Comprei há alguns dias duas traduções portuguesas de obras inglesas sobre Tut-Ankh-Amun, editadas, ao que suponho, a propósito do centenário da descoberta do túmulo deste faraó, o único que chegou (quase) intacto até ao nosso tempo.
Embora receoso da qualidade das traduções, arrisquei. Acabei, agora, de ler uma delas. Trata-se de Tutankhamon e o Túmulo que Mudou o Mundo (Tutankhamun and the Tomb That Changed the World) (2022), de Bob Brier.
Tinha lido deste autor, há vinte anos, um livro sobre o assassinato de Tut-Ankh-Amun, obra de carácter mais "policial" e desconhecia que ele seja hoje considerado um dos maiores egiptólogos e especialista em múmias.
O texto que acabei de ler é longo e confuso. Uma parte das informações consta já da célebre obra publicada por Howard Carter, que descobriu a sepultura. Brier acrescenta-lhe algumas informações complementares, não discriminadas exaustivamente por Carter, e acrescenta-lhe as pesquisas que foram realizadas após a publicação de Carter, por outros especialistas contemporâneos de Carter ou posteriores, incluindo as radiografias e tomografias sobre o esqueleto do faraó, o Projecto Múmia Egípcia.
Lamento dizer que a tradução é deficiente e que as transliterações dos nomes é surpreendente. Escrever Tutankhamon, em vez de Tut-Ankh-Amun ou Tut-Ankh-Amen não me choca, são variantes aceitáveis, por razões várias. Mas há outras coisas inaceitáveis.
Carnac em vez de Karnak, é inaceitável; Tel el Amarna em vez de Tell el Amarna, é errado. Tell تل é colina em árabe, e escreve-se Tell, com dois "l"; Aquenáton, em vez de Akhenaton (versão oficial), é muito mau; Deir el Bahri, em vez de Deir el Bahari (ortografia tradicionalmente aceite), é simplificação desnecessária, mas pior é isto: na página 40 vem escrito «O nome Deir el Bahri significa "Lugar do Mosteiro do Norte" em árabe». Ora Deir دير significa "mosteiro", mas Bahari بحري significa "do mar" (ou do rio, dada a proximidade do Nilo). Eu sei que em alguns sítios é referido "mosteiro do norte", incluindo a Enciclopédia Britânica, mas é uma fantasia.
Na página 38, está escrito: «Cerca de 200 a.C., sete séculos antes de Tutankhamon nascer...». Tendo o faraó nascido cerca de 1300 A.C., esta frase é incompreensível. Segundo ela, ele teria nascido por volta de 500 E.C. !!! Talvez devesse estar escrito 2000 A.C. As revisões fazem muita falta.
Na página 48 lê-se: «O reis, capataz dos operários...» Ora não é "reis" mas "raïs", palavra que em árabe رئيس significa chefe, por excelência o chefe do Estado, mas que, por deferência, pode ser usada em outras circunstâncias. Recordo-me que, aquando das minhas primeiras visitas ao Egipto, os jovens engraxadores de sapatos que exerciam na rua (como outrora em Portugal) me tratavam por "raïs"!
Na página 241, está escrito que o «O país era governado por Maomé Ali». Ora o khediva chamava-se Mohammed Ali, ou até mais correctamente Mehemet Ali. Em Portugal é de uso chamar-se Maomé ao profeta Muhammad, o que é um francesismo decorrente de Mahomet, aliás um termo depreciativo. Mas tornou-se um uso. Agora usar Maomé para qualquer outra pessoa em vez de Mohammed é péssimo.
Na página 243, é referido Ismael Paxá. Trata-se do khediva Ismaïl Pasha, como é universalmente conhecido.
Na página 281, está escrito: «Os murais indicavam tratar-se do túmulo de Osocor II da XXII dinastia, que governou mais de três séculos antes de Tutankhamon.» Está errado. Osocor II é posterior a Tut-Ankh-Amun. Este é da XVIII Dinastia, Osocor (ou Osorkon) é da XXII e governou 500 anos depois de Tut-Ankh-Amun.
Há muitos mais erros que não apontei e, possivelmente, outros de que não me dei conta numa leitura rápida. A tradução é má, a revisão parece inexistente, e também é provável que haja disparates no próprio original de Bob Brier, que não li. No único livro que conheço de Bob Brier, lido há muitos anos, este propunha uma tese para o assassinato de Tut-Ankh-Amun, que na presente obra agora refuta. Fiquei com a opinião de que é pouco rigoroso, talvez mais interessado em especulações com fins comerciais.
Existe uma suposição - antiga - de que o túmulo da rainha Nefertiti se encontra por trás da câmara funerária de Tut-Ankh-Amun. Nunca houve autorização para efectuar uma perfuração, por receio de danificar as pinturas, mas fizeram-se já varrimentos com geo-radar, que nada detectaram. Em 2018, procedeu-se a um terceiro varrimento com uma equipa da Universidade de Turim. A conclusão das três operações foi unânime. Não existem câmaras ocultas, o que contraria a tese de Nicholas Reeves, que sustenta a existência da câmara (e tesouro???) de Nefertiti.
Os capítulos da III Parte do Livro (O Legado de Tutankhamon) são os que acrescentam alguma coisa ao que já se sabia. Brier sustenta que o faraó funcionou como um activista político, pois foi a partir da descoberta do seu túmulo que o Egipto começou a protestar contra os ingleses, que administravam o país, no sentido de passarem a governar-se autonomamente. E a questão da pertença do seu tesouro fez despertar esse sentimento nacional. Não terá sido exactamente assim, mas poderá ter contribuído. Também foi importante que a área das Antiguidades estivesse sob controlo não dos ingleses mas dos franceses, desde o tempo da expedição de Napoleão Bonaparte.
O texto é bastante desordenado e pouco sistematizado, sendo confusas as próprias genealogias, depois de tudo o que até hoje escreveram conceituados historiadores e egiptólogos de muitos países. A que acresce a utilização do sinistro Acordo Ortográfico 90, mas, neste caso, a culpa é dos editores. Também há no livro muitas repetições e coisas supérfluas.
O primeiro museu das antiguidades egípcias foi na zona de Bulaq, no norte do Cairo. O actual é na Praça Tahrir, no centro da cidade. O novo (o Grande Museu), que deveria ser inaugurado ainda este ano (a abertura foi prevista para cerca de dez anos atrás, mas sucessivamente adiada, também devido à Revolução), é junto às pirâmides de Gizeh. Entretanto, foi inaugurado, em 2021, o Museu Nacional da Civilização Egípcia, a sul e do outro lado do Nilo, na zona do mais antigo Cairo (Fustat), perto do Lago Ain as-Sirah.
Em 1858, Auguste Mariette foi nomeado primeiro director do Serviço de Antiguidades. Está sepultado num sarcófago no jardim do Museu Egípcio da Praça Tahrir, junto ao qual me costumava sentar quando saía de visita do Museu. Sucedeu-lhe o egiptólogo Gaston Maspero. Ambos prestaram às antiguidades egípcias preciosos serviços. O também francês Pierre Lacau foi director de 1914-1936. Estava em funções aquando da descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amun, em 1922, por Howard Carter, com quem colaborou de forma notável.
O romancista francês Théophile Gautier escreveu um interessante livro sobre as múmias egípcias, intitulado Le roman de la momie (1858). E o escritor e cineasta egípcio Shadi Abdel Salam realizou o filme Al Mummia, em 1969.
A primeira grande exposição internacional sobre Tut-Ankh-Amun teve lugar no Museu do Louvre, em 1967. Outra exposição maior (incluindo a máscara de ouro) teve lugar em 1972, no British Museum, percorrendo depois outras capitais.
Os últimos quatro parágrafos são da minha lavra, e por hoje, fico por aqui!
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