Em 1990, Pierre Béhar, professor de literatura e civilização alemãs nas universidades de Clermont-Ferrand e de Limoges, director de investigação do Centro de Estudos Superiores do Renascimento da Universidade de Tours, professor de geopolítica da Europa Central no Instituto de Estudos Europeus da Universidade de Paris-VIII e na Academia Diplomática de Viena, etc., publicou um interessantíssimo estudo intitulado Du Ier au IVe Reich. Adquiri o livro aquando da sua edição mas, porque outros assuntos suscitaram com mais premência a minha atenção, só agora tive oportunidade de lê-lo.
Para além da análise criteriosa que desenvolve sobre a história do Império, vulgarmente chamado Alemão (o Santo Império Romano-Germânico), sucessor do Império Romano, a obra, ainda que desactualizada (decorreram já 21 anos sobre a sua publicação e o cenário europeu mudou bastante), tem um carácter premonitório sobre o que se passa actualmente na Europa.
A tese do autor é, de alguma forma, comparar a Germânia e o Império, o crescimento da primeira e a decadência do segundo. Sabemos todos que originalmente o termo Reich designava o Império Romano restaurado pelos alemães, e que se distinguia do Estado alemão, constituído pelo reino da Germânia.
Derrubado o Império Romano, no caso vertente o Império Romano do Ocidente, em 476, foi a dignidade restabelecida com a criação do Santo Império, de que foi primeiro titular Carlos Magno, coroado pelo papa Leão III no dia de Natal de 800. Por sua morte, a herança pulverizou-se em territórios imperiais que abrangiam grosso modo a França, a Europa Central, o norte de Itália. E em 887, Arnulfo foi proclamado rei da Germânia. Seu neto, Otão I (936-973), foi também coroado imperador do Ocidente e com ele o Império recupera anteriores divisões e atinge o seu apogeu. Depois recomeça a fragmentação.
Não cabe aqui descrever todas as vicissitudes da Europa Central ao longo de mil anos. Aconselho vivamente que se leia o livro. Mas não resisto a registar alguns notas, especialmente sobre as ligações da Alemanha e da Casa de Áustria. Separada a França do Império, restaram muitos estados sob o chapéu do imperador, que eles mesmos elegiam. Os eleitores tinham diversas dignidades: príncipes, arcebispos, condes,etc. O Império não era hereditário, embora por vezes passasse de pais para filhos, donde a existência de várias dinastias. Uma das mais importantes foi a de Hohenstaufen, cujo monarca principal foi Frederico II (1220-1250). A instalação dos Habsburgos no Império deve-se a Rodolfo IV, conde de Habsburgo, que foi eleito rei da Germânia como Rodolfo I, instalou-se em Viena, mas não chegou a usar a dignidade imperial. O primeiro Habsburgo a ter a dignidade de Imperador foi Frederico III (1452-1493). Sucedeu-lhe seu filho Maximiliano I, e a este, o seu neto, Carlos-Quinto, também rei das Espanhas (que venceu na eleição o outro candidato, o rei de França, Francisco I), e que foi um dos mais poderosos monarcas de todos os tempos. Não conseguiu Carlos-Quinto que seu filho, Filipe II de Espanha cingisse a coroa imperial, que foi transmitida a seu irmão Fernando I. Depois, e simplificando, todos os imperadores pertenceram à Casa de Áustria (ainda que confirmados por eleição), até Francisco II, que em 1806, devido à derrota do Império nas guerras napoleónicas, depôs a coroa imperial e passou a usar o título de imperador da Áustria, com o nome de Francisco I. Estava extinto o I Reich.
Lutero, a Reforma, e a instalação do protestantismo em terras alemãs teve, a termo, um significado decisivo para este desenlace. Contra os Áustrias, fundamentalmente católicos, erguiam-se os príncipes alemães, maioritariamente luteranos. Mas o facto de a mesma dinastia, desde Carlos-Quinto, governar o Império e o reino de Espanha vai criar um antagonismo entre a Alemanha e a França, cujas histórias se tornarão inseparáveis.
Entretanto, começa a desenhar-se o reino da Prússia, verdadeiramente criado pela Ordem do Hospital de Santa Maria da Casa Alemã, também conhecida por Ordem Teutónica. Desta aventura não cabem aqui desenvolvimentos. Diga-se apenas que os teutónicos ofereceram, em 1511, a dignidade de grão-mestre a um membro da Casa de Hohenzollern, estabelecida em Brandeburgo desde 1417: Albrecht de Brandeburgo. Porque o eleitor de Brandeburgo, Frederico III, dispunha de um principado que não dependia do Império nem de qualquer outro reino, o ducado da Prússia, de que era soberano, solicitou ao imperador autorização para se tornar rei, o que Leopoldo I acabou por consentir. Assim, em 1701, o eleitor de Brandeburgo Frederico III tornou-se Frederico I, rei na Prússia (e não da Prússia, visto que a Prússia ocidental pertencia ainda ao rei da Polónia). Pela primeira vez uma terra alemã era erigida em reino.
Desde a morte de Luís XIV (1.9.1715) até 8 de Maio de 1945, as relações europeias, e portanto as internacionais, vão ser determinadas pelas relações entre a Prússia - ou a sua metamorfose alemã - e as outras potências, designadamente a França.
A conjunção de três acontecimentos: o acesso dos príncipes Eleitores à dignidade real, o avanço da Áustria para o sudeste europeu e a instalação de um Bourbon no trono de Espanha (Filipe V: 1700-1746), mudava a face da Europa. Luís XIV fora o primeiro a compreendê-lo (e a perceber que o perigo para a França já não podia vir de Espanha) ao afirmar: «Já não há Pirinéus». E também não poderia advir da Casa de Habsburgo, reduzida apenas ao seu ramo alemão e que estava a contas com o progresso militar dos turcos. O perigo residia tão só na possibilidade de uma Alemanha reunida sob a égide de algum novo príncipe. O velho Luís XIV, entre a assinatura do tratado de Rastatt (6.3.1714) e a sua morte (1715) concebeu uma inversão das alianças que implicava uma alteração radical da política francesa seguida desde Francisco I em relação à Casa de Áustria. Mais do que concebê-la, tentou aplicá-la, mas entretanto morreu. Não o compreendeu o imperador Carlos VI, que votava uma verdadeira aversão aos Bourbons (fora candidato ao trono de Espanha) nem o povo francês, que outrora não compreendera (tal como Richelieu ou Mazarino) a necessidade da guerra contra a Casa de Áustria, mas que agora passara a odiá-la por causa do último conflito relativo à posse do trono de Madrid. O desaparecimento de Luís XIV iria permitir livre curso às forças contrárias à França e à Áustria.
Os seguintes quarenta anos foram aproveitados pela Prússia, com Frederico I e depois com seu filho Frederico-Guilherme I , para se transformar numa potência moderna. O filho deste último, Frederico II, o Grande (rei na Prússia: 1740-1772 e rei da Prússia: 1772-1786) - de quem Hitler tinha o retrato no seu gabinete da Chancelaria do Reich e depois no bunker de Berlim - com o exército (83 mil homens) e o tesouro (10 milhões de thalers) que herdou do pai, podia acariciar as mais vastas ambições, e assim engrandeceu o seu reino. Diga-se que Frederico II foi um homem dedicado às artes e às letras e pessoa de requintado gosto.
Abreviando porém, porque o texto vai já longo, veremos que é Napoleão o verdadeiro pai da unidade alemã. Com a Revolução Francesa, o Primeiro Império e a guerra europeia que se lhe seguiu a Prússia é derrotada, o que não impede que saia confortada do Congresso de Viena de 1815.
Entretanto, com Napoleão senhor da Europa, em 1806, como acima se referiu, o imperador Francisco II depusera a coroa do Santo Império e proclamara-se imperador da Áustria, com o nome de Francisco I. O I Reich, fundado por Carlos Magno e restaurado por Otão, o grande, chegara, pois, ao fim.
A sublevação de 1848 faz crer à Prússia que chegou a sua hora. Os deputados do parlamento de Frankfurt, incapazes de proceder à unificação da Alemanha, oferecem a Frederico-Guilherme IV a coroa de "Imperador dos Alemães", que este declina, pensando obtê-la antes dos príncipes alemães. Guilherme I sucede a seu irmão Frederico-Guilherme IV em 1861 e chama para chanceler o conde, depois príncipe, Otto von Bismarck. A guerra franco-prussiana e a capitulação de Napoleão III em Sedan em 1870, determinou a criação da Terceira República Francesa e a proclamação, em 1871, na Galeria dos Espelhos, em Versalhes, de Guilherme I como imperador da Alemanha. Nascera o II Reich. Mas o Império Austríaco continuava a existir. Com o atentado de Sarajevo, que vitima o arquiduque herdeiro da Áustria, Francisco Fernando, a Alemanha entra na Primeira Guerra Mundial ao lado da Áustria. As Potências Centrais (os Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Otomano) perdem-na a favor da Tríplice Entente (Império Britânico, França, Império Russo, até 1917 e Estado Unidos, desde 1917). Guilherme II da Alemanha exila-se nos Países Baixos e é proclamada a República de Weimar, retalhada no seu território e obrigada a pagar pesadas indemnizações aos vencedores. Os franceses tudo fazem para a humilhação da Alemanha. A Áustria passa também a ser uma república. A propósito, Jacques Bainville escreve a famosa obra Les Conséquences politiques de la Paix.
Os alemães não se conformam com o Tratado de Versalhes. Inicia-se a corrida para o abismo. Em 1933, Adolf Hitler torna-se chanceler da Alemanha; em 1934, por morte do presidente da república, o marechal Hindenburg, Hitler assume também a chefia do Estado, proclamando-se Führer do que passou a ser o III Reich, isto é, a ressurreição do Santo Império de Carlos Magno.
Chegámos aos nossos dias. Hitler invade parte da Europa, é desencadeada a Segunda Guerra Mundial que a Alemanha perde, e o Führer suicida-se (segundo a história oficial) no seu bunker de Berlim, em 30 de Abril de 1945. A Alemanha é dividida em quatro zonas de ocupação: britânica, francesa e americana (que virão a constituir a República Federal da Alemanha e russa (que será a República Democrática Alemã).
Em 1989, na sequência das transformações na União Soviética, dá-se a queda do Muro de Berlim. A Alemanha é reunificada. Desde então muita água passou sob as pontes. O livro que analisámos foi publicado em 1990, mas o seu autor, desconhecendo obviamente o futuro, não deixou de escrever: «Il est bien évident que si l'on constitue l'Europe politique sur le modèle de l'Europe économique, c'est-à-dire celui d'une intégration pure et simple, on aboutira nécessairement à une prépondérance politique de l'Allemagne en Europe». E acrescenta: «Une telle intégration politique serait le moyen le plus assuré de déséquilibrer l'Europe de l'intérieur». Estaremos na iminência de um IV Reich, como premonitoriamente receava o autor, ou ele já hoje existe?
Termino com duas frases com que Pierre Béhar conclui a sua obra Du Ier au IVe Reich: Uma do cardeal de Bernis em instruções a Choiseul, embaixador em Viena: «Il faut tout prévoir et ne pas tout craindre». Outra do chanceler austríaco Kaunitz: «Bien des choses ne sont pas tentées parce qu'elles semblent impossibles; mais bien des choses ne semblent impossibles que parce qu'elles ne sont pas tentées».