segunda-feira, 29 de maio de 2023

O HOMEM DE CESAREIA

Acabei de ler L'Homme de Césarée (2020), III volume da tetralogia La reine oubliée, de Françoise Chandernagor, dedicada a Cleópatra Selene, única filho de Cleópatra VII que chegou à idade adulta.

Neste livro, a autora debruça-se sobre o período em que Selene, tendo desposado Juba II, por graça de Augusto, se encontra na Mauritânia romana (equivalente à actual Argélia do norte e a parte de Marrocos), território que o imperador concedera ao jovem esposo (então com 28 anos e um magnífico aspecto) que fora levado como refém para Roma por Júlio César, quando seu pai fora derrotado pelas tropas romanas.

Tendo o primeiro volume abrangido a vida de Selene no Egipto, e o segundo em Roma, este terceiro refere-se, pois, à sua vida como regina da Mauritânia.

A capital do reino era Iol, nome que Juba mudou para Cesareia (em homenagem a Augusto), hoje designada por Cherchell, na zona de Tipasa. Não deve ser confundida com Cesareia da Judeia nem com alguma outra cidade que tenha recebido o mesmo nome como forma de glorificar qualquer dos Césares.

A Tetralogia de Françoise Chandernagor é devedora da ficção e da história. À medida que a autora avança no tempo, é natural que as fontes históricas relativas a Selene se vão reduzindo, desempenhando a ficção um papel progressivamente mais importante. Assim se revela a capacidade criativa de quem escreve, recorrendo à imaginação para nos relatar uma estória que poderá, ou não, ter existido.

Curiosa a narração da consumação do acto nupcial por Juba com um vigor que foi comentado pelos escravos mais próximos e narrado depois aos rapazinhos da corte, o que muito os divertiu pois estavam habituados às investidas do seu jovem soberano, de acordo com as práticas antigas e aceites. Note-se que a paixão por Selene não afastou Juba desses rapazinhos que faziam as delícias das grandes casas romanas. «Célibataire, il [Juba] l'était resté dans ses moeurs au point de continuer à honorer, en passant, l'un et l'autre de ses delicati, ses enfants délicieux - divertissement de jeune homme qui pour lui, féru de culture grecque, demeurait la marque suprême du bon goût.» (p. 56)

Mas Juba, que havia sido levado para Roma com três anos e de cuja educação se encarregara Júlio César, depois do assassinato deste ficara a cargo da viúva, Calpurnia, e mais tarde do pai desta, Lucius Calpurnius Piso Caesonis, na célebre Villa dei Papyrus, em Herculanum, que as cinzas do Vesúvio haveriam de proteger até aos nossos dias. Calpurnius acolhera na Villa o epicurista Filodemus, que muito contribuiu para a ilustração de Juba, que veio a ser um dos maiores intelectuais do seu século. Dele diz Plutarco que foi «le plus doué des rois» e «le plus grand des historiens grecs» (p. 54)

Nos primeiros tempos do reinado, Juba leva Selene de visita à Mauritânia profunda, tendo passado uma temporada em Volubilis [onde eu estive há meio século] e onde foram prestadas à rainha as maiores homenagens.

Entretanto, em Roma, Augusto procedia aos casamentos e aos divórcios da "Família", segundo as suas conveniências políticas, concentrando nas suas mãos um poder quase absoluto, embora permitisse, e quisesse, que permanecesse a ficção da República. Françoise Chandernagor, que não morre de amores por Caio Octaviano César Augusto, Princeps e Imperator, considera-o um autêntico Padrinho, um corleone siciliano.

Voltando a Selene, os seus amores com Juba, inicialmente reservados mas agora transbordantes, geraram o primeiro filho, aliás uma filha, Théa, apesar da rainha desejar um varão. Mas logo se sucederem dois gémeos, agora varões, Hiempsal e Alexandre, e depois uma outra rapariga, Élissa. 

Mas a sorte não foi favorável a Selene. Tendo ido assistir a festividades a Cartago, a convite de Lucius Domitius, que era casado com sua meia-irmã Antonia Maior e fora nomeado pró-cônsul de África, Selene fez-se acompanhar apenas por Théa, deixando os outros três filhos ao marido. No regresso, foi informada que uma febre assolara Cesareia e que os seus filhos estavam mortos. O desgosto de Selene foi brutal, até porque pusera nos rapazes a esperança de prosseguirem a dinastia ptolemaica. E Théa, como rapariga, estava excluída, segundo as leis berberes, da sucessão ao trono.

A reconstituição histórica de lugares, costumes ou ambientes efectuada pela autora é notável e demonstra um particular conhecimento da época, fruto de muitos e variados estudos. As fontes sobre esta Mauritânia romana são muito mais escassas que sobre a Roma de Augusto. Logo, muito maior a necessidade de efabulação, que não sendo rigorosamente histórica proporciona uma agradável leitura.

Não me alongarei sobre este riquíssimo livro e encetarei de imediato a leitura do último volume da Tetralogia.

domingo, 14 de maio de 2023

LERMONTOV, UM HERÓI DO NOSSO TEMPO

Li agora (era uma lacuna) Un héros de notre temps, de Mikhail Yurievitch Lermontov (1814-1841), um notável escritor russo, uma espécie de continuador de Pushkin que, como este, morreu num duelo.

O romance foi escrito entre 1837 e 1839, no Cáucaso, onde o autor esteve duas vezes exilado. O herói do livro é Grigori Alexandrovitch Petchorine, uma figura tenebrosa e subversiva, reflexo irónico de uma geração perdida.

Enfant terrible da poesia russa, Lermontov é um herdeiro virtual de Pushkin, precoce e rebelde como ele. Foi, aliás, a publicação do seu poema "A morte de um Poeta", em que acusa os servidores do poder de serem responsáveis pela morte de Pushkin, que determinou o seu primeiro exílio no Cáucaso. 

Compõe-se a obra de cinco contos que podem ler-se de forma autónoma, sendo a estrutura do livro a seguinte: Primeira Parte: "Bèla" (I) - conto do viajante e história de Petchorine e Bèla; "Maxim Maximytch" (II);  "Prefácio ao Diário de Petchorine" (morte de Petchorine); "Taman" (I); Segunda Parte: "A princesa Mary" (II); Um fatalista (III). Os algarismos romanos remetem para a numeração dos contos na obra, à maneira dos capítulos de um romance.

O livro foi publicado em dois volumes em Abril de 1840. 

A acção passa-se na Tchechénia, na Geórgia, na Ossétia, na Abcásia. Na página 47, o autor coloca esta frase na boca do capitão Maxim Maximytch, referindo-se aos ossetos: «Um povo estúpido. Acredite-me, não sabem fazer nada, são incapazes da mínima instrução. Ao menos, os nossos cabardinos [grupo circassiano] e os nossos tchechenos podem muito bem ser uns bandidos, uns pés descalços, mas são mesmo assim obstinados, mas estes nem sequer têm gosto pelas armas: não verá qualquer deles com um punhal decente. Eles são realmente ossetos!». 

"Taman" decorre na localidade de Taman, no Cáucaso, em frente à Península da Crimeia, no estreito de Kerch. `É hoje bem conhecida porque é de Taman que parte a ponte que liga a região de Krasnodar à Crimeia e que foi mandada construir e inaugurada em 2018 por Vladimir Vladimirovitch Putin.

O poeta morreu em 15 de Julho de 1841, em Piatigorsk, no Cáucaso, na sequência de um duelo fútil com o seu antigo colega de liceu Nikolaï Martinov, que o provocara, devido às constantes zombarias de Lermontov. Ainda hoje se considera que a sua morte foi um assassinato (provocado por um terceiro), ou um suicídio, uma vez que há quem afirme que Lermontov nutria uma paixão pelo antigo camarada e não podendo declarar-se, preferiu ser morto por ele. 

Também na morte Lermontov imitou Pushkin, igualmente morto em duelo quatro anos antes, por Georges Dantès, filho adoptivo (e amante) do embaixador dos Países Baixos em São Petersburgo, e também por uma questão fútil, desta vez de saias. Neste caso, Pushkin desafiou Dantès para o duelo, que este até tentou evitar, já que era seu cunhado (Dantès era bissexual), mas Pushkin (sabendo dos boatos que corriam sobre uma ligação daquele com sua mulher) insistiu... e morreu.

Não cabe aqui analisar o livro de Lermontov, que mais do que uma (ou várias) história(s), procede à análise das personagens envolvidas. A sua morte precoce, aos 26 anos, não permitiu evidenciar a grande capacidade criativa, que teria reflexos na literatura russa posterior.


sexta-feira, 12 de maio de 2023

AS SENHORAS DE ROMA

Li agora Les dames de Rome (2012), II volume da Tetralogia de Françoise Chandernagor La reine oubliée.

As "Senhoras" de Roma são as damas de elevada condição da sociedade romana que gravitavam na capital do Império em torno de Octávia Júlia Thurino, irmã de Octávio César Augusto, entre as quais Lívia, a mulher do próprio imperador ou Pompónia, mulher de Marcus Agrippa.

Recordemos que os filhos de Cleópatra VII, Alexandre Hélios, Cleópatra Selene e Ptolemeu Filadelfo foram enviados para Roma, na sequência do suicídio da mãe, a fim de figurarem no terceiro desfile do Triunfo de Octávio, celebrando a vitória sobre Marco António e a conquista do Egipto (15 de Agosto de 29 AC).

As crianças (Ptolemeu Filadelfo morreria a seguir ao desfile) ficaram à guarda de Octávia, que, não podendo abrigar na sua nova casa a colecção de arte que possuía na casa que fora de Marco António, "coleccionava" agora crianças, os seus filhos e os filhos dos seus parentes. Exemplifiquemos: habitavam em casa de Octávia os filhos do seu anterior casamento com Cláudio Marcelo (Marcelo, que Augusto adoptaria como filho, Cláudia Marcela Maior e Cláudia Marcela Menor); os filhos do seu casamento com Marco António (Antónia Maior e Antónia Menor); o filho do casamento de Marco António com Fúlvia  (Iullus; o outro filho, Antyllus, tinha sido mandado assassinar por Octávio ainda em Alexandria); Júlia, a Velha (a filha de Octávio, do seu primeiro casamento com Escribónia); Vipsânia (filha única de Marcus Agrippa); Lucius Domitius Ahenobarbus (filho de Domitius Ahenobarbus e de uma parente do trúnviro Lépido), que viria a casar com Antónia Maior, filha de Octávia; os filhos do primeiro casamento de Lívia Drusila, agora mulher de Octávio, com Tibério Cláudio Nero (o futuro imperador Tibério, adoptado por Octávio, e Nero Cláudio Druso) e, a partir de 29 AC, os filhos de Cleópatra e Marco António (Alexandre Hélios e Cleópatra Selene), além de ainda mais alguns parentes chegados.

Octávia, nesta altura a Domina de Roma, afeiçoava-se extraordinariamente às crianças, apesar de ter de cuidar dos bens pessoais da família, agora que o seu irmão Octávio se tornara imperador. Note-se que a designação latina de Imperator já fora usada por Júlio César e também António a usara. Octávio viria a ser também César, Princeps, o primeiro dos seus pares senadores, e, por fim, Augusto (o Divino), por proclamação do Senado Romano, além de sucessivamente Cônsul até morrer. Por isso, foi considerado o primeiro imperador de Roma. O seu nome próprio (tal como o de Júlio César) era Gaius (ou Caius). E sendo Octávio o nome da família, Octávio passou a designar-se Octaviano.

Os Octavii não faziam parte das principais famílias aristocráticas, embora tentassem "enobrecer-se" com o passar do tempo. Grandes famílias eram os Iullii, os Claudius, os Marcelli, os Antonii, os Lepidii, os Domitii, que partilhavam o poder, e o dinheiro, em Roma.

Em certa altura, Nicolau de Damasco, antigo preceptor dos filhos de Cleópatra que se passara para o lado de Octávio, trouxe para Roma Alexandre e Aristóbulo, filhos do rei Herodes da Judeia e de sua segunda mulher Mariamne, que este mandara executar dois anos mais cedo por adultério. Herodes entregou os dois rapazes, de uma dúzia de anos, à protecção de Octávio, como penhor de fidelidade. É claro que vieram engrossar o lote de crianças residentes em casa de Octávia, onde em breve se lhes juntou, também, o jovem Tigrane, filho do novo rei da Arménia.

Alexandre Hélios morreria pouco depois do irmão Ptolemeu Filadelfo. Uma morte quase súbita. O rapazinho queixou-se de ter sido envenenado mas nada se provou a tal respeito. Octávia desconfiou de feitiçaria (!) e mandou matar a velha ama que viera de Alexandria com as crianças. Agora só restava Selene.

No livro, Françoise Chandernagor procede a uma interessante descrição da vida quotidiana das famílias romanas e das idossincrasias de Octávio, um ser que ela resolutamente detesta (e com razão) e que disfarçava a sua crueldade sob a capa da "clemência de Augusto", virtude que realmente não exerceu.   Na verdade, o imperador viveu sempre aterrorizado pela possibilidade de ser assassinado, como acontecera a seu tio-avô e pai adoptivo, Júlio César. Ao longo do texto, tal como no volume anterior, a autora disseca psicologicamente a figura de Augusto, nas suas hesitações e contradicções, e mostra como, embora mantendo as instituições da República, o seu progressivo aumento de poder o tornou no autêntico senhor de Roma, levando os historiadores a considerá-lo o primeiro imperador romano.

A propósito do riquíssimo Caio Mecenas, amigo e protector dos poetas e dos artistas (Horácio, Vergílio, Propércio), e também amigo de jovens (entre os seus amantes conta-se o célebre Bathyllus, mimo de Alexandria que foi seu escravo e depois liberto) e que serviu como "ministro" da Cultura de Augusto, de quem era muito próximo, e também responsável dos serviços secretos do imperador, refere a autora: «Il y a bien des avantages à ce que le chef de la police soit en même temps ministre de la culture. La censure devient critique de connaisseur, la propagande, "art responsable"...» (p. 252)

Não constitui surpresa para alguém que Augusto se serviu dos poetas para dourarem a sua imagem. E alguns destes, ainda que inicialmente resistentes, acabaram por se deixar seduzir ou intimidar pelo imperador. Escreve Chandernagor: «Un écrivain rampant, voilà ce qu'est devenu Properce. Nous aussi, nous connaissons ces métamorphoses - quand, pour séduire un Staline, un Mao, le prince des poètes devient crapaud... Mais en ces temps lointains, c'était neuf. Rendons à Auguste ce qui est de Auguste: en politique il a tout inventé, y compris l'embrigadement des plumitifs. Properce y perdu sont talent, puis sa vie.» (pp. 253-4)

Octávio Augusto empenhou-se em promover casamentos no seio da própria família. Assim, determinou que Marcelo, filho de sua irmã Octávia, desposasse Júlia, sua filha do primeiro matrimónio. Tornado genro e sobrinho do imperador, a Marcelo estava prometido um futuro auspicioso. Mas quis o destino que Marcelo morresse quase subitamente de uma febre, quando se encontrava em Baiae, na Campânia, apenas com 19 anos, pouco tempo depois do imperador ter sobrevivido também a uma estranha febre. Marcelo foi a primeira pessoa a ser sepultada no Mausoléu, ainda inacabado, destinado a Augusto. Octávio seguiu o féretro de cabeça baixa. Para ele, mais do que um desgosto familiar era uma catástrofe política. «Malgré son désarroi, il parvient à accélérer, car il ne doit pas se laisser rattraper. Pour le bon ordre de la cérémonie, L'ordre du monde. L'Ordre.» (p. 312)

«Cet enterrement de Marcellus, si singulier à nos yeux, je n'ai jamais pu le revoir sans entendre en même temps la musique que Purcell composa pour les funerailles de la reine Mary: l'appel solemnel des trompettes, le roulement sourd des timbales. Une marche lente, ponctuée de martèlements de plus en plus violents, un ligne mélodique simple, soutenue d'un crescendo propre à inspirer terreur et respect.» (p. 316)

Sobre Augusto: «Car il a toujours eu conscience de vivre derrière un masque. De parler du haut d'une scène. Il a toujours su que son métier était de feindre pour représenter. De tromper son public pour le dominer. S'il paraît si grand, c'est qu'on l'a juché sur des cothurnes. Et chaque nuit il fait le même cauchemar. Il rêve qu'à l'instant de jouer son rôle, lui le gringalet, le souffreteux, reste sans voix. La foule rougit, mais son dompteur n'a plus de fouet, son dompteur est aphone... "Si la comédie vous a plu, applaudissez."» (p. 341)

A autora prossegue com a descrição do ambiente em Roma, das intrigas, do luto de Octávia, que começa a desconfiar que o seu filho Marcelo foi envenenado. E suspeita de Lívia e das suas ambições quanto ao futuro dos seus filhos. Encontrando-se agora viúva a filha de Augusto, Júlia, Octávia imagina que Lívia a pretenda casar com seu filho Tibério e, numa jogada de antecipação, sugere a Augusto que case a filha com Agrippa, embora este seja casado com Marcela, a sua própria filha. O imperador aceita e Agrippa repudia Marcela para casar com Júlia. Entretanto é arranjado o casamento de Marcela com Iullus.

Através das pontuais aparições de Selene no romance, quase sempre de ficção já que sobre ela não há nesta época praticamente qualquer registo histórico, a autora compraz-se em descrever os jogos de poder e as preocupações quotidianas. E discorre sobre os enfants délicieux que povoavam as casas dos notáveis romanos.

«Dans sa jeunesse donc, Auguste, malgré son prétendu coup de foudre pour Livie, avait eu des maîtresses. Mais ensuite? Il eut, en tout temps, des enfants délicieux: c'était une question de standing. Les enfants qu'il achetait, le maître du monde les préférait maures ou syriens, dit-on. Sans doute échangeait-il avec eux quelques caresses et de long baisers "sur la bouche": un homme incapable d'apprécier sensuellement la peau des enfants, leur haleine parfumée et le doux toucher de leurs petites mains serait passait, en ce temps-là, pour un rustaud. Mais qui disait sensualité ne disait pas forcément sexualité: Auguste jouait avec ses enfants délicieux, il ne les violait pas.

Son goût, de toute façon, ne le portait pas vers les garçons. En revanche, comme "l'empereur" Mao, il aimait dépuceler les fillettes - fillettes au sens ancien du terme, c'est-à-dire, selon le Grand Robert, "jeunes filles peu formées", préadolescentes. À propos d'Auguste, les historiens latins parlent en effet de puellae, et non de puellulae. Des "nymphettes", aurait dit Nabokov. Une fille romaine étant considérée comme nubile à douze ans (et souvent fiançée et "consommée " avant cet âge), on peut penser que les petites esclaves ou, horresco referens, les "fillettes" libres que se faisait livrer le Prince avec la complicité de Livie avaient entre dix et quatorze ans. Peut-être un peu moins... Il est vrai que, pour un Romain, l'âge ne faisait rien à l'affaire. L'atteinte à la virginité était déjà plus transgressive. Mais la perversion ultime consistait à mépriser les statuts juridiques - une hiérarchie sexuellement codifiée que traduit bien un mot d'esprit qui, paraît-il, enchanta Auguste: "Prêter son cul est une infamie pour l'homme libre, un devoir pour l'esclave, et une politesse pour l'affranchi..."» (pp. 424-4)

Entre casamentos, divórcios, recasamentos, Octávia, que depois da morte do filho e o êxodo das "crianças" agora já casadas, vivia quase em clausura, tendo mesmo deixado de receber os poetas e os aristocratas da cidade, decidiu jogar uma última cartada. Restava-lhe Selene, que não pensava em casar, atendendo à damnatio memoriae que caíra sobre os pais. Pois bem, a irmã de Octávio convenceu o imperador a autorizar o casamento de Selene com o ainda jovem Juba, filha do rei Juba I da Mauritânia, que Júlio César trouxera para Roma em miúdo e entregara aos cuidados da sua família. Assim, imprevisivelmente, Cleópatra Selene veio a tornar-se, pelo casamento com Juba II, agora colocado no trono da Mauritânia e Numídia, uma rainha, não com o prestígio da sua mãe, mas mesmo assim rainha.  A linhagem dos Ptolemeus iria continuar.

O casamento de Selene (então com 20 anos) com Juba (então com 29 anos) teve lugar em 19 AC. Juba II era um homem muito letrado, que seguira em Roma uma educação clássica sob a supervisão de Júlio César e depois do seu assassinato, da familia deste. 

Importa referir que a Mauritânia romana nada tem a ver com a actual República da Mauritânia. Aquela situava-se no território sensivelmente correspondente ao norte da Argélia actual. Quando morreu, Selene foi sepultada no Mausoléu Real da Mauritânia, em Tipasa, próximo de Argel. Mas os próximos acontecimentos da vida de Selene serão tratados nos restantes dois volumes da tetralogia de Françoise Chandernagor. 

Não se tendo tornado uma figura da História Universal, como sua mãe Cleópatra VII, mesmo assim, Cleópatra Selene não ficará como reine oubliée: para a sua recordação este contributo de Françoise Chandernagor é uma peça importante!


sexta-feira, 5 de maio de 2023

A HOMOSSEXUALIDADE DE FERNANDO PESSOA

Com o auditório repleto, foi hoje (aliás ontem, atendendo à hora a que escrevo) apresentado, na Casa Fernando Pessoa, o livro A Homossexualidade de Fernando Pessoa, de Victor Correia, que se tem dedicado a estudar este aspecto da vida do Poeta.

A obra foi apresentada pelo prof. Helder Bértolo e pelo escritor Fernando Dacosta, com uma intervenção final do autor, que sustenta a tese de que Fernando Pessoa teria sido homossexual, no que foi acompanhado pelos restantes membros da mesa.

Aliás, as grandes biografias pessoanas apontam nesse sentido. A mais antiga, a de João Gaspar Simões (1950), que ainda conheci pessoalmente, não valoriza esse aspecto, mas em contactos que tive com ele, nos anos 80, deixou-me entender que admitia que fosse essa a inclinação do Poeta. Também a biografia escrita por António Quadros (1981 e 1984) permite entrever essa possibilidade. Tendo sido amigo pessoal de António Quadros, abordei uma vez o tema, em conversa com ele, inferindo que, ainda que o assunto não lhe interessasse especialmente, pensava que Pessoa se tinha sempre sentido mais perto dos homens do que das mulheres. A última grande biografia publicada, a de Richard Zenith (2022) aponta nitidamente nesse sentido.

A obra de Fernando Pessoa (ortónimo ou heterónimo) fornece-nos todas as pistas para detectar uma inclinação homoerótica, em alguns casos bem explícita. Também a vida de Pessoa, ainda que até ao momento não se tenham descoberto quaisquer testemunhos de ligação física, convida-nos a pensar que o seu perfil se identifica com o de um homossexual. Os seus amigos mais chegados, Mário de Sá-Carneiro, António Botto, Raul Leal, eram homossexuais, exibindo nas suas obras a exaltação do amor masculino.

Creio poder afirmar-se hoje, sem margem de erro, atendendo a tudo o que se conhece da vida e da obra de Fernando Pessoa, que ele foi um ente homossexual, pelo menos em espírito. Quanto a relações físicas nada se sabe  e talvez nunca alguma coisa se venha a saber. Convém não esquecer, contudo, que Pessoa era extremamente reservado quanto à sua vida privada, a que não tinham acesso nem os seus amigos mais íntimos. O Poeta viveu larga parte da sua vida em quartos alugados, alguns dos quais com porta independente. Nunca ele permitiu que algum amigo o visitasse. Mas ignoramos se levava alguém a sua casa. Nada mais fácil, naquele tempo e mesmo no nosso, até há uns vinte ou trinta anos, do que convidar um jovem empregado de restaurante ou café (e Pessoa conhecia bem os cafés de Lisboa) para uma rápida incursão nocturna. Praticamente ninguém recusava, nem que fosse a troco de parca quantia. Ainda não existiam as redes sociais e os sites de relacionamento sexual também não tinham sido inventados. E Lisboa, como Raul Brandão escreveu mas suas Memórias, foi sempre «como Nápoles» uma cidade especialmente vocacionada para esse género de actividades. Vinham longe os tempos actuais de puritanismo hipócrita, falsos assédios e discutíveis violações. E ninguém se lembrava de perguntar pela data de nascimento no bilhete de identidade (também não havia cartão de cidadão) antes de convidar alguém para a cama. 

Poderia suscitar-se a velha questão, que opôs Proust a Sainte-Beuve, quanto à relação do homem com a obra. Eu estou com Sainte-Beuve e entendo que a tese de Proust não passou de um álibi para si mesmo. 

Poderia continuar a discorrer sobre a sexualidade de Fernando Pessoa, mas é preferível que os interessados leiam a sua obra e estudem a sua vida.