Publicou Eduardo Lourenço o ano passado um livro intitulado A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?, onde reúne diversos ensaios políticos que vieram a lume entre 1979 e 2006, em várias publicações, nomeadamente na revista Finisterra.
Só agora tive tempo para ler esse livro de menos de 200 páginas, onde Lourenço expõe o seu pensamento sobre o "Socialismo", a "Esquerda", a "Democracia", o "Estado-providência", a "Política", o "Ultra-liberalismo", a "América" e o "Islão".
Sabemos todos que Eduardo Lourenço é um dos grandes pensadores portugueses vivos e não admira, pois, a lucidez com que aborda os temas propostos. Mas acresce que este livro tem algo de premonitório, já que as teses de Lourenço vêm sendo confirmadas, ano após ano, com uma precisão que fazem do autor um dos profetas do nosso tempo.
Quando, nos primeiros textos alude ao desmantelamento do Estado-providência e à desregulação dos mercados e advento do neo-liberalismo selvagem por duas figuras horripilantes do século XX, Ronald Reagan e Margaret Tatcher e prosseguidas pelos seus não menos temerosos sucessores, George W. Bush e Tony Blair, Lourenço antecipa a catástrofe que se vive hoje no mundo. Oportuna também a denúncia da Esquerda que, órfã do colapso do comunismo, não soube encontrar uma via que não fosse a da rendição aos malefícios do capitalismo imperial oriundo dos Estados Unidos.
Cada frase de Eduardo Lourenço neste livro é uma máxima que importaria consignar se o espaço o permitisse. Citaremos por isso apenas alguns parágrafos do artigo escrito (2001) após o ataque às Torres de Nova Iorque:
«Sempre os vencedores escreveram a História. A dos vencidos nem a título póstumo nos interessa, a não ser que sejamos nós os vencidos dela. Só o pessimismo provocador de Flaubert achou interessante ressuscitar a Cartago de Amílcar em vez de narrar pela milésima vez a constância vitoriosa dos Cipiões. Mas o que é novo, e os acontecimentos destes últimos três meses mostraram com sinistra ou luminosa evidência, é que se pode viver e escrever a História de maneira inédita, inteiramente virtual. Com a queda das torres e a fantástica resposta americana a um acto que só tinha como paradigma a ficção apocalíptica de Hollywood, estilo Independence Day, o mundo inteiro pôs-se a falar de uma guerra quimicamente pura, declarada, não a um adversário à altura da ameaça, que foi de ordem privada, e de uma vitória anunciada onde o vencedor só teve um morto a título póstumo. Não houve guerra nenhuma, pois para a haver é preciso dois, mas houve, sem contestação possível, uma vitória de tipo novo, da nação mais poderosa do mundo sobre um terrorismo, ao mesmo tempo, bem monstruoso e real nos seus efeitos, para punição do qual se teve de inventar como adversário fantomático uma nação paupérrima: o Afeganistão, de um arcaísmo político raro, entre as culturas islâmicas fundamentalistas, para o poder destruir com a mesma ausência de estados de alma e uma superabundância de meios sem precedentes na História, já de si pouco recomendáveis. O crime era de ordem sacrílega - mas não mais do que outros - e o bode expiatório tratado como os aliados trataram Dresden e os caçadores por conta própria, os fora-da-lei do Oeste americano.»
«O que aconteceu nestes últimos três meses podia ser apenas um fait-divers espectacular, sem mais, nem sequer de igual importância aos que o precederam nesta re-semantização do conceito de Guerra, desde o ataque ao Iraque e a invasão e punição do Kosovo. Mas é bem mais do que isso. De uma certa maneira, é agora que o tão discutido conceito de Fukuyama, de fim da História, começa a receber a sua leitura adequada. A dois níveis: fim da História como disputa de actores antagonistas de semelhante credibilidade; e fim da História como projecto e aventura que desde há dois mil anos tinha na Europa, se não a totalidade dos seus actos, o dinamismo universal que a partir dela foram pouco a pouco convertendo uma História particular em História Universal. »
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«Como o Titanic, a velha Europa perdeu todo o seu passado de actor privilegiado da História, não em qualquer oceano épico, ferida pelo Destino, mas de olhos abertos e num silêncio total, ouvindo as bombas de seis toneladas dos B52, esmagar as colinas estéreis do Afeganistão, na esperança de descobrir entre os escombros monstruosos o monstruoso fantasma de Bin Laden.»
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«O que é certo é que esta História, não por acidente, mas em si, é Outra. O que a queda do Muro de Berlim deixava prever o que, sem perda de tempo, o Pentágono, executor do projecto de domínio mundial dos Estados Unidos, percebeu, pondo o Iraque na ordem (ou na sua nova ordem) ainda com assentimento europeu, mudou de dimensão e registo com o 11 de Setembro. K.O. de pé, por um segundo, o vencedor da Segunda Guerra Mundial e do império soviético percebeu que tinha chegado a mais imprevista das ocasiões: levar a cabo a mais imperial e imperialista operação de todos os tempos por conta da Humanidade, mobilizável sob a sua égide para o mais humanístico dos fins: erradicar o terrorismo, assimilado ao Mal - e Bem não era... - para sossego natural dos Estado Unidos e tranquilidade desejável para o resto do mundo, o da nebulosa islâmica, não menos, se não mais que o resto.»
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«Em três semanas, levando ao limite o que começara no Iraque, os Estados Unidos, ostensivamente sozinhos, apoderaram-se sem gastar um dólar - antes multiplicando-os ao infinito - de praticamente todos os media que contam no mundo. Ou antes, só o puderam fazer, e conduzir uma guerra virtual em termos praticamente virtuais, porque tinham já, com a conivência moral e guerreira da Europa que conta e a neutralização diplomática de uma Rússia caótica, imposto ao Iraque uma rendição fulgurante levada a cabo sob um controlo absoluto da informação, inédito no passado.»
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«O Kosovo aperfeiçoou o mecanismo e o Afeganistão melhorou-o, transformando uma das mais imperialistas intervenções do Ocidente na Ásia numa mera intervenção de polícia mundial ao serviço do Bem, assumido ostensivamente, como a dos interesses de uma raça, elevada a paradigma de civilização e de Humanidade. Em três meses, o Presidente dos Estados Unidos calçou as botas de xerife do Mundo.»
Não permite o espaço alongar-me nas citações deste notável, e oportuníssimo, conjunto de ensaios. À data do artigo parcialmente transcrito, ainda os Estados Unidos não haviam invadido o Iraque e provocado o caos absoluto que se seguiu. Como é do conhecimento público, a guerra do Afeganistão nada resolveu até hoje, exceptuando os milhares de vítimas e, no Iraque, vagueiam os espectros dos mortos por entre as ruínas dos vivos. É claro que, no meio da apregoada "exportação" da Democracia, se conseguiram contratos petrolíferos e de "reconstrução civil". E para as indústrias americanas e suas parceira algures pelo mundo, isso é o que importa. Todos os católicos convictos deveriam invocar o Altíssimo, clamando: "Perdoais-lhes, Senhor, porque não sabem o que fazem", mesmo quando julgam saber.