "Musa", ainda que de temperamento antagónico e incompatível em questões estéticas e da qual viveu sempre afastado. As relações de Flaubert com as mulheres foram sempre muito complicadas. Conhecem-se-lhe também alguns amigos íntimos: Alfred Le Poittevin, cuja morte em 1848, aos trinta e dois anos, levou Flaubert a dizer: «Vejo que nunca tinha amado ninguém - homem ou mulher - como o amei a ele»; Louis Bouilhet, seu mentor, que morreu em 1869 e a quem um dia chamou «a água Seltzer que me ajudou a digerir a vida»; Maxime du Camp, que o acompanhou ao Egipto, e também na vida, como os anteriores, e foi membro da Academia Francesa.

Há muitos livros sobre Flaubert. Um, que não li, não foi favoravelmente acolhido aquando da sua publicação, apesar do autor ter sido, nos seus áureos tempos, uma espécie de Papa das Letras: L'Idiot de la Famille (1971), de Jean-Paul Sartre. Foram publicados três volumes (sensivelmente 4 000 páginas) mas Sartre não acabou a obra. E Flaubert não foi, em qualquer sentido, o idiota da família.

Ao longo das páginas de O Papagaio de Flaubert Julian Barnes procede a diversas e curiosas citações do "biografado":

«O sonho da democracia é levar o proletariado a atingir o nível da estupidez conseguido pela burguesia.» (p. 97)

«A democracia não é a última palavra da humanidade, da mesma maneira que o não foram a escravatura, o feudalismo, ou a monarquia.» (p. 151)

E também algumas apreciações de Barnes:

«Recordar o que os Goncourt disseram de Flaubert: "Embora seja franco por natureza, nunca é totalmente sincero no que diz, sente, sofre ou ama." Depois recordar o que todos disseram dos Goncourt: os irmãos invejosos e indignos de confiança. Recordar ainda a falibilidade de Du Camp, Louise Colet, da sobrinha de Flaubert, do próprio Flaubert. Perguntar com violência: como é que podemos conhecer uma pessoa?» (p. 183)

«Passou [Jean-Paul Sartre] dez anos a escrever L'Idiot de la famille, quando podia muito bem ter estado a escrever panfletos maoístas. Uma Louise Colet intelectual, constantemente a importunar Flaubert, que só queria que o deixassem. Concluir: "É melhor desperdiçar a velhice de que não fazer nada com ela." (pp. 183-4)

«Gustave na juventude: "Há dias em que desejamos ser uma mulher." Gustave na maturidade: "Madame Bovary, c'est moi.» Quando um dos seus médicos lhe chamou "velha histérica", considerou a observação "profunda"» (p. 186)

«[Sobre as prostitutas] Necessárias no século XIX para apanhar sífilis, sem o que ninguém se podia considerar um génio. O grupo de corajosos inclui Flaubert, Daudet, Maupassant, Jules de Goncourt, Baudelaire, etc. Houve escritores que não foram atingidos? Se o houve, eram provavelmente homossexuais.» (p. 186) 

«[Sobre Fonética] (a) O co-proprietário do Hôtel du Nil, Cairo, onde Flaubert ficou em 1850, chamava-se Bouvaret. O protagonista do seu primeiro romance chama-se Bovary; o co-protagonista do seu último romance chama-se Bouvard. Na sua peça Le Candidat há um Comte de Bouvigny; na sua peça Le Château des coeurs há um Bouvignard. Será tudo isto deliberado? (b) O nome de Flaubert foi impresso erradamente pela primeira vez na Revue de Paris como Faubert. Havia um merceeiro na rue Richelieu chamado Faubet. Quando La Presse noticiou o julgamento de Madame Bovary, chamaram ao autor Foubert. Martine, a femme de confiance de George Sand, chamava-lhe Flambart. Camille Rogier, o pintor que vivia em Beirute, chamava-lhe Folbert: "Percebeu a subtileza da piada?" escreveu Gustave à mãe. (Qual é a piada? Provavelmente a tradução em duas línguas da imagem que o romancista tem de si próprio: Rogier estava a chamar-lhe Urso Louco). Bouilhet também lhe começou a chamar Folbert. Em Mantes, onde costumava encontrar-se com Louise, havia um café Flambert. Tudo isto será coincidência? (c) Segundo Du Camp, o nome Bovary deve pronunciar-se com um o breve. Devemos seguir a sua indicação; em caso afirmativo, porquê?» (p. 211)

Também são várias as alusões de Julian Barnes à sua própria mulher, Patricia (Pat) Kavanagh (1940-2008), que morreu vítima de um tumor cerebral.  Pat nasceu em Durban e após outras experiências profissionais tornou-se agente literária, inclusive do seu futuro marido. Curiosamente, nos anos 1980 abandonou Barnes para ir viver com a escritora lésbica Jeanette Winterson, regressando mais tarde ao domicílio conjugal. É suposto que Barnes amava realmente a esposa.

Concluindo o livro, Julian Barnes alude à morte de Flaubert por apoplexia, refutando a tese de que se teria suicidado. E retoma o caso do papagaio embalsamado, que afinal seriam dois. Um existente na "casa" de Croisset (um pavilhão transformado em museu e que subsistiu à demolição da casa) e outro no Hôtel-Dieu, em Rouen. Ambos os possuidores disputam agora a autenticidade. Mas afinal, segundo Barnes, encontram-se muitos outros papagaios embalsamados no Museu de História Natural, em Rouen. Qual o que esteve realmente sobre a secretária de Flaubert? A dúvida subsiste!

Enfim, um interessante e proveitoso livro sobre Gustave Flaubert cuja leitura permanece tão cativante como na altura em que foi publicado.

A tradução portuguesa parece-me conseguida, à parte um ou outro erro, como a insistência em escrever "percursor" em ver de "precursor" (por exemplo, na página 182).