segunda-feira, 16 de outubro de 2023

OS DOZE CÉSARES

Muitos autores antigos debruçaram-se sobre a personalidade dos imperadores romanos, nomeadamente sobre os que ocuparam o poder nas primeiras décadas do Império.

Entre os que escreveram sobre um ou vários Césares contam-se Cícero (106-43 AC), Nicolau de Damasco (64 AC- 4 DC, Philon de Alexandria (20 AC-50 DC), Velleius Paterculus (19 AC-31 DC), Séneca (4 AC-65 DC), Plínio, o Antigo (23-79), Flavius Josephus (37-100), Plutarco (46-120), Tácito (56-117), Plínio, o Jovem (61-114), Apiano (95-165), Aulus Gellius (123-165), Dion Cassius (155-229), Filóstrato (170-250), como os mais importantes.

Mas é sobretudo a Suetónio (69-141) que se deve a obra mais profunda e abrangente sobre os primeiros imperadores: De vitis Caesarum (Vidas dos Césares), habitualmente conhecida como Os Doze Césares.

O escritor latino Suetónio, que foi secretário do imperador Adriano, deixou-nos uma biografia suficientemente elucidativa embora nem sempre exacta (voluntária ou involuntariamente) dos primeiros onze imperadores romanos, antecedida da vida de Júlio César, que não é considerado imperador, ainda que fosse César e tivesse o título de imperator. Mas o Senado não chegou a conferir-lhe o título de princeps, que nos habilita a designar os imperadores de Roma. Assim, De vitis Caesarum inclui, além de Júlio César, os imperadores da Dinastia Júlio-Claudiana (Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero), os efémeros três imperadores do ano 69 (Galba, Otão e Vitélio) e os imperadores da Dinastia Flaviana (Vespasiano, Tito e Domiciano).

A obra de Suetónio conta-nos, relativamente a cada César, os aspectos mais importantes da sua vida, englobando vida pessoal, vida política, vida militar, etc.

Mas existem outras formas de abordar os "reinados" destes "soberanos", como a que nos propõe Régis F. Martin, no seu livro Les douze Césars. Resolveu este autor dividir o livro pelos aspectos fundamentais das personalidades dos imperadores em vez de seguir a ordenação estabelecida por Suetónio de dividir a obra pelos reinados dos doze Césares.

É esta a proposta de Régis F. Martin:

I - Force et Origines du Mythe

II - Portraits et Miroirs Déformants

III - La Vie Quotodienne au Palais Impérial

IV - Séxualités Impériales: Stratégies, Fantasmes et Rituels

V - Le Pouvoir et la Maladie

VI - Les Personnalités en Présence

VII - Les Hommes et le Pouvoir

VIII - L'Image Surgie de la Mort

 

Não sendo possível comentar os conteúdos dos capítulos mencionados (o livro de Régis F. Martin tem cerca de 500 páginas), vamos deter-nos sobre dois dos aspectos muito controversos da vida (e da) morte) destes imperadores. 

Um deles é sobre a sua sexualidade. Discute-se frequentemente se teria havido imperadores homossexuais. Como não existia no Império Romano a noção de homossexualidade (o conceito é muito recente e remonta aos fins do século XIX), não houve tecnicamente homossexuais na Roma Antiga mas apenas pessoas que mantinham permanente ou esporadicamente relações com outras pessoas do mesmo sexo. Uma simples questão de gosto, como preferir peixe ou carne. Realmente era assim. Parece poder afirmar-se com alguma segurança que Cláudio ou Vespasiano não mantiveram esse tipo de relações. Júlio César é o que hoje se poderia chamar um bissexual perfeito. Dele escreveu Suetónio (52,6) que «era marido de todas as mulheres e mulher de todos os maridos». Acerca de Augusto não constam especiais referências, salvo o facto (ainda segundo Suetónio) de ter tido, aos 18 anos, relações com seu tio avô Júlio César, que exactamente por isso o teria adoptado; e que, em Espanha, se teria prostituído a Aulus Hirtius. Segundo as imagens que possuímos, Augusto era, nessa altura, um rapaz muito bonito. Do austero Tibério não há notícia desse comportamento, à excepção das célebres (mas não confirmadas) orgias na piscina da sua villa em Capri, onde, já no fim da vida, se entregava a actos libidinosos com rapazinhos e mesmo crianças e organizava com eles jogos sexuais, chamados spinthrias. Calígula manteve toda a espécie de relações, inclusive com Lepidus, marido de sua irmã Drusilla, da qual foi igualmente amante. Galba foi um homem austero, mas manteve relações homossexuais, de preferência com homens maduros. Otão teve também os seus amantes, e terá sido favorito do próprio Nero. Quanto a Vitélio, terá feito parte da corte de rapazinhos dos tempos de Tibério, em Capri. Tito, ao contrário de seu pai Vespasiano, foi um grande consumidor de jovens e de eunucos. Domiciano também teve vários rapazes novos, segundo Dion Cassius e Suetónio. Quanto a Nero, para além das numerosas relações homossexuais, foi o único imperador que celebrou dois casamentos homossexuais, assumindo num o papel de mulher e noutro o papel de homem. É possível que tenha também violado várias vezes o seu jovem primo Britannicus, filho de Cláudio e quatro anos mais novo. Aqui fica uma síntese das relações homossexuais imperiais, sendo certo que todos os imperadores tiveram igualmente relações heterossexuais.

O outro aspecto que importa relevar é o da morte dos imperadores. Júlio César, como toda a gente sabe, foi assassinado no Senado em 15 de Março de 44 AC (os Idos de Março). Augusto morreu de morte natural, ainda que exista o episódio do seu envenenamento, contado por Dion Cassius e Tácito. No final da sua vida, Lívia teria envenenado os figos que Augusto colhia directamente no seu jardim. Vespasiano morreu seguramente de morte natural, tal como Tito (apesar de alguns rumores de envenenamento) ou Tibério (não obstante a estória que alguns contam que teria sido sufocado por Calígula nos momentos finais). Cláudio foi sem dúvida envenenado já na recta final da vida por obra de sua mulher Agripina (II), mãe de Nero. Nero e Otão suicidaram-se, o primeiro ridiculamente, o segundo estoicamente. Calígula e Domiciano foram mortos por uma conjura. Galba e Vitélio foram executados publicamente, o primeiro com grande dignidade, o segundo perante o escárnio dos romanos.

Recorda-nos Régis Martin que a ideia geral que prevalece na opinião pública se encontra formatada pelas inexactas películas fabricadas em Hollywood, que preteriram a autenticidade histórica a favor da exaltação da excentricidade destinada a seduzir as massas. Entre os muitos filmes que contribuíram para os mitos acerca dos primeiros tempos do Império Romano contam-se Quo Vadis?, de Mervyn Le Roy (a partir do romance de Henryk Sienkiewicz), Júlio César, de Mankiewicz (a partir de Shakespeare), as múltiplas Cleópatra, sendo a mais célebre também de Mankiewicz, Ben Hur, de William Wyler, Calígula, de Tinto Brass, Eu, Cláudio, de Josef Sternberg (inacabado), [e, acrescento eu, Eu, Cláudio, de Herbert Wise], Fabíola, de A. Blasetti, Satiricon, de Fellini, os seis Os Últimos Dias de Pompeia, sendo o mais conhecido o de Mario Bonnard e Sergio Leone. Também os muitos livros escritos acerca da época alimentaram as fantasias sobre a Roma Imperial, pelo que importa sempre distinguir entre as obras históricas, devidamente documentadas, e romances ou peças de teatro que, reclamando-se da história, a deturpam ou modificam, consoante os objectivos que pretendem alcançar. O que não significa que algumas dessas obras não sejam notáveis. [Estou a lembrar-me das peças de Shakespeare sobre temas romanos, do Calígula, de Albert Camus, dos livros de Robert Graves sobre Cláudio, das Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, de Juliano, de Gore Vidal, dos livros de Françoise Chandernagor, de O Primeiro Homem de Roma, de Collen McCullough, e tantos outros.

Tudo o que escrevi é muito pouco comparado com o manancial inexaurível constituído pelo livro de Martin. E sobre o livro de Suetónio não falo, já que Martin se refere primordialmente a ele, ao mesmo tempo que recolhe elementos dos outros autores citados no início deste texto.

* * *

A presente edição portuguesa de Os 12 Césares (1963) foi traduzida por João Gaspar Simões, célebre crítico literário, romancista, dramaturgo, ensaísta, biógrafo, historiador da literatura e figura maior do movimento da Presença.