quinta-feira, 23 de novembro de 2023

MANUEL PINTO DA FONSECA, GRÃO-MESTRE DA ORDEM DE MALTA

Conferência do Embaixador Fernando Ramos Machado, na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 17 de Novembro passado, sobre a notável figura de Manuel Pinto da Fonseca, Grão-Mestre da Ordem de Malta, um dos mais prestigiados soberanos da augusta instituição.


Publica-se por especial deferência e com a permissão do autor.

 

                                            MANUEL PINTO DA FONSECA

                         GRÃO-MESTRE DA ORDEM DE MALTA (1741-1773)

                                                                        I

Foram, até agora, quatro os Grão-Mestres portugueses da Ordem de S. João de Jerusalém, mais conhecida, a partir do Séc. XVI, como Ordem de Malta:

 

- Afonso de Portugal (1202-1206)

- Luís Mendes de Vasconcelos (1622-1623)

- António Manoel de Vilhena (1722-1736)

- Manuel Pinto da Fonseca (1741-1773)

Em 2022, assinalou-se a passagem de 400 anos sobre a eleição de Vasconcelos e de 300 sobre a de Vilhena. Em 2023, registou-se, novamente, uma dupla efeméride – os 400 anos da morte de Vasconcelos e os 250 da de Fonseca.

A Vasconcelos (e a Vilhena) dediquei um trabalho, no ano passado; o presente será sobre Pinto da Fonseca.

                                                                             II

Podemos afirmar, sinteticamente, que dos três portugueses que governaram em Malta (Afonso de Portugal foi Grão-Mestre ainda na Terra Santa) Vasconcelos foi um Cavaleiro exemplar, Vilhena um ilustre Grão-Mestre, Pinto um Soberano europeu. Respeitamos o primeiro, admiramos o segundo , o terceiro  fascina-nos.

                                                                            III

Manuel Pinto da Fonseca nasceu, em Lamego, a 24 de Maio de 1681, filho de Miguel  Álvaro Pinto da Fonseca, Alcaide-Mor de Ranhados, e de sua mulher, Ana Pinto Teixeira. Pertencia, evidentemente, à Aristocracia, e referem-se ligações da sua Família à Casa das Brolhas, considerada o Solar mais imponente de Lamego (na sua configuração actual, porém, data de 1777, posterior já à morte de Pinto).

Entrou na Ordem de Malta, tendo dela sido Juiz Ordinário e Conservador, no Porto.

Foi Comendador de Oleiros, Fontes e Sernancelhe.

O Grão-Mestre Perellós ( 1697-1720) fê-lo Balio de S. João de Acre, em 1719.

Vice-Chanceler, vários anos, durante o Magistério de Vilhena (1722-1736). Não terá fundamento, porém, a afirmação, por vezes avançada, de um parentesco próximo (primos direitos) entre Pinto e Vilhena.

Eleito, por unanimidade, Grão-Mestre, em 18 de Janeiro de 1741, com 60 anos contados, o seu Magistério, que durou 32 anos, foi o mais longo da História da Ordem.

Numa “História de Malta” do Séc XIX, da autoria de Miège (Bruxelas, 1841) lê-se que Pinto, “logo na infância, tinha vindo para Malta, onde foi admitido entre os pajens do Grão-Mestre, e nunca mais saíra de lá. A sua eleição foi acolhida com satisfação pelos malteses, que viam nele mais um compatriota do que um estrangeiro”.

Aquela afirmação é fantasiosa, mas interpreto-a como significando que a sua vida anterior à ida para Malta não é particularmente relevante. E acrescento que, tivesse ficado em Portugal, Pinto da Fonseca teria sido apenas um fidalgo de província português, mais ou menos empertigado; em Malta, sem perder a ligação ao seu País de origem, foi muito mais, tornando-se a personagem que admiramos.

                                                                               IV

O cargo de Grão-Mestre dos Hospitalários era de grande complexidade. Eleito vitaliciamente pelos seus pares, chefiava uma Ordem religiosa, com uma vertente assistencial e vocacionada para o apoio aos peregrinos e o tratamento dos doentes, mas que era, sobretudo, militar, forte Potência naval no Mediterrâneo, com papel de relevo, durante Séculos, na defesa da Europa contra o expansionismo otomano e no combate aos piratas berberescos. O Grão-Mestre devia obediência ao Papa, no plano espiritual, sem que a Ordem, em termos práticos, deixasse de ser reconhecida como Soberana. Tal estatuto não decorria, aliás, nem decorre do exercício de Poder sobre um território, embora, historicamente, remontasse à conquista de Rodes pelos Hospitalários, no início do Séc.XIV; perdida aquela Ilha, fora-lhes cedido, por Carlos V, o Arquipélago Maltês, como feudo, sendo devido o tributo anual simbólico de um falcão, a entregar, ao Vice-Rei da Sicília. Como Príncipe de Malta, cabia ao Grão-Mestre administrar e defender a Ilha, base territorial e baluarte da Ordem. Além dos Cavaleiros, seus subordinados, eram também seus súbditos os autóctones malteses. A Ordem, transnacional, era internacional, pela sua composição, agrupando-se os Cavaleiros por Línguas, em número de 8. Nos vários Países do Mundo Católico, a Ordem estava implantada, com Comendas, que constituíam a sua principal fonte de rendimentos.

Mas muito mudara, entre os tempos de Vasconcelos e os de Pinto. O Império Otomano já não representava uma ameaça tão grave para a segurança da Europa cristã, além de que a França, que se tornara o principal suporte da Ordem, procurava manter bom relacionamento com o Sultão, a bem do seu comércio com o Levante, desencorajando as hostilidades para com os turcos.  

Assim, a actividade militar dos Hospitalários concentrava-se no combate aos piratas berberescos , utilíssimo mas, mesmo assim, levantando interrogações; o contra-corso, legitimo na sua origem, aparecia, cada vez mais, como uma actividade visando, simplesmente, significativos proventos.

A austeridade do modo de vida dos Cavaleiros fora sendo, gradualmente, substituída pelo gosto do conforto e do luxo. E a castidade nunca havia sido o seu ponto forte..

A própria Fé fora perdendo o seu vigor, com as novas ideias a seduzirem os espíritos de muitos Hospitalários, em particular dos franceses (de longe, de resto, os mais numerosos).

Perante este panorama, muitos questionavam-se sobre a utilidade e a relevância da Ordem de Malta.

                                                                              V

Assumindo o Magistério nessas circunstâncias, de decadência certa, ainda que não evidente, Pinto conseguiu proporcionar, à Ordem de Malta, um longo período de notável brilho.

 O seu Magistério (1741-1773) foi contemporâneo dos últimos 9 anos do Reinado de D. João V e dos 23 primeiros da governação do Marquês de Pombal; com ambos, terá partilhado não só traços de carácter, como modalidades de actuação. Admito haja alguma superficialidade nesta observação, mas os três, cada um à sua maneira, foram destacados representantes do Despotismo Esclarecido, o sistema ideológico e político então vigente na Europa.

Tal como o Monarca português, Pinto viveu no esplendor (ainda que os Cavaleiros de S. João fizessem voto de pobreza...) e na sua Corte seguia-se o mesmo aparato que nas grandes Capitais europeias. As formas espelhavam o Poder e eram, também, instrumento de Poder.

Veja-se a questão da fórmula de tratamento. Em 1607, o Imperador Rodolfo II fizera de Alof de Wignacourt Príncipe do Império e, em 1620, Fernando II tornara esse estatuto permanente, para os Grão-Mestres de Malta; a fórmula de tratamento correspondente era Alteza Sereníssima. Além de Wignacourt, também foi assim chamado o seu sucessor, Vasconcelos, e o sucessor deste, Antoine de Paule nos seus primeiros anos, ao fim dos quais, como escreve, com alguma ironia, António Pereira de Lima, “resolveu a Santidade do Papa Urbano VIII que aos Grão-Mestres de S. João se lhes falasse por Eminência, como aos Cardeais do Sacro Colégio em Roma, e aos Arcebispos Eleitores de Mogúncia, Tréveres e Colónia, com que se acomodaram os Grão-Mestres, por serem pessoas Eclesiásticas e filhos muito obedientes à Igreja Romana”. (A capa da tradução portuguesa, de 1731, da biografia de Vasconcelos, que Pereira de Lima escrevera, em espanhol, ilustra a disparidade: “Vida e Acções de Sua Alteza Sereníssima Fr. Luís Mendes de Vasconcelos, Grão-Mestre da Sagrada Religião de Malta (…) agora novamente traduzida do Castelhano em Português e oferecida ao Eminentíssimo Senhor D. António Manoel de Vilhena, Grão Mestre etc”).

Pinto exigiu ser tratado por Alteza Eminentíssima, fórmula correspondente ao seu duplo estatuto, equiparado tanto a Príncipe como a Cardeal, e os Grão-Mestres assim são chamados, desde 1741 até aos dias de hoje. (Vi, com estranheza, na correspondência dos Czares e Imperatrizes da Rússia, eles se dirigirem aos Grão-Mestres anteriores a Pinto, utilizando já a fórmula Alteza Eminentíssima; como explicar este, pelo menos aparente, anacronismo?). 

D. João V

Pela mesma altura (1748) D. João V recebeu, da Santa Sé, o título de Rei Fidelíssimo.

Mas um símbolo havia que, mais claramente, afirmava o Poder do Grão-Mestre e a Soberania da Ordem.

Em 1581, no termo de uma grave crise que abalara a Ordem, o Papa determinou que os Grão-Mestres passassem a encimar as suas armas com uma coroa ducal.

No quadro do processo, que alguns autores referem como a monarquização da Ordem, foi pensado, durante o Magistério de António Manoel de Vilhena, procurar obter, do Papa e dos Príncipes cristãos, a autorização de o Grão-Mestre usar um boné escarlate, fechado com dois círculos de ouro, enriquecidos de pedrarias e pérolas, formando uma Cruz de Malta; seria algo parecido com o gorro do Doge de Veneza? Não vi nenhuma representação e, de qualquer modo, a morte de Vilhena pôs termo a esse projecto.

Pinto não se absteve de subir a um patamar superior e passou a fazer-se representar, designadamente no célebre retrato por Favray, com a Coroa fechada, como as dos Reis, não com ela na cabeça, mas ao lado, apontando para ela ostensivamente ou, mesmo, com a mão sobre ela pousada.

A Coroa simbolizava a Soberania, isto é, a independência no plano internacional e o Poder supremo no plano interno. A busca do Poder, e o seu exercício com firme autoridade, foi preocupação de Pinto, durante todo o seu Magistério.

Tendo-lhe sido sugerido que convocasse um Capítulo Geral, já que o último tivera lugar em 1631, durante o Magistério de Antoine de Paule, ficou célebre a  resposta que se lhe atribui: “que se fosse Rei de França, jamais reuniria os Estados Gerais, se fosse Papa, não suportaria Concílios e, Chefe dos Hospitalários de S. João de Jerusalém, não desejava Capítulos Gerais, porque sabia que essas assembleias terminavam quase sempre por prejudicar os direitos daqueles que permitiam a sua reunião”.

                                                                    VI

Cioso do seu Poder absoluto, Pinto tinha, simultaneamente, plena consciência dos deveres que o seu alto cargo lhe impunha e aproveitou a quase trégua, não declarada, com os Otomanos, para reforçar a segurança do Arquipélago, reparar e construir, com magnificência, diversos edifícios públicos, promover a economia e as condições de vida da população.

Assim, ordenou notáveis melhoramentos nas fortificações, tanto em Malta como em Gozo (completando o Forte Chambray); junto ao Forte de Sant’Elmo, criou um local, onde as mulheres se pudessem abrigar, em caso de cerco ou de ataque pelos Turcos; armou, à sua custa, três grandes galés e uma fragata; começou a construção de uma doca, para reparação das embarcações da Ordem.

Na Década de 1740, fez importantes obras no Palácio dos Grão-Mestres, dando-lhe a sua configuração actual; ali se encontra instalada a Presidência da República de Malta. Concluiu o Albergue de Castela, em cuja fachada figuram o seu busto e as suas armas, e as de Portugal, e que, actualmente, acolhe o Gabinete do Primeiro Ministro. Erigiu o Palácio de Justiça, para alojar o Tribunal e a prisão, substituindo uma construção do Séc. XVI.

Encomendou os icónicos edifícios à beira-mar, ainda hoje conhecidos como “Pinto’s Stores”, 19 espaçosos armazéns, que se juntaram aos 2 devidos a Vilhena, destinados a incrementar a actividade portuária.

Ainda no domínio da Economia, fez plantar amoreiras, em várias partes da Ilha, com vista a encorajar a produção de seda, como o Marquês de Pombal, em Portugal, em ambos os casos parece que sem grande sucesso.

 (Não se acrescenta, porém, à sua glória, atribuir-se-lhe a construção de edifícios que, na verdade, não lhe são devidos, como o do Almirantado, o da Alfândega e o da Biblioteca).

                                                                                VII

Como outros Soberanos católicos de então, Pinto entrou em conflito com os Jesuítas, mas só dez anos após Pombal ter iniciado esse movimento, muito depois de Países como França e Espanha e apenas alinhou em 1768, cedendo às fortes pressões de Nápoles. 

Quaisquer que fossem as suas simpatias pessoais neste domínio, era certamente embaraçoso, para Pinto, Chefe de uma Ordem religiosa, adoptar medidas hostis para com uma outra. Pediu autorização ao Papa Clemente XIII que, relutantemente, a concedeu, desde que tudo fosse feito com "toda a devida decência”.

Os Jesuítas foram expulsos, sendo-lhes, porém, concedidas indemnizações – eram 13 Padres, 5 Irmãos e 2 estudantes, além de três, idosos, dos quais 2 malteses, que foram autorizados a permanecer. Os haveres da Companhia foram confiscados e, não surpreendentemente, destinados a financiar a Universidade (Pubblica Università di Studi Generali) instituída pelo Grão-Mestre, no ano seguinte.

Deve-se, também, a Pinto a introdução definitiva de uma oficina de impressão em Malta. Esforços nesse domínio haviam sido feitos, em meados do Séc. XVII, mas haviam-se gorado, dadas as disputas entre Bispo, Inquisidor e Grão-Mestre, relativamente ao direito de censura das publicações. Foi o Embaixador da Ordem em Roma, Balio Guérin de Tencin, que, em 1746, conseguiu fosse alcançada uma solução. Acordou-se em que o Imprimatur deveria conter as assinaturas, alinhadas à mesma altura, do Bispo, do Inquisidor e do Grão-Mestre. A tipografia foi instalada no Palácio Magistral (Stamperia del Palazzo), sob estrito controle da Ordem, pois. Começou a funcionar em 1756, a única em Malta, até aos anos 1820.

Foi, igualmente, durante o Magistério de Pinto que se deram passos decisivos, no tocante a um relevante projecto cultural, a Biblioteca Pública.

Um Decreto do Grão-Mestre, de 1555, reiterado em 1612, ordenara que os livros dos Cavaleiros fossem legados ao Tesouro da Ordem, mas essa disposição terá ficado, em larga medida, letra morta. De qualquer modo, o acesso à denominada Biblioteca de S. João estava limitado aos Cavaleiros. Agora, em conformidade com o espírito do Século das Luzes, o já referido Balio Tencin concebeu o plano de criar uma grande Biblioteca, aberta ao público em geral. Com vista àquele fim, juntou, à sua importante colecção pessoal de livros, a notável biblioteca que o Cardeal Portocarrero legara à Ordem de Malta, e também a própria Biblioteca de S. João, cuja guarda e conservação lhe foram confiadas.

Em 1761, Tencin alugou uma casa, onde os livros foram instalados e se tornou, assim, a primeira Biblioteca aberta ao público, em Malta, da qual ele se ocupou até à sua morte, em 1766, e que, em sua honra, foi chamada Biblioteca Tanseana. Mas foi já  durante o Magistério de Rohan, em 1776, que o Capítulo Geral decretou solenemente a fundação da Biblioteca Pública. As actuais instalações datam de 1796.  

Mas Pinto da Fonseca não deixava de ser um dirigente religioso e um Soberano católico. Datam do seu Magistério a reconstrução da Igreja de Santo Agostinho, em Valeta, e o termo da construção da de S. Públio. Foi particularmente generoso para com a Igreja Conventual de S. João, à qual doou dois enormes lampadários de prata, bem como dois sinos, idênticos aos mais fortes que, então, havia em Itália, tendo, para o efeito, mandado fundir dois basiliscos, abandonados pelos Otomanos, aquando do Grande Cerco de 1565; estão ainda hoje em uso.

                                                                                  VIII

Durante o Magistério de Pinto, não se registaram feitos de armas, contra os Otomanos. Houve, porém, alguns incidentes dignos de nota.

O primeiro, em 1748-49, revestiu-se de extrema gravidade, e pôs em risco a própria existência da Ordem. Impressionou vivamente os contemporâneos, tendo-nos chegado extensos relatos, nem sempre concordantes. Como escreve um autor inglês do Séc.XIX, “the story is a strange one, bordering closely on the romantic”.

Os escravos cristãos (malteses e gregos) em serviço numa embarcação turca, assenhorearam-se dela e trouxeram-na para Malta, onde foram recebidos como heróis. A bordo, vinha, sob prisão, Mustafá, Governador de Rodes. Inicialmente detido no Forte Sant’Elmo, foi autorizado, pela intercessão do Embaixador francês, a beneficiar de residência própria, com total liberdade de movimentos, que ele aproveitou, para organizar uma conspiração, entre os cerca de 1500 escravos muçulmanos presentes na Ilha. O objectivo era assassinar o Grão-Mestre, levar a cabo o massacre dos Cavaleiros e da população cristã em geral, conseguir dominar Malta e abri-la à invasão e ocupação por forças muçulmanas.      

A revolta, que contava com o apoio de Constantinopla, deveria eclodir a 29 de Junho, Festa  de S. Pedro e S. Paulo.

Por mero acaso, uma rixa num café, alguns dias antes, fez descarrilar o plano. Dois conjurados tentaram aliciar um jovem maltês, soldado da Guarda. Perante a sua recusa, preparavam-se para o assassinar, quando foram surpreendidos pelo proprietário do estabelecimento, que se apressou a prevenir, pessoalmente, o próprio Grão-Mestre. Dos 153 implicados na conspiração, rapidamente detidos e julgados, 3 salvaram a vida, 4 pereceram sob as torturas, 34 foram executados com grande crueldade (como os Távoras, em Portugal, alguns anos depois). Mas o Paxá Mustafá escapou a qualquer punição, mais uma vez graças às autoridades francesas, que enviaram uma embarcação, na qual, de noite, foi retirado da Ilha.                     

O jovem soldado, de nome Qassar, foi promovido e assumiu o comando da Guarda, agora designada Guardia Urbana, que passou a ser composta, exclusivamente, por malteses.

O dono do Café, José Cohen, chegado, poucos anos antes de Esmirna e convertido ao Catolicismo, foi generosamente premiado; não deixa de ser irónico que um provável descendente de sefarditas, obrigados, no Séc. XVI, a deixar Portugal, tenha salvado um Grão-Mestre português, e uma Ordem não particularmente generosa para com os judeus).

Cito ainda um disparate que li e cujo único interesse é ser um exemplo do muito de lendário que envolve este Grão-Mestre. Em 1743, a povoação de Qurmi foi denominada Cittá Pinto. Adoptou, no seu brasão, cinco crescentes, armas tradicionais dos Pinto mas que aqui, afirma-se, evocariam cinco otomanos que, durante a revolta, ele teria vencido, com a sua própria espada, de uma só vez…

A descoberta da conspiração passou a ser celebrada, a 29 de Junho, com um ofício na Igreja Conventual.

Em 1760, teve lugar outro episódio, com algumas parecenças. Os 71 escravos cristãos, tripulantes do navio-almirante da esquadra turca, que cobrava o tributo anual no Arquipélago, apoderaram-se dele, quando estava ancorado em Stancio, fizeram prisioneiros os oficiais e conduziram-no para Malta, onde o ofereceram à Ordem. Furioso, o Sultão preparava-se para tirar vingança da perda de um dos seus melhores navios, o que foi evitado, por a embarcação ter sido adquirida por Luís XV e levada para Constantinopla.

 De carácter mais propriamente bélico, teve lugar uma ocorrência, quase no final do Magistério de Pinto, em 1770.

O Bei de Tunis recusava libertar os escravos corsos, capturados antes da então recente aquisição da Córsega pela França. Uma frota, comandada pelo Conde de Broves, bombardeou Tunis e outras Cidades daquela Regência, tendo recebido o apoio da Ordem, aliada da França e inimiga dos Barbarescos, para mais estando em jogo a situação de cristãos.

Um visitante britânico descreve, como um espectáculo e sem dramatismo, a partida de Malta dos enormes navios, três galés, a maior das quais com 900 homens e as outras com 700 cada, três galeotas e três “scampavia” -  as naves movendo-se a remos e com grande regularidade, o mar repleto de embarcações, a assistência enchendo as muralhas e fortificações, o porto ressoando com as descargas de artilharia pesada, às quais respondiam as galés e galeotas, produzindo o eco um muito nobre efeito e, em cada galé, uns 30 Cavaleiros fazendo sinais, a todo o tempo, às amantes, que choravam nos bastiões…Muitas embarcações seguiram a esquadra e não voltaram antes do Sol posto. O viajante comenta: “ O espectáculo estava agora terminado e proporcionou-nos grande entretenimento”.

Aqueles já não eram os tempos heróicos da Ordem de Malta ...

                                                                                       IX

Embora Malta tivesse sido cedida aos Hospitalários como um Feudo, Pinto insistiu em que, aos seus Embaixadores em Cortes estrangeiras, fosse reconhecido o mesmo estatuto que aos representantes dos Monarcas. Conseguiu-o mesmo em Roma, em 1747, apesar de o Grão-Mestre, como chefe de uma Ordem Religiosa, dever obediência ao Sumo Pontífice (no plano espiritual). Aliás, as relações bilaterais com a Santa Sé foram boas, tendo Pinto da Fonseca recebido a raras vezes concedida distinção do Estoque (espada de prata) e do Casco ( barrete de veludo) benzidos solenemente pelo Papa ( Vilhena havia sido o primeiro Grão-Mestre  galardoado). 

As dificuldades vieram do lado de Nápoles. O Imperador Carlos V impusera aos Cavaleiros o tributo de um falcão, a ser entregue anualmente ao Vice-Rei da Sicília. Ora, em 1734, Carlos de Bourbon tornou-se Rei de Nápoles (como Carlos VII) e da Sicília (como Carlos V). Era o primeiro Soberano que ali residia, depois de Séculos de Vice-Reinados, e estaria desejoso de se impor, incluindo no que tocava aos direitos de Suserania da Sicília sobre Malta.

Assim, em 1753, pretendeu que se deslocasse a Malta um Visitador Apostólico, como sucedera até 1530, antes da Instalação dos Cavaleiros na Ilha. Pinto não o consentiu, mesmo tendo o Rei recorrido à arma tradicionalmente utilizada, i.e. o bloqueio à exportação de trigo para Malta. A questão foi levada ao Papa, a disputa acabou por ser resolvida a contento do Grão-Mestre e a Visitação Apostólica nunca teve lugar.

                                                                                        X

As ambições de Pinto foram mais longe.

A Córsega revoltou-se contra o domínio que a República de Génova exercia sobre a Ilha, desde finais do Séc. XIII. Emissários dos rebeldes terão sido recebidos pelo Grão-Mestre e sugerido a união da Córsega a Malta. Essa hipótese foi apresentada, em Versailles, em 1748, pelo representante da Ordem, Balio de Froulay. No ano seguinte, Pinto escrevia que “ seria vantajoso para Génova abandonar a Córsega, mediante uma boa indemnização em numerário, que eu pagaria, e assim se satisfaziam os gostos de todos”.

Em 1752, preparou um plano de união da Córsega ao Arquipélago Maltês, sob soberania da Ordem, mas Choiseul fez saber que Luís XV pretendia aquela Ilha para a França.

Outras ambições haviam surgido entretanto, como a do Papa Bento XIV, a favor do Pretendente Stuart no exílio, e a de Isabel Farnésio, para seu filho Filipe.

Sobretudo, a revolta dotara-se de um dirigente, o General Paoli, muito respeitado em largos sectores da opinião, na Europa e na América do Norte, que se opunha à união com Malta e fizera fracassar, em 1754, um projecto nesse sentido.

Não obstante, as relações entre as duas Ilhas mantiveram-se muito boas. Um dos primeiros navios da frota corsa, se não mesmo o primeiro, um xaveco , navegando sob bandeira corsa, conhecido como a “Galeotta”, teria sido oferecido por Pinto a Paoli.

Mas Pinto, em 1763, ainda não renunciara às suas ambições, alegando as vantagens que a união traria ao Catolicismo, nas duas Ilhas; em vão.

Em 1768, a França anexou a Córsega. No ano seguinte, nasceria lá Napoleão Bonaparte. Em 1798, em rota para o Egipto, o General Bonaparte ocupou Malta, expulsou os Cavaleiros e privou a Ordem da sua base territorial. Tem-se especulado sobre qual teria sido o curso da História, se a França não tivesse anexado a Córsega; e se as ambições de Pinto tivessem ido avante? Para começar, ter-se-ia Napoleão feito Cavaleiro, caso os corsos fossem admitidos na Ordem (o que não era o caso dos malteses) ele que, uma vez, terá descrito a Ordem como “ uma instituição para sustentar, na ociosidade, os filhos mais jovens das famílias privilegiadas”?

(Para concluir esta secção, tenha-se presente que a área da Sicília é de 25.711 km2, a de Chipre 9.251, a da Córsega 8.722, a de Rodes 1.401, a de Malta de, apenas, 316).

                                                                              XI

Com Frederico II, o círculo de interlocutores de Pinto alarga-se, para além dos Soberanos católicos. 

 

Frederico II

Recorde-se que a Prússia assentava os seus alicerces na Ordem Teutónica, e que esta surgira, na Terra Santa, como as do Hospital e do Templo, no Séc.XII. Com o fim dos Estados cruzados, estabelecera-se, não na região do Mediterrâneo, mas na do Báltico, onde criara um Estado de grandes dimensões. Não combatia os muçulmanos, mas povos ditos bárbaros e pagãos. Tanto Hospitalários como Teutónicos eram Ordens Religiosas e Militares, dotadas de poderes soberanos.

No Séc. XVI, a Ordem Teutónica foi tocada pelo movimento da Reforma, o Grão-Mestre Alberto de Brandeburgo, da Casa de Hohenzollern, converteu-se ao Luteranismo, passando a governar os territórios ocidentais da Ordem, como Ducado da Prússia; este, em 1701, ascendeu a Reino da Prússia. Terá sido a memória das afinidades, no passado, entre Teutónicos e Hospitalários, que predispôs Frederico II a  uma atitude positiva para com a Ordem de Malta?

De 1740 a 1763, Frederico II moveu três guerras contra Maria Teresa de Áustria, que terminaram com a anexação da Silésia, pela Prússia, que se tornou o principal Estado protestante germânico. Consentiu, contudo, que o Grão-Priorado da Boémia, da Língua Alemã da Ordem de Malta, conservasse as Comendas que detinha na Silésia.

A outra questão tem a ver com a Grão-Baliado de Brandeburgo, constituído em 1318, no Nordeste do Sacro-Império, agregando Comendas da Ordem de Malta. Gozava de grande autonomia e, no Séc. XIV, foi-lhe reconhecido o direito de eleger o seu próprio Balio, o Herrenmeister. A Reforma tocou também o Grão-Baliado, tendo 7 das suas 13 Comendas aderido ao Luteranismo. Com os Tratados de Vestefália de 1648, o Grão-Baliado luterano obteve plena independência, relativamente à Ordem de Malta, e foi colocado sob a protecção do Eleitor de Brandeburgo, da Casa de Hohenzollern, mais tarde Rei da Prússia. Adoptou a designação de Johanniter Orden, ou Ordem Evangélica de S. João.

Ao longo desse tempo, as eleições dos sucessivos Herrenmeister foram sendo comunicadas à Ordem de Malta, mas os responsões deixaram de ser remetidos, privando o Tesouro da Ordem de importantes rendimentos. Frederico II e o Grão-Mestre Pinto chegaram a um acordo, em 1764, com vista à reunificação, mas a oposição do Papa Clemente XIII impediu que fosse concretizado.  Segundo uma versão um pouco diferente (Desmond Seward) em 1763, o Balio, Príncipe Fernando da Prússia, tio de Frederico II, enviou responsões, que foram aceites por Pinto, acrescentando-se que, ainda que nunca reconhecidos como Cavaleiros de Malta, os Comendadores de Brandeburgo continuaram a remeter responsões e, em 1793, passaram a usar o uniforme vermelho da Ordem.

                                                                                    XII

Nada faria prever um relacionamento entre, por um lado, a Rússia, um dos maiores Impérios que o Mundo já conheceu, Potência ortodoxa euro-asiática, com uma janela sobre o Báltico, e, por outro, Malta, minúscula Ilha no Mediterrâneo, ou melhor, a Ordem Religiosa e Militar católica, que, nela, tinha a sua base territorial.

Foi Pedro o Grande quem, em 1697, fez a primeira aproximação, por carta ao Grão-Mestre Raymond Perellós, convidando a Ordem a juntar-se a uma aliança, com o Sacro Império, a Polónia/Lituânia e Veneza, contra os Otomanos.

Seguiu-se, durante Décadas, correspondência, essencialmente de natureza protocolar, entre os Czares e Imperatrizes da Rússia e os Grão-Mestres de Malta. Mas ambas as Partes viram vantagens no aprofundamento de tais relações.

Pinto compreendeu que a influência russa poderia revestir-se de grande utilidade, para a salvaguarda dos interesses da Ordem na Europa Central e Oriental. Aqui, assume papel de destaque a figura do Balio Michele Enrico Sagramoso, ilustre viajante e membro reconhecido e apreciado da “intelligentsia” europeia.

Já em 1748, por instruções de Pinto, Sagramoso procurara, em S. Petersburgo, obter que a Imperatriz Isabel apoiasse o pedido dirigido pela Ordem a Frederico II, no sentido de concessão de um tratamento fiscal favorável às Comendas situadas na Silésia, que passara para o domínio prussiano, como atrás se referiu.

 De uma relevância superior, no entanto, era a chamada “Questão de Ostrog”, que se arrastava desde o princípio do Séc. XVII. Ostrog era um gigantesco domínio na Polónia, hoje em território ucraniano, com cerca de 14 mil km2 (quase três vezes maior que o Algarve), que incluía, designadamente, 24 Cidades. Nos textos em francês, é designado, geralmente, por “Ordination”, por vezes como “Duché”, em inglês por “Ordination”, por “Entail” ou por “Duchy”; não vi nenhum texto em português sobre o assunto e, em vez que utilizar a palavra Ordenação, aqui não aplicável, preferirei “Ordination”, como o fazia ,aliás, Pinto, pois escrevia em francês.

O testamento do Duque de Ostrog, de 1609, estabelecia que, a extinguir-se toda a descendência masculina, as terras passariam para a Ordem de Malta, para ali instituir Comendas; porém, membros poderosos da Aristocracia polaca foram partilhando a “Ordination”, tornando vãs as pretensões da Ordem, que parecia ter-se acabado por resignar com tal situação.

O Grão-Mestre Pinto, porém, viria a reactivar a questão, passado já quase Século e meio, desde a redacção do testamento. Por carta de Agosto de 1767, pede a protecção da Imperatriz Catarina II para a reclamação e outros actos e instâncias que o Balio de Fleury, Embaixador da Ordem em França, pudesse ter de efectuar na Polónia, no tocante à ”Ordination” de Ostrog. A diligência do Grão-Mestre tinha razão de ser, dado o peso da Rússia, na política polaca. Ainda poucos anos antes, Estanislau Poniatowski, ex-amante de Catarina II, subira ao trono da Polónia, com o apoio russo. E a Czarina, efectivamente, ainda em 1767, escreveu ao seu Embaixador em Varsóvia, no sentido de recomendar a Ordem “ à justiça da Nação Polaca”.

Catarina II

Nos princípios de 1770, Pinto recorreu, uma vez mais, aos serviços de Sagramoso, que há muito estabelecera laços de amizade com Catarina II, instruindo-o, agora, no sentido de tentar recuperar as terras da “Ordination” ou, pelo menos, os rendimentos correspondentes. Também deveria procurar fossem liquidados os pagamentos, em atraso, de duas Comendas polacas.

Agravavam-se, então, as tensões que levariam à Primeira Partilha da Polónia, pela Rússia, Áustria e Prússia, formalizada no Verão de 1772.

Sagramoso foi manobrando, com notável habilidade, num quadro da maior complexidade. Como meio de pressão sobre os Deputados polacos, chegou a recorrer ao artifício de fazer constar que a Ordem o autorizara a ceder os  direitos sobre Ostrog ao Herrenmeister do Baliado de Brandeburgo, irmão de Frederico II, o que abriria a uma Potência protestante larga porção de território polaco e incluiria a “Ordination” nas negociações sobre a partilha da Polónia.

Contudo, a balança tinha outro prato.

Quando Pedro o Grande fizera o contacto inicial, a Rússia estava sobretudo interessada em obter apoio técnico, para a organização das suas forças navais e, com esse objectivo, foi enviado a Malta Boris Cheremetiev, confidente do Czar.

Mas, na perspectiva da Rússia, outro interesse surgiu, que se tornou bem mais destacado - os portos de águas profundas de Malta, que poderiam servir de base a uma frota russa, para atacar o Império Otomano, pelo Mediterrâneo.

Em 1764, ano em que fizera subir Estanislau Poniatowski ao Trono da Polónia,  Catarina II, preparando-se para a eventualidade de uma guerra , contra os Otomanos,  solicitou a Pinto, através de contactos diplomáticos em Viena, Roma e Paris, que fossem destacados dois Cavaleiros, para prestar serviço nas galeras russas; para não desagradar a Luís XV, o Grão-Mestre respondeu de forma dilatória.

A Czarina sonhava restaurar o Império Bizantino, a favor de seu segundo neto, Constantino, e via a importância de que os portos malteses se poderiam revestir nesse quadro. Em carta ao Grão-Mestre Pinto, de 18 de Julho de 1769, menciona a luta contra o inimigo perpétuo da Santa Cruz, anuncia o envio de uma das suas esquadras para os mares de Malta, dizendo esperar que os navios possam ter acesso livre aos portos malteses.

Pinto, que não aceitou o portador da carta, Marquês de Cavalcabo, na qualidade de Embaixador, mas, apenas, como Enviado, respondeu à Czarina, em 31 de Janeiro de 1770, invocando os constrangimentos a que estava sujeito pelas Potências Protectoras, que limitavam a quatro o número de navios russos que podiam ser recebidos em Malta.

Gerou-se alguma tensão e a Ordem receou a reacção russa. Três navios russos, velhos mas “recheados de gente”, surgiram em frente de Malta. Tendo recusado submeter-se à quarentena, foi-lhes impedida a entrada e afastaram-se.

Quase três anos mais tarde, o Grão-Mestre, em carta de Setembro de 1772, a Catarina, alude à presença de oficiais russos em navios da Ordem e sublinha que tem procurado conciliar os interesses da Rússia com os deveres absolutos para com os Príncipes, dos quais a Ordem de Malta depende. Insiste na necessidade de a Ordem observar a mais estrita neutralidade. Diz que, se a Imperatriz pudesse contribuir para a prosperidade da Ordem, os interesses da Rússia passariam a ser, para a Ordem, como se fossem interesses seus, como eram os de todos os seus outros benfeitores.

Assim, recorria novamente à poderosa protecção imperial, para a recuperação da “Ordination” de Ostrog, anunciava que o Cavaleiro Sagramoso fora nomeado Ministro Plenipotenciário para o efeito e pedia à Imperatriz que apoiasse a sua missão, junto do Rei da Polónia e dos seus aliados.

Finalmente, em Dezembro de 1774, um acordo foi alcançado – a Ordem de Malta renunciava à “Ordination” mas, em contrapartida, as autoridades polacas permitiam a fundação de oito Comendas e erigiam um Grão-Priorado , com o rendimento de 150 mil florins.

Pinto já não viu este sucesso para os interesses da Ordem, tendo morrido em Janeiro de 1773.

Entretanto, levantaram-se suspeitas de que o representante diplomático russo em Malta, Marquês de Cavalcabo, estaria a desenvolver actividades subversivas, com vista a levar a população maltesa a revoltar-se contra a Ordem e a favorecer a posição da Rússia. Foi ordenada a sua saída da Ilha, no início de 1775, já no tempo do sucessor de Pinto, Ximenes.

Com Pinto, as questões relativas à Europa Central e Oriental assumiram, para a Ordem, uma importância que não tinham tido anteriormente. Tal ir-se-ia acentuando, nas Décadas finais do Século, e culminar com a eleição, como Grão-Mestre, de Paulo I, filho de Catarina II, com a transferência episódica da Sede para S. Petersburgo, trocando-se, pela primeira e única vez, na História milenar da Ordem de Malta, as margens do Mediterrâneo, pelas do Báltico.

Por seu lado, Paulo I sempre tivera uma verdadeira paixão pela Ordem de Malta, o que não fora o caso de sua mãe, cujo interesse não era pela Ordem, mas pela posição estratégica de Malta. O “Episódio Russo” da Ordem de Malta terminou, pouco depois do assassinato de Paulo I, mas os russos nunca se haveriam de desinteressar do Mediterrâneo, até aos dias de hoje.

(É ao “Episódio Russo” que numerosas “ Ordens de fantasia”, auto-denominadas “de Malta”, pretendem remontar a sua origem. Abordei um dos casos mais extraordinários, em Conferência, a 10 de Abril de 2014, na Sociedade de Geografia de Lisboa, intitulada “A Ordem Ecuménica de Malta em S. Tomé e Príncipe”, podendo aceder-se ao respectivo texto neste Blog.  

                                                                     

                                                                      XIII

Segundo Martim de Albuquerque, ainda que Pinto cumprisse as suas obrigações religiosas meticulosamente, estava muito longe de ser um puritano. Quatro dias depois de ser eleito, assistiu no Teatro Manoel (fundado por Vilhena) à peça “L’Arminio”; a representação terminou às 20 H e foi seguida de um concerto, com copiosos refrescos nos intervalos, até perto da meia-noite. Pinto permaneceu até ao fim e, depois, voltou a pé para o Palácio; o seu predecessor imediato, Despuig , nunca fora ao Teatro. Uma semana depois, deu o seu primeiro banquete, após o que foi novamente ao Teatro, ver a ópera “La Salustre”.

Por seu lado, o viajante britânico Brydone,  anteriormente citado, faz-nos um pitoresco retrato de Pinto, em 1770, já com mais de 90 anos, mantendo toda a sua energia e lucidez. O Grão-Mestre, “mostrou grande satisfação, por saber que alguns de nós tínhamos estado em Portugal e mencionou as estreitas relações comerciais que se mantinham há tanto tempo entre as nossas Nações.”. Brydone sublinha que o estilo de vida de Pinto era muito principesco e que ele era mais absoluto e possuía mais poder que a maioria dos Príncipes Soberanos.

Pinto da Fonseca teve, pelo menos, um filho, José António Pinto da Fonseca e Vilhena, o que não terá sido motivo de escândalo, já que era muito habitual que Cavaleiros de Malta tivessem filhos, não obstante os votos de castidade.

Mais extraordinário é que Cagliostro, geralmente considerado o grande impostor do Séc. XVIII, tenha afirmado ser filho do Grão-Mestre e de uma Princesa de Trebizonda. Na verdade, é mesmo duvidoso que alguma vez tenha estado em Malta. É certo que o Grão-Mestre e Cagliostro tinham, em comum, o gosto pela alquimia, sendo voz corrente que Pinto fizera instalar, no Palácio, um laboratório, onde eram efectuadas experiências; largas somas teriam sido gastas, na busca da Pedra Filosofal.

Já quanto à Maçonaria, da qual Cagliostro foi um grande difusor, criador, mesmo, do Rito Egípcio, o mais provável é que Pinto não lhe tenha pertencido, o que não impede que figure, em certa literatura, como presidindo a misteriosas cerimónias de iniciação. O Grão-Mestre é também, por vezes, associado ao Conde de Saint-Germain, outra figura enigmática.

Esta matéria da ligação de Pinto ao Mundo do esoterismo mereceria ser estudada, mais detidamente.

                                                                             XIV

Manuel Pinto da Fonseca faleceu a 23 e Janeiro de 1773. O seu mausoléu é dos mais majestosos na Co-Catedral de S. João.

 

 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

JERUSALÉM, 1913

Por sugestão de um amigo, revisitei Jerusalem 1913: The Origins of the Arab-Israeli Conflict (2007), da escritora e jornalista judia norte-americana Amy Dockser Marcus, que recebeu em 2005 o Prémio Pulitzer para a Melhor Reportagem.

Amy Dockser Marcus, autora de diversas obras, foi correspondente de "The Wall Street Journal" em Israel de 1991 a 1998, tendo o seu primeiro livro, The View from Nebo: How Archaeology is Rewriting the Bible and the Reshaping the Middle East (2000), obtido assinalável sucesso.

O conflito israelo-palestino é uma das questões com mais profundas repercussões internacionais ao longo do último século. As origens do antagonismo entre as duas partes são habitualmente referidas ao período do Mandato Britânico (1920-1948), quando o Reino Unido assumiu o controlo administrativo da Palestina a seguir à Primeira Guerra Mundial, embora a tensão entre as duas comunidades seja realmente anterior.

O livro de Amy Dockser Marcus é o primeiro relato "popular" de uma era chave na história do Médio Oriente, assunto sobre o qual têm sido escritos centenas de livros eruditos e também vários de pura propaganda política. Durante séculos, Jerusalém foi um local onde conviveram em paz as três grandes religiões monoteístas (judeus, cristãos e muçulmanos), de acordo com as suas ricas e diversificadas culturas. A ascensão do Sionismo e as grandes vagas de imigrantes judeus, procurando reclamar o que consideravam ser a sua casa ancestral e adquirindo consecutivamente terras e imóveis, alarmou a população árabe, que anteviu, judiciosamente, a sua progressiva perda de poder. 

A Palestina integrava, desde há cinco séculos, o Império Otomano, onde coexistiam credos diferentes, quase sempre pacificamente desde que aceitassem a autoridade da Sublime Porta. A Revolução dos Jovens Turcos (1908) obrigou o sultão Abdul-Hamid II a restaurar o Parlamento, sendo o poder real entregue a um triunvirato de três paxás (Mehmet Talat, Ismaïl Enver e Ahmet Djemal) que procuraram imprimir um novo rumo ao Império. Mas essa data assinala também, com o despertar dos nacionalismos, o início da decadência otomana. A eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914) constituiu o desastre final. Mehmet V tinha sucedido a Abdul-Hamid II em 1909 e permaneceu no poder até à sua morte em 1918. Foi neste reinado que o Império Otomano, tendo-se juntado aos Impérios Centrais, viria a perder a guerra. O seu sucessor, Mehmet VI, não conseguiu impedir que os britânicos ocupassem Baghdad e Jerusalém, tendo a maioria do Império sido dividida pelos "aliados". Na Conferência de San Remo, em Abril de 1920, foram constituídos os territórios de mandato: a Síria e o Líbano para a França, a Palestina e a Mesopotâmia para O Reino Unido. O Tratado de Sévres (Agosto de 1920), confirmou San Remo e retirou ao Império Otomano o controlo da Anatólia e de Izmir, reduzindo-o à Turquia. Por outro lado, surgiu, independente, o Reino do Hejaz. Os nacionalistas ficaram decepcionados com Mehmet VI e foi instaurado um governo temporário sob a liderança de Mustafa Kemal Atatürk (1920). Em 1 de Novembro de 1922 a Monarquia foi abolida e proclamada a República, sendo primeiro presidente Mustafa Kemal Atatürk, que ganhara a guerra da independência turca (1919-1922). Mehmet VI foi exilado e sucedeu-lhe, já não como Sultão mas apenas como Califa, Abdul Mejid II (1922-1924). A República Turca foi reconhecida pelo Tratado de Lausanne em Julho de 1923. Em 1924, a Grande Assembleia Nacional Turca aboliu o Califado.

Achei por bem registar estes acontecimentos, que nos ajudam a compreender as vicissitudes ocorridas na Palestina durante o conturbado período da Primeira Guerra Mundial.

Mas regressemos ao conteúdo do livro. Quando chegou, em trabalho, a Telavive, em 1991, Amy Dockser Marcus apaixonou-se pela terra e pela sua história, e começou as suas investigações. Documentou-se, falou com a população local, árabes e judeus, e foi enviando as suas crónicas para o jornal, das quais resultou, em parte, o presente livro.

A questão da criação de um Estado para os judeus assumiu uma especial projecção com a publicação do livro Der Judenstaat (O Estado Judaico), em 1895/1896, do jornalista judeu austro-húngaro Theodor Herzl, que se  mostrou indignado com o famoso caso Dreyfus e com as perseguições e discriminações a que os judeus vinham sendo sujeitos em vários países da Europa. Depois das guerras dos judeus contra os romanos, admiravelmente descritas no célebre livro A Guerra dos Judeus, do famoso historiador judeu (cidadão romano) Flavius Josephus (37-100), a revolta da província romana da Judeia foi oficialmente encerrada em 70, com a vitória dos romanos, embora a luta se tenha prolongado até 73, com a tomada da fortaleza de Massada. As operações foram comandadas pelo imperador Vespasiano, tendo seu filho (e futuro imperador) Tito sitiado e destruído Jerusalém e arrasado o Segundo Templo (70). Em sua honra, ergueu-se, no Forum Romano, o Arco de Tito. No reinado do imperador Adriano eclodiu uma nova revolta judaica contra os romanos conduzida por um indivíduo que aqueles consideravam ser o Messias anunciado no Antigo Testamento. Adriano, que os judeus detestavam pela sua afeição pela cultura grega, sufocou a revolta e construiu, em 131, sobre as ruínas de Jerusalém anteriormente devastada por Tito uma nova cidade, Élia Capitolina (do seu nome, Públio Élio Adriano (Publius Aelius Hadrianus), edificando no local do Segundo Templo um novo templo dedicado a Júpiter Capitolino. Alterou também para Palestina o nome da província romana da Judeia, nome proveniente de Filistia, designação do território ocupado pelos filisteus desde os tempos faraónicos e que correspondia a uma vasta porção de terra compreendida entre o Mar Mediterrâneo e uma linha terrestre situada sensivelmente entre as actuais cidades de Gaza e de Telavive. Em consequência, os judeus dispersaram-se na sua maioria por territórios na Europa, na Ásia e na África, onde permaneceram maioritariamente até ao século XX, e ainda hoje parcialmente permanecem. A partir do século XIX, registou-se um importante fluxo migratório desses países para o continente americano, especialmente para os Estados Unidos da América. Esta migração do povo judeu, começada em 70, ficou conhecida como Diáspora, ainda que o termo também seja utilizado noutras circunstâncias. Costumam citar-se, a propósito, estas passagens do Antigo Testamento (Livro de Ezequiel - 22,15: «Eis que Eu mesmo te espalharei entre as nações e te expatriarei por todas as terras; colocarei um ponto final à tua imundície.»). Ou do (Livro de Jeremias - 9,16: «Também os espalharei por entre nações que nem eles nem seus pais conheceram; enviarei contra eles a espada, até que os tenha exterminado.»). Existem outras passagens semelhantes nos Livros do Antigo Testamento.

A Organização Sionista Mundial foi fundada por iniciativa de Theodor Herzl no primeiro Congresso Sionista Mundial, reunido em Basileia em Agosto de 1897. Herzl foi o seu primeiro presidente até à sua morte em 1904. A intenção primordial, além da conservação dos usos, costumes e rituais judaicos era a criação de um Estado para os judeus. Foram aventadas diversas hipóteses, entre as quais um território no Uganda, o planalto de Benguela (em Angola) e mesmo a ilha de Madagascar, mas a maioria dos delegados preferia a Palestina, especialmente por causa de Jerusalém. Deve dizer-se que Herzl não privilegiava a Palestina, que nem sequer conhecia e que acabou finalmente por visitar aquando da viagem àquele território do imperador alemão Guilherme II. O que ele realmente pretendia era um Estado independente, mas acabou por se vergar à tendência maioritária dos sucessivos Congressos sionistas.

Os congressos sionistas realizados posteriormente consideraram que a Palestina era o único território para a constituição do novo Estado Judaico e iniciaram uma progressiva aquisição de terras, inicialmente por métodos normais e posteriormente com o uso da força, aos seus legítimos proprietários Havia sido, entretanto, estabelecido um escritório judaico em Jaffa, próximo do local onde hoje se ergue a cidade de Telavive, para tratar da compra de terrenos e casas e começar a instalar os colonatos judeus. Apesar do Império Otomano ter sido sempre terra de acolhimento para judeus, o sultão Abdul-Hamid II não via com bons olhos a entrada maciça de judeus na Palestina, apesar da intenção da criação de um estado ter sido, tanto quanto possível, mantida em segredo. Refira-se que a aquisição de propriedades se fazia nos terrenos mais férteis em detrimento de solos improdutivos, mas privilegiando sempre a cidade de Jerusalém, que era o objectivo primordial da Organização Sionista. Aliás, os judeus costumavam despedir-se no fim das suas reuniões com a expressão: «No próximo ano em Jerusalém!».

A autora resolveu intitular o seu livro Jerusalém 1913 devido a um facto que ela expressamente refere. Em Maio de 1913, o realizador judeu russo Noah Sokolovsky chegou à Palestina com a intenção de realizar um filme sobre os colonatos judaicos. Estávamos nas vésperas da Primeira Guerra Mundial e Sokolovsky pretendia registar o empreendimento dos judeus na Palestina. O realizador trabalhou rapidamente e concluiu o filme em Junho seguinte. Regressou à Rússia para a edição do mesmo que veio a ser apresentado em Setembro no Congresso Sionista anual, em Viena. O filme foi muito criticado, mesmo pelos sionistas, pois Sokolovsky focou-se quase exclusivamente nos judeus, ignorando as vibrantes comunidades árabes de Jaffa e Haifa, que eram largamente maioritárias e raramente são mostradas nas imagens.

Segundo Amy Dockser Marcus, 1913 é o ano decisivo para a colonização judaica da Palestina. As vagas de judeus são incessantes, o que começa a provocar alarme nas populações árabes, que já não ignoram as intenções políticas do fenómeno. São realizados protestos junto da Sublime Porta pelas mais importantes famílias palestinianas, os Husseini, os Khalidi, os Nashashibi. Ruhi al-Khalidi (sobrinho de Yussuf al-Khalidi, presidente da Câmara de Jerusalém entre 1899 e 1907), que chegou a ser deputado ao Parlamento Otomano, foi um dos principais activistas e o conservador da mais notável biblioteca privada de Jerusalém, que ainda hoje existe. Escritor, professor, artista e político, Ruhi al-Khalidi deixou umas memórias inacabadas (morreu subitamente em Constantinopla em 1913, talvez envenenado) que a família nunca publicou.

O relacionamento entre as sucessivas instalações judaicas na Palestina e o Império Otomano sofreu várias flutuações. Os Jovens Turcos preferiram a concepção de um Império em que a otomanidade prevalecesse sobre o islão, como o demonstra a extinção do Califado. Exigiam a submissão ao Império, em detrimento das confissões religiosas e também eles tentaram travar a imigração judaica. Mas a guerra foi desfavorável a Constantinopla e os ingleses aliciaram os árabes para combater os turcos com a (falsa) promessa de um Grande Estado Árabe. O livro do coronel Thomas Edward Lawrence (Os Sete Pilares da Sabedoria) e o célebre filme Lawrence da Arábia ajudam a compreender a sinistra intriga britânica.

Em 1918, segundo a estatística das Nações Unidas, viviam na Palestina 50 000 judeus e 500 000 árabes (maioritariamente muçulmanos sunitas, mas incluindo um número significativo de cristãos católicos e ortodoxos), além de outras minorias religiosas. 

A população judaica foi aumentando a um ritmo impressionante, nomeadamente depois dos Acordos (secretos ?) Sykes-Picot, de 1916, que previa a divisão de esferas de influência no Médio Oriente entre o Reino Unido e a França, na previsível derrota do Império Otomano.

E, sobretudo, depois da Declaração Balfour, de1917, em que Lord Balfour, ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, no governo do primeiro-ministro David Lloyd George, endereçou uma carta ao barão Lionel Rothschild, líder da Comunidade Judaica do Reino Unido, para ser transmitida à Federação Sionista da Grã-Bretanha, em que declarava o seguinte:

"Caro Lord Rothschild,
 
Tenho o grande prazer de endereçar a V. Senhoria, em nome do governo de Sua Majestade, a seguinte declaração de simpatia quanto às aspirações sionistas, declaração submetida ao gabinete e por ele aprovada:
`O governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de um Lar Nacional para o Povo Judeu, e empregará todos os seus esforços no sentido de facilitar a realização desse objetivo, entendendo-se claramente que nada será feito que possa atentar contra os direitos civis e religiosos das coletividades não-judaicas existentes na Palestina, nem contra os direitos e o estatuto político de que gozam os judeus em qualquer outro país.´
Desde já, declaro-me extremamente grato a V. Senhoria pela gentileza de encaminhar esta declaração ao conhecimento da Federação Sionista.
Arthur James Balfour."

A ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha e as perseguições nazis aceleraram ainda mais o êxodo de judeus para a Palestina.

Segundo a Encyclopedia Britannica, havia em 1946, na Palestina, 1 200 000 árabes e 678 000 judeus, isto é, 64 % de população árabe. De 1918 para 1946 o número de judeus aumentou assim de 50 000 para 678 000,

O livro acompanha, quase quotidianamente, as actividades das principais personalidades árabes (muçulmanas e cristãs) e judaicas durante o ano decisivo de 1913, das suas relações entre si e das respectivas relações com os dirigentes otomanos, e depois turcos.  Os Jovens Turcos tinham-se comprometido adoptar uma série de reformas para a convivência das diversas comunidades mas as vicissitudes da guerra não permitiram a sua concretização. O Triunvirato que passou a governar o Império após a derrota na Primeira Guerra Mundial era constituído, como dissemos, por Ismaïl Enver, Mehmet Talat e Ahmet Djemal, a quem viria a ser atribuído o governo da Palestina. Em 1915, foi criada a Comissão do Crescente Vermelho, presidida por Husayn al-Husseini, e que englobava muçulmanos, judeus e cristãos, com a participação do judeu sefardita de Damasco Albert Antebi, grande amigo da família e figura proeminente que desempenhou um papel fulcral em todo o processo do estabelecimento judaico na Palestina, ainda que ele mesmo não se considerasse um sionista. Esta entidade tinha por missão negociar com o Governo Otomano as questões mais delicadas, já que os Jovens Turcos não privilegiavam qualquer confissão mas apenas exigiam a submissão a Constantinopla.

Em 1917, as tropas britânicos saem do Egipto em direcção à Palestina com a clara intenção de tomarem Jerusalém. Na iminência de perder a guerra, Ahmet Djemal, que não queria uma Palestina árabe (dado o apoio fornecido aos árabes pelos ingleses), persegue árabes cristãos e muçulmanos culpando-os de alianças pró-britânicas.

A autora recolheu sabiamente as memórias e testemunhos de pessoas, ou seus descendentes, desses conturbados tempos. E frisa a acção de duas personalidades notáveis que não sobreviveram ao fim da guerra: o árabe muçulmano Ruhi Khalidi (o herdeiro da celebérrima biblioteca) e o judeu não-sionista, mas que acabou por se ver envolvido na trama sionista, Albert Antebi: rivais, colaboradores, ambos devotos de Jerusalém, poderia mesmo dizer-se amigos. 

Uma outra figura notável da época, Wasif Jawhariyyeh, cristão ortodoxo de cultura árabe, poeta e compositor, escreveu no seu diário, depois da Declaração Balfour e da tomada de Jerusalém pelos britânicos: «the loss of our homeland» (p. 156)

Sobre Albert Antebi, a autora escreve: «During the war Albert Antebi ws also at work on a document describing his vision for the future, and it was clear that in it he no longer saw his place as being in Palestine. In 1914, soon after the war broke out, he had complained that the Zionists "claimed to be the only heirs of tomorrow." He recognized that this left him and others who shared his worldview as part of the past. The Zionists, he noted, had "conquered Palestine from the Arabs, Turkey, the European powers and the non-Zionists Jews." In papers found in his briefcase after he died, he argued that the region should be divided into cantons, with different groups controlling each one and the entire country overseen by France.» (pp. 156-7)

Entretanto, os judeus sionistas organizaram grupos terroristas armados que provocaram graves incidentes, como a explosão, em 22 de Julho de 1946, do grande Hotel King David, em Jerusalém, onde se encontrava o quartel-general britânico e de que resultou a morte de uma centena de pessoas de várias nacionalidades. O ataque foi protagonizado pela milícia sionista Irgun e organizado por Menachem Begin, que viria ser, posteriormente e por duas vezes, primeiro-ministro de Israel. Foi dito na altura que o objectivo era a destruição de planos comprometedores dos grupos paramilitares Irgun e Haganah relativos à estratégia sionista de ocupação da Palestina.

Em 1919, reunira-se o primeiro Congresso Árabe/Palestiniano em Haifa, para tentar coordenar a estratégia de afluxo de imigrantes judeus que chegavam cada vez em maior número. Tinham começado por essa altura as confrontações violentas entre os recém-chegados e os habitantes árabes instalados há milénios. Os judeus pretendiam impor a sua cultura, os árabes conservar a que desde sempre possuíam. Todavia, o aproximar do fim da guerra e da queda do Império Otomano dificultavam a adopção de soluções adequadas.

Em Abril de 1939, seis líderes árabes, reuniram-se e formaram o que ficou conhecido por Alto Comando Árabe, dirigido por Haj Amin al-Husseini, pertencente a uma das mais eminentes famílias de Jerusalém, e que fora amigo pessoal de Albert Antebi. O Alto Comando apelou a uma greve geral dos trabalhadores árabes e ao boicote dos produtos judeus. Iniciava-se um período de pré-guerra civil com os britânicos pelo meio. O professor e escritor palestiniano cristão ortodoxo Khalil Sakakini, uma das mais respeitadas figuras dos cristãos árabes, escreveu: «I pray to God the end will be good.» (p. 166)

«Arthur Ruppin [activista sionista, considerado o pai da sociologia hebraica e figura do maior destaque na época] found himself frequently involved in disagreements over how the Jews should respond. Some want to revive the peace talks that had been initiated in 1913 and then suspended because of the war. Ruppin himself even joined a new group called Brit Shalom, which advocated attempting to find a way for the two sides to share Palestine. But he began to find himself increasingly at odds with his friends , who continued to adhere to the idea that Herzl himself had promoted: namely, that eventually the Arabs would realize the economic advantages the Zionist movement brought to Palestine and come to terms  with their presence in the country. Ruppin now found himself taking the position that rational approaches such as these had no relevance for the tribal conflict that existed between the Jews and the Arabs. Political conflicts were not governed by "rational arguments", he told them, "but by instincts." (pp. 166-7)

Não é possível no espaço de um post desenvover a excepcional narrativa de Amy Dockser. O seu livro merece uma atenta leitura. Já me alonguei demasiado. Mas ainda referirei alguns momentos essenciais.

Atendendo à chamada Grande Revolta Árabe contra o Império Otomano instigada pelos ingleses, ao desenvovimento das milícias sionistas e da resistência árabe, cita a autora: «By 1942, Khalil Sakakini was writing in his diary that he saw one of only two possible ways to end the fighting: either the Arabs would remain in control of the land, or the Jews would undertake to assume that control. War was inevitable.» (p. 169)

Amy Dockser Marcus regressou à Palestina no período 2004-2006. 

Em 2004 conseguiu visitar a Biblioteca Khalidi, agora dirigida por Haifa Khalidi, familiar do fundador, que se encontra quase encostada à yeschiva Beir Idra, o que chegou a suscitar problemas judiciais. A Biblioteca contém obras preciosas e há um projecto para a sua digitalização e disponibilização internacional. Retrospectivamente, Amy Dockser confirma a sua convicção que o ano de 1913 foi o momento da grande separação entre a maioria árabe e a minoria judaica que haviam convivido pacificamente durante séculos, até à mise-en-marche do projecto sionista.

Em 2006, Dockser lê uma pequena notícia no jornal israelita "Haaretz", segundo a qual a Turquia anunciava a transferência para a Autoridade Palestiniana do imenso arquivo Otomano, compreendendo cerca de 14 000 páginas de documentos acerca de Jerusalém e da Palestina datando de 1500 a 1914. «The archive apparently contained records and information about land deals and land purchases that would be relevant in Jerusalem today. It wasn't clear yet what the archive would reveal, but the shadow cast by 1913 seemed to loom ever larger over the city's future.» (p. 188)

«Haim Ramon, an Israeli politician, told the press in an interview in December 2005, as Israel embarked on an election campaign, that he feared for the city. Jerusalem, he said, could end becoming "the non-Jewish and non-Zionist capital of Israel", referring to the growing number of ultrareligious Jews and Palestinian Arabs in the city, neither of whom identified with the state. Because the borders of the city have been expanded far beyond what would have been recognizable to Albert Antebi or Ruhi Khalidi in 1913, Israel's Jewish demographic control is now in danger. Out of the larger city's population today of 650,000, one in three people is a Palestinian Arab. The Old City, where Antebi e Khalidi once lived side by side, and where the sites with the deepest national and religious significance to the different ethnic communities are located, is now home to approximately 32,000 Arabs and only 4,000 Jews, according to government statistics published by the Israeli press.» (pp. 189-190)

«In a book published in 2005 called The Jerusalem Lexicon by researchers at the Institute, the geographer Shlomo Hasson articulated what had become clear to most people who studied the problem of Jerusalem's future. "The existence of a democratic state and the continuation of Jewish hegemony in Jerusalem necessitate getting out of the existing situation and adopting new solutions," Hasson wrote. "Above all it is desirable to separate the space in which Jews live from the space where Arabs live and for each side to have the most sovereignity in its area." This is where things had led, from 1913 to our own time - back to the idea of a separate peace.» (p. 190)

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Já vai longo este texto. Li o livro aquando da sua publicação. Como referi no princípio, reli-o agora. Desde a sua edição, em 2007, muito água correu sob as pontes. Mas o livro de Amy Dockser Marcus, norte-americana e judia, de que referi as passagens que se me afiguraram mais importantes, talvez ajude a explicar a situação a que se chegou nos dias que correm. A autora é insuspeita de parcialismo e exprime a sua nostalgia dos tempos idos, dos que ainda conheceu e dos que já não chegou a conhecer. Ignoramos a sua posição sobre a situação actual mas não é difícil acreditar que se sinta profundamente angustiada.

Diga-se, em jeito de conclusão, que as colonizações e descolonizações britânicas foram dos fenómenos mais perversos que a História Universal conheceu num período inferior a meio milénio.