segunda-feira, 24 de julho de 2023

OS TESTAMENTOS DE JÚLIO CÉSAR

Júlio César deificado, no Museu do Louvre

Há notícia de dois testamentos de Júlio César, mas é perfeitamente admissível que tenha existido um terceiro. Vejamos:

O primeiro testamento de Júlio César foi a favor de Cneio Pompeu, o Grande, que César constantemente designara como herdeiro "desde o seu primeiro consulado  (59 AC) até ao começo da guerra civil" (conforme Suetónio). Pompeu era casado com Júlia, filha de Júlio César.

O testamento que Suetónio qualifica de "último", isto é, o mais recente, e que foi aberto após o seu assassinato, foi redigido por César, em 13 de Setembro de 45 AC, na sua villa de Lavicum (a actual Via Labicana), e confiado à Grande Vestal. Instituiu três herdeiros: seu sobrinho-neto Caius Octavius (o futuro César Augusto), com três quartos dos bens e seus sobrinhos Lucius Pinarius e Quintus Pedius com um quarto.

Depois da derrota de Pompeu em Farsalos, César fez uma leitura pública do seu primeiro testamento aos soldados em parada, para mostrar que tudo apostara numa aliança com Pompeu, e declarou que esse testamento, dadas as circunstâncias (Pompeu tornara-se seu adversário, já não era seu genro porque Júlia entretanto morrera e passara a outras núpcias, acabando por ser assassinado no Egipto por ordem de Ptolemeu XIV) fora destruído. Ora, segundo o direito romano, um testamento não podia ser anulado sem que houvesse outro a substituí-lo.

O professor Luciano Canfora, grande historiador de Júlio César, avança a seguinte hipótese: entre os dois testamentos que a história regista, terá havido um testamento intermediário. Segundo o princípio que presidiu aos dois outros testamentos - o primeiro a favor do seu genro e o último a favor de seus sobrinhos e sobrinho-neto - parece evidente que o testamento intermediário designaria alguém da sua família, o seu mais próximo parente entre os homens de idade adulta dotados de alguma envergadura. Há então uma pessoa que nos vem obrigatoriamente ao espírito, o seu primo, ou segundo primo, Sextus Iulius Caeser, valoroso militar, "o amigo mais fiel e seguro" (segundo Cícero), que seguiu César na Espanha e na Síria. César nomeou-o governador da Síria, em 47 AC, e ele teria sido o seu herdeiro natural se não tivesse sido assassinado na Síria, por uma amotinação das legiões, em 46 AC, segundo Flavius Josephus. 

Na altura em que foi morto, Sextus teria cerca de 25 anos e era um belo rapaz, de acordo com as escassas notícias que temos a seu respeito. Quando fez o testamento a favor de Octavius, que acompanhara César na campanha de Espanha, aquele tinha 18 anos, e mostram as estátuas e confirmam os documentos, que era também um bonito rapaz.

Sabendo-se que César apreciava especialmente rapazes interessantes (o que, aliás, era comum em Roma), não causa espanto que o Ditador tenha sucessivamente designado por herdeiros dois jovens, ainda seus parentes, com quem terá praticado comércio bíblico. Não há informações acerca das relações pessoais do Divino Júlio com Sextus, mas outro tanto não se poderá dizer sobre Octavius, que, segundo Marco António, terá sido nomeado herdeiro por César devido à sua condescendência em partilhar o leito com seu tio-avô, durante a campanha de Espanha. Suetónio, citado pelo professor Régis F. Martin, indica expressamente que Octavius foi desflorado por César.

Concluindo: se não tivesse sido assassinado, seria Sextus Iulius Caeser, e não Octavius, o herdeiro de Júlio César. Isto segundo a hipótese avançada.

Júlio César foi deificado pelo Senado em 42 AC.


sábado, 22 de julho de 2023

RECORDANDO O IMPERADOR ADRIANO

Em Roma, nos Museus Capitolinos, junto a Adriano, em 2008

Publius AElius Hadrianus (76-138), o imperador Adriano, foi um dos mais notáveis governantes de Roma e um dos mais enigmáticos dos antigos romanos.

Curiosamente, verificou-se um silêncio sobre a sua vida. Apesar de atrair a atenção dos eruditos, no século passado rarearam as suas biografias. A sua reputação póstuma, por causa da paixão que dedicou ao jovem bitínio Antínoo, causou danos à sua imagem. O grande historiador alemão Theodor Mommsen (1817-1903), Prémio Nobel da Literatura e autor de uma monumental história de Roma (Römische Geschichte) considerou-o "repelente" e "venenoso". Os comentadores vitorianos e dos princípios do século XX ficaram embaraçados com o seu relacionamento homossexual e um deles argumentou, esperançadamente, que Antínoo era um filho ilegítimo do imperador. A bastardia, embora bastante má, era mesmo assim mais respeitável do que um amor que não ousa dizer o nome.

Houve uma autobiografia de Adriano e algumas histórias da sua época, de que apenas conhecemos o nome, porque os livros foram queimados nas fogueiras da Idade das Trevas, a que a Igreja presidiu durante séculos. 

Deve-se à escritora francesa Marguerite Yourcenar (1903-1987) a "ressurreição" do imperador, com a publicação do seu livro Mémoires d'Hadrien (1951), que registou o aplauso universal. Sob a forma de uma carta ao jovem Marcus Annius Verus (o futuro imperador Marco Aurélio), Adriano, aproximando-se da morte, evoca a sua vida para ilustração daquele que lhe sucederá no trono. Não será exagero dizer que, por um período, Madame Yourcenar suplantou os académicos e o seu Adriano foi recebido como uma verdadeira imagem do autêntico. Desde então, muitos anos se passaram, e as suas Mémoires, ainda que uma obra-prima, revelam mais das atitudes literárias francesas do que da Roma do século segundo.

As investigações posteriores a esta "história romanceada" mostram um imperador de carácter diferente do descrito por Marguerite Yourcenar, em nada lhe diminuindo, contudo, a grandeza do seu reinado, que pode ser verificada também na pedra dos teatros, templos, aquedutos e arcos que mandou construir ou nas inscrições que registam as suas decisões, discursos e correspondência oficial. A sua paixão por Antínoo está também largamente documentada.

Antínoo, em Roma, no PalazzoAltemps, em 2008

Voltaremos mais tarde a Adriano e a Antínoo.

Importa dizer que o imperador tinha adoptado (136) Lucius Ceionius Commodus como herdeiro, chamando-lhe Lucius Aelius Caeser. Dizem os críticos que Lucius foi escolhido mais pelo seu aspecto (talvez tivesse sido também amante de Adriano) do que pelas suas qualidades. Todavia, Lucius, que se encontrava doente, morreu prematuramente, o que transtornou os planos do imperador para a sua sucessão. Assim, procedeu a uma segunda adopção (138), a de Titus Aurelius Fulvius Antoninus (o futuro Antonino Pio), e a do jovem Marco Aurélio, para suceder no Império após a morte de Antonino, como viria a verificar-se.

Nas suas muitas grandezas e algumas misérias, Adriano é um dos mais fulgurantes princeps na longa galeria dos imperadores romanos.


terça-feira, 18 de julho de 2023

HENRY JAMES - O MESTRE

O escritor irlandês Colm Tóibín (n. 1955) publicou em 2004 o livro The Master (edição portuguesa O Mestre, 2006) sobre a vida de Henry James (1843-1916). Não se trata de uma biografia do famoso escritor americano, naturalizado britânico, mas do registo, em 11 capítulos (o primeiro de Janeiro de 1895 e o undécimo de Outubro de 1899), de alguns aspectos e episódios da vida de James, com a intenção de nos fornecer um panorama da personalidade do autor de The Wings of the Dove.

O autor intercala ao longo da obra largos trechos de narração na primeira pessoa, como se tratasse de uma autobiografia do próprio Henry James escrita por Colm Tóibín, permitindo através dela recuar no tempo e remeter-nos para a infância e juventude do escritor e para as suas relações familiares. No período a que o livro se refere, James viveu na Grã-Bretanha e em Itália e os factos mencionados respeitam a esse tempo.

A referência (por vezes excessiva) a personalidades literárias britânicas da época que conviveram com James é uma constante nas quase 500 páginas do livro. Muitas dessas figuras ainda hoje gozam de notoriedade no mundo anglo-saxônico mas são quase desconhecidas do grande público português, razão que levou o tradutor a incluir, em pé de página, notas acerca das mesmas. Diga-se que a tradução se lê com agrado (não conheço o original), tendo notado apenas uma falta relevante: é mencionada algumas vezes a localidade de Bolonha, que nos remete de imediato para a conhecida cidade italiana, mas quando se indica a praia da cidade e a vista do mar algo não bate certo, já que Bolonha é uma cidade interior. Pesquisei e concluí que se trata de Boulogne-sur-Mer, no Canal da Mancha, próximo de Calais. Aqui, o tradutor não forneceu explicações.

Verdadeiramente, este livro é uma profunda análise psicológica de Henry James (que a empregava sobremaneira no desenvolver das suas personagens), dos seus familiares e das pessoas com quem convivia. Um desfolhar das preocupações quotidianas, uma crítica severa da sociedade inglesa (e também da americana), uma descrição de hábitos, uma observação das diferenças sociais. 

São evocados várias vezes os pais de Henry, seu irmão William James, famoso filósofo professor em Harvard, sua irmã Alice e a sua particular amizade por Miss Loring, vários criados que o serviram, e tantas outras figuras que não cabe aqui mencionar.

O autor dedica especial atenção ao encontro de Henry James com o jovem escultor norueguês Hendriks Andersen em Roma, quando aquele já tinha 56 anos, e que foi uma das grandes paixões do escritor.

Na senda de The Master, Colm Tóibín publicou em 2022 um livro sobre Thomas Mann, The Magician (que ainda não li).


sábado, 15 de julho de 2023

OS PAPÉIS DE JEFFREY ASPERN

Henry James (1843-1916), famoso escritor americano naturalizado britânico, publicou a novela The Aspern Papers em 1888, que surge na presente edição com a designação Les Papiers de Jeffrey Aspern (1968).

Trata-se de uma história baseada nas cartas que o poeta Percy Bysshe Shelley (1792-1822) enviou a Claire Claimont, meia-irmã de sua mulher Mary Wollstonecraft (conhecida como Mary Shelley), que as conservou até à sua morte. O episódio ocorre em Veneza, cidade em que Henry James viveu durante algum tempo.

Resumindo o enredo: o Narrador chega a Veneza com a intenção de obter os papéis (cartas e outros documentos) de Jeffrey Aspern, um genial poeta norte-americano já falecido. É suposto que se encontrem na posse de Juliana Bordereau, uma senhora quase centenária, que fora sua amante, e que vive na companhia de uma sobrinha, Tina. Habitam um palazzo já muito decadente, na margem de um canal (como convém em Veneza) e vivem muito modestamente, sem qualquer convívio social.

Para se aproximar da velha senhora, o Narrador recorre ao expediente de propor alugar uma parte da vasta habitação para passar um tempo a escrever no jardim da casa. A proprietária acede, mediante preço elevado, e o Narrador vai estabelecendo diariamente contactos com a sobrinha na tentativa de saber algo sobre os ditos papéis. Tina é uma solteirona ingénua e tímida que começa por negar a existência da preciosa documentação, mas acaba por confessar a sua existência, guardada avidamente pela tia, que já recusara sucessivas propostas de aquisição.

Tendo Juliana adoecido, e julgando-a moribunda, o Narrador introduz-se no aposento e tenta descobrir onde os papéis se encontram escondidos, mas, subitamente, a velha senhora, como que ressuscitada, ergue-se à sua frente e chama-lhe "editor canalha"; o Narrador abandona a casa, mas resolve regressar dias depois. É então que Tina, que não tem mais família,  o surpreende com o pensamento de que ele poderia desposá-la em troca dos papéis. O Narrador recusa em absoluto e volta a abandonar a casa; quando regressa, Juliana já está morta e sepultada. Tina diz-lhe então que queimou todos os papéis. 

Apesar da desilusão, o Narrador conforma-se e até envia algum dinheiro a Tina, que lhe tinha oferecido uma miniatura com uma pintura de Jeffrey Aspern em novo, que a tia lhe havia mostrada aquando dos poucos diálogos que tinham mantido.

A novela maneja os temas favoritos de James: a vida íntima, a morte, o fantástico, o segredo. De resto, Henry James  cultivou sempre o segredo. Celibatário, ocultou durante largos anos a sua orientação sexual, e só na idade madura admitiu, ainda que com reservas, a sua inclinação homoerótica. Em 1899, encontrou em Roma o escultor e pintor norueguês Hendrik Christian Andersen, então com 27 anos (James tinha já 56 anos) e com ele manteve uma longa relação. Mas outros nomes surgiram na vida do escritor, a quem endereçou cartas amorosas, como Howard Sturgis, Hugh Walpole, Walter Berry ou Jocelyn Perse.

Também a obra de Henry James é percorrida directa ou indirectamente por fantasmas homossexuais, como a novela The Turn of the Screw (1898), que viria a ser adaptada ao teatro, ao cinema, ao bailado e mesmo à ópera, com uma notável criação de Benjamin Britten.

A sua obra de ficcionista é vasta e célebre, incluindo The Portrait of a Lady, The Wings of the Dove, The Ambassadors, The Bostonians, Daisy Miller.

Nem sempre os grandes escritores apreciaram os seus livros. Somerset Maugham escreveu a seu respeito:«"He did not know the English as an Englishman instinctively knows them and so his English characters never to my mind quite ring true... [...] The great novelists, even in seclusion, have lived life passionately. Henry James was content to observe it from a window.»

Mas Henry James é hoje um nome incontornável na história da literatura.


quinta-feira, 13 de julho de 2023

A CIDADE DOS ANJOS CAÍDOS

Reli A Cidade dos Anjos Caídos, de John Berendt (2006), edição inglesa original The City of Falling Angels (2005), sobre a cidade de Veneza. É sempre um prazer regressar à capital da Sereníssima República, onde já estive, embora não o tempo suficiente para ver tudo o que é essencial, e especialmente para sentir o pulsar da velha metrópole, só permitido com o passar do tempo.

O livro descreve a cidade, seus principais palácios e igrejas, a maneira de ser dos venezianos e as intrigas e costumes da aristocracia, dos estrangeiros imigrados, do povo em geral. O ponto de partida, e que constitui o leitmotiv da obra, é o grande incêndio do Teatro La Fenice, ocorrido em 29 de Janeiro de 1996, um dia depois de o autor chegar a Veneza. As circunstâncias em que decorreu o incêndio do célebre teatro de ópera, um dos mais famosos do mundo, a procura de culpados (fogo posto ou negligência) e o interminável processo para os descobrir, o processo de reconstrução do edifício com todas as peripécias inerentes, tudo nos é descrito pelo autor, baseado nos factos e também na sua efabulação. Releve-se que a reconstituição da sala de espectáculos deveu bastante ao filme Senso, de Luchino Visconti, que começa exactamente com uma récita da ópera Il Trovatore, de Verdi, naquele teatro.

Uma noite, à porta do Teatro La Fenice, alguns anos atrás

Há abundantes referências às famílias nobres de Veneza e à sua rivalidade, a propósito do projecto Salvar Veneza, e também aos estrangeiros que se radicaram na cidade ou lá permaneceram largo tempo, hóspedes famosos, como o escritor Henry James e o poeta Ezra Pound, que viveu cinquenta anos na Calle Querini, nº 252 (o Ninho Secreto), com sua mulher Olga Rudge, e se encontra sepultado no cemitério da ilha de San Michele. 

É também largamente referida a morte do poeta homossexual Mario Stefani, que apareceu enforcado na cozinha da sua residência, e descrita a averiguação para determinar se teria sido suicídio ou crime. O poeta recebia amiúde em casa rapazes a quem pagava para ter sexo e deixou em testamento (um dos vários testamentos que sucessivamente modificava) uma vultosa quantia a um vendedor de fruta do bairro. Mas não se comprovou a intervenção do beneficiário na morte do poeta, que se encontrava deprimido, por solidão, que aliás proclamara ostensivamente nas ruas de Veneza, pouco tempo antes do desfecho fatal.

Também uma referência especial à arte do vidro, uma das especialidades de Veneza, alimentada por sucessivas gerações de conhecedores profundos do fabrico de verdadeiras obras de arte.

O título do livro refere-se a um aviso que esteve colocado em tempos ao lado da Igreja de Santa Maria della Salute, de cujo parapeito frontal caíra um anjo de mármore.


sábado, 8 de julho de 2023

AUGUSTO, PRIMEIRO IMPERADOR DE ROMA

Acabei de ler Augustus, The Life of Rome's First Emperor, de Anthony Everitt (2006), certamente a melhor biografia que li até hoje sobre AUGUSTO.

Trata-se de um livro muito bem escrito, devidamente organizado, objectivo quanto o pode ser a biografia de uma personagem que viveu há dois mil anos e acerca da qual as fontes não abundam. Muitos documentos se perderam, entre os quais uma autobiografia do próprio AUGUSTO, escrita durante uma estada em Espanha. Sobreviveu a biografia, obviamente de cunho muito pessoal, que ditou ao filósofo grego Nicolau de Damasco. Mas os historiadores e poetas romanos (e gregos) mais ou menos coevos, como Tito-Lívio, Appiano, Cícero, Plínio o Antigo, Aulus Gellius, Suetónio, Dion Cassius, Tácito,Virgílio, Horácio, Ovídio, Plutarco, e muitos outros, informam-nos sobre a vida - e a obra - do Princeps, que os historiadores posteriores convieram designar como o primeiro imperador de Roma, apesar de formalmente a República Romana, com as suas instituições, ter permanecido.

O livro encontra-se extraordinariamente bem documentado, referindo as abundantes fontes citadas, e fornece-nos o panorama da vida de AUGUSTO nos planos pessoal (maxime familiar), político, militar, social, económico e religioso e desenvolve os aspectos psicológicos que determinaram muitas das acções do imperador.

É consensual, e o autor confirma-o, considerar-se AUGUSTO como um indivíduo inteligente, astuto, ambicioso, dissimulado, vingativo, um pouco covarde (costumava adoecer antes das batalhas), oportunista, ambíguo, contraditório, por vezes cruel, ainda que evocando sempre uma clemência que se tornou célebre. O seu reinado foi o mais longo de todos os imperadores romanos.

Após o assassinato de Júlio César, que fora designado ditador vitalício semanas antes da morte, os romanos terão sentido a necessidade de um poder pessoal, mesmo autoritário, que permitisse a consolidação, e o aumento, dos territórios até então conquistados. AUGUSTO foi o "escolhido" para a instauração de um governo pessoal. Ignoramos o que teria acontecido se Marco António não tivesse sido derrotado em Actium. Seria ele, certamente, o protagonista da aventura imperial mas, conhecendo-se o seu pensamento, a sua forma de agir (impetuosa, ao contrário do calculista AUGUSTO), as suas incoerências, dificilmente concretizaria a obra levada a cabo pelo primeiro Princeps.

A primeira mulher de AUGUSTO foi Cláudia Pulcra (cerca de 40 AC), filha do primeiro casamento de Fúlvia com Públio Clódio Pulcro e, por isso, filha adoptiva de Marco António, com quem Fúlvia se casaria depois em segundas núpcias. O casamento durou escassos meses e não chegou a ser consumado; a segunda mulher de AUGUSTO foi Escribónia (40-38 AC), que já fora casada duas vezes e que lhe deu a única filha, Júlia. Escribónia era sete anos mais velha do que AUGUSTO, que tinha então 23 anos e que dela se divorciou para casar impetuosamente com Lívia Drusa (ou Drusila), que era casada com Tibério Cláudio Nero; a terceira mulher de AUGUSTO foi, pois, Lívia (38 AC- 14 AD), que desempenhou um papel importante, duradouro, e porventura sinistro, na história de Roma.

Lívia foi uma mulher austera, pelo menos aparentemente, tão ou mais ambiciosa do que AUGUSTO, na qual este confiava absolutamente (ou talvez não tanto), que o apoiou nos momentos difíceis de uma carreira conseguida a pulso, no constante equilíbrio entre a vontade de poder absoluto e o fingimento da sua subordinação às instituições republicanas. Conseguiu eliminar todos os concorrentes à sucessão do marido para que seu filho mais velho, TIBÉRIO, viesse a ser o segundo imperador de Roma. E depois da morte do marido, exerceu pressão sobre o filho para fazer triunfar  sua vontade de governar.

Lívia, que AUGUSTO escolheu por pertencer à muito nobre família dos Cláudios (AUGUSTO pertencia à família dos Octávios, de inferior grau aristocrático, apesar de ser sobrinho-neto e filho adoptivo de JÚLIO CÉSAR, da nobilíssima família dos Júlios), era casada com Tibério Cláudio Nero e já tinha dois filhos, Tibério Cláudio Nero César (o futuro imperador TIBÉRIO) e Nero Cláudio Druso. AUGUSTO (então ainda Octávio) divorciou-se de Escribónia no dia em que esta deu à luz sua filha Júlia e forçou Lívia, então grávida do segundo filho, Nero Cláudio Druso, a divorciar-se do marido e a casar-se com ele três dias depois do parto. Lívia viveu 86 anos, tendo morrido (29 AD) quinze anos depois do marido, já então divinizada como Lívia Júlia Augusta!

Lívia Drusila

Sobre Lívia correram em Roma os mais horríveis rumores a respeito do seu carácter e ficou para a História a sua fama de envenenadora, talvez por se dedicar à confecção de medicamentos caseiros. São muitas as mortes que lhe são apontadas, mesmo no seio da Família, ainda que nem todas (ou nenhuma) possam ser confirmadas. 

Passamos a identificar:

1) Em 23 AC, terá ordenado o envenenamento de Marcellus, filho de Octávia (a irmã de AUGUSTO) e de Cláudio Marcelo e casado com Júlia, a filha de AUGUSTO, e herdeiro presuntivo do Império;

2) Em 12 AC, terá providenciado a morte de Marcus Agrippa,  que fora o número 2 de seu marido AUGUSTO, e que poderia ser eventualmente o sucessor;

3) Em 9 AC, terá facilitado a morte de seu próprio segundo filho Nero Claúdio Druso, ferido em combate, e que professava opiniões republicanas;

4) Em 2 AD, terá ordenado o envenenamento de Lucius Caeser, filho de Marcus Agrippa e de sua segunda mulher Júlia, já então viúva de Marcellus. O rapaz tinha sido adoptado por AUGUSTO;

5) Em 4 AD, terá ordenado o envenenamento de Gaius Caeser, irmão do anterior. Também tinha sido adoptado por AUGUSTO;

6) Em 14 AD, terá matado pessoalmente o seu próprio marido, AUGUSTO, com um cesto de figos envenenados, quando este permanecia adoentado em Nola, após uma visita frustrada a Capri (Tácito e Dion Cassius contam-nos a história);

7) Em 14 AD, mandou matar Agrippa Postumus, último filho de Marcus Agrippa e de Júlia, eventual concorrente de TIBÉRIO;

8) Em 19 AD, mandou envenenar seu neto Germanicus Julius Caesar, filho de seu filho Nero Cláudio Druso e de Antónia Menor (filha de Octávia e de Marco António), que fora igualmente adoptado por AUGUSTO e era uma sombra para a carreira de TIBÉRIO.

Por ora, ocorrem-me estas mortes, dentro do círculo íntimo. Lívia manobrou para eliminar sucessivamente todos os potenciais herdeiros de AUGUSTO, em favor de seu filho mais velho, que viria a ser na hora da verdade, por falta de comparência dos outros (já mortos), o imperador TIBÉRIO.

Durante a vida, AUGUSTO manejou sempre casamentos e divórcios para garantir uma conveniente sucessão na Divina Família, mas os acontecimentos, naturais ou provocados, trocaram-lhe sucessivamente os planos. Já perto do fim, acabou por também adoptar TIBÉRIO, que detestava, e que seria o seu sucessor.

Nos quatro volumes do romance histórico La Reine Oubliée, que referi anteriormente neste blogue, Françoise Chandernagor ilustra detalhadamente os crimes acima mencionados e pormenoriza as razões dos mesmos. Nesta biografia de AUGUSTO, Anthony Everitt menciona estes factos, embora de forma mais sucinta.

Ao pé de Lívia, Lady Macbeth seria uma santa. Pena Shakespeare não lhe ter dedicado uma peça.

 

segunda-feira, 3 de julho de 2023

AUGUSTO E O IMPÉRIO

 

Lucius Munatius Plancus, que fora um dos mais próximos conselheiros de Marco António, começou a afastar-se deste acabando por sair do Egipto (31 AC) e regressar a Roma, desagradado, entre outras coisas, pela atitude de António ao divorciar-se de Octávia (irmã de Octávio).
 
Chegado a Roma, Plancus informou Octávio (César Augusto) de alguns dos segredos de Marco António, entre os quais que poucos anos antes este depositara o seu testamento no Templo de Vesta.
Octávio, vendo aqui uma oportunidade de descobrir algo que politicamente lhe conviesse, pediu às Virgens Vestais que lhe entregassem o documento, o que estas naturalmente recusaram. Então, decidiu ir pessoalmente ao Templo de Vesta e apoderou-se do documento pela força.
 
Depois, dirigiu-se ao Senado e leu as passagens que lhe interessavam para denegrir António. Este expressara o desejo de ser sepultado em Alexandria, deixava parte da herança aos seus filhos nascidos da ligação com Cleópatra e garantia que Ptolomeu Cesarion era filho biológico de Júlio César. Este último ponto era insuportável para Octávio, filho adoptivo de Júlio César e que se considerava o único herdeiro do Divino Júlio.
 
A leitura do testamento teve um duplo efeito nos senadores. Por um lado, consideraram um acto absolutamente extraordinário e intolerável o facto de Octávio se ter apoderado do testamento de Marco António, o que consubstanciava uma violação do sagrado. Mas, por outro lado, apreendiam sem margem de dúvida a "orientalização" de Marco António e a sua profunda ligação a Cleópatra, que era detestada em Roma. E a ideia de verem um dia António instalar-se em Roma com Cleópatra era-lhes insuportável.
Tendo chegado ao fim o prazo do Segundo Triunvirato, já não dispondo de protecção legal, apenas a do seu real poder na Itália, e estando Lépido, o terceiro triúnviro afastado, Octávio decidiu que era o momento de agir contra o seu colega. Dirigiu-se ao Campus Martius e procedeu ao sacrifício ritual no Templo de Bellona. Roma declarava oficialmente guerra ao Egipto.
 
Depois, ocorreu a controversa batalha de Actium, terrestre e marítima, que Octávio acabaria por vencer graças à estratégia de Agrippa, um grande comandante (que Octávio nunca fora) e à precipitada fuga de Marco António no encalço de Cleópatra, cuja frota abandonara o teatro de operações e regressara ao Egipto. 
 
Em 30 AC, Octávio conquistava Alexandria e Marco António e Cleópatra suicidavam-se. Caio (ou Gaio) Octávio (já então Octaviano) César, seria proclamado Augusto, o "princeps" (em 27 AC) e finalmente "imperium proconsulare maius" e "tribunicia potestas" (em 23 AC) e Pontifex Maximus (em 12 AC).
 
Gaius Octavianus Caeser Augustus passou a ser considerado pelos historiadores o primeiro imperador de Roma. Teoricamente, a República Romana mantinha-se!
 
 
Em 13 (os Idos) de Janeiro de 27 AC, Octávio proferiu no Senado um discurso que releva da mais sofisticada encenação teatral. Renunciou aos seus poderes anteriores para os devolver ao Senado e ao Povo Romano. Anthony Everitt transcreve a citação feita por Dion Cassius e que deve corresponder, aproximadamente, ao que Octávio declarou:
 
«I lay down my office in its entirely and return to you all authority absolutely - authority over the army, the laws and the provinces - not only those territories which you entrusted to me, but those which I later secured for you.»
 
itou algumas honras simbólicas conferidas pelos senadores e também o governo (que faria através de pro-cônsules), por dez anos, de uma grande "província": Espanha, Gália e Síria, o que correspondia ao comando de vinte (leais) legiões.
 
Recusando sempre qualquer ideia de restauração da Monarquia ou de governo ditatorial, aceitou ainda, notável inovação, um "cognomen", pelo que seria conhecido no futuro. Pretenderem atribuir-lhe, como segundo fundador de Roma, o nome do fundador original e primeiro rei de Roma, Romulus. Mas como isso faria dele um rei, declinou. Mas aceitou a designação de Augustus (aquele que é venerado), com um título mais modesto para o quotidiano: "princeps".