sexta-feira, 28 de outubro de 2022

ERASMO

É sempre oportuno revisitar Erasmo, especialmente nos tempos que vivemos. E folhear algumas obras que lhe são dedicadas, para além do seu magnum opus, a obra que o celebrizou, Encomium Moriae (Elogio da Loucura), ainda que o insigne humanista nunca lhe tivesse atribuído uma especial primazia entre os seus outros escritos.

Nasceu Erasmo em Roterdão, em 1466 e faleceu em Basileia, em 1536, depois de uma vida de viagens, que não apreciava efectuar, pela Europa, nomeadamente França, Inglaterra, Espanha e Itália.

Releio agora a tradução portuguesa da obra do historiador Johan Huizinga (1872-1945), Erasmus, a partir da edição neerlandesa do livro (1924), que é um desenvolvimento da primeira edição em língua inglesa que o autor escreveu a convite da Creat Hollanders, de Filadélfia. A tradição afigura-se correcta, mas o aportuguesamento de alguns nomes é insuportável: Lípsia em vez de Leipzig, Cambraia em vez de Cambray, Sena em vez de Siena, etc., etc.

A designação de Países Baixos é a forma correcta, uma vez que a Holanda é apenas uma parte do país.

São muitos os livros sobre Erasmo, o famoso humanista. Além da obra de Huizinga, possuo as de Augustin Renaudet, Pierre Mesnard, Stefan Zweig, Roland H. Bainton, Manuel Cadafaz de Matos e o excelente trabalho El Erasmismo Español, de José Luis Abellán, além do famoso estudo de José de Pina Martins, Humanismo e Erasmismo na Cultura Portuguesa do Século XVI.

Não se podendo sintetizar num post a vida e obra de Erasmo, direi que ele foi admitido na Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, no convento de Steyn, onde teve uma amizade muito chegada ao seu companheiro Servatius Rogerus, que muitos historiadores afirmam tratar-se de uma relação íntima; são célebres as cartas de amor que Erasmo lhe dirigiu. Aliás, mais tarde, em Paris, deu lições a dois jovens ingleses, Thomas Grey e William Blount, com tanto afecto que o tutor dos dois rapazes proibiu Erasmo de os voltar a ver. 

Erasmo, por Holbein, no Museu do Louvre (reprodução na minha sala)

Erasmo promoveu a divulgação do latim como língua universal, numa altura em que o grego era a língua cultural por excelência. A sua obra que consideramos hoje fundamental é Elogio da Loucura, em grego, Moriae Encomium, em latim Stultitiae Laus, escrita em 1509 e publicada em 1511. Foi dedicada a Thomas More. Para ele, a Loucura é o motor de toda a vida, indispensável, salutar, causa dos Estados, e dos heróis, sustentáculo do mundo. A falta de loucura torna a vida imprópria. Conclui também, a exemplo de Rousseau, que a civilização é uma calamidade.

Na sua vida, Erasmo frequentou as universidades de Paris e de Lovaina e foi conselheiro do jovem rei Carlos  de Espanha, mais tarde o imperador Carlos-Quinto, para quem escreveu Institutio Principis Christianis, contrastando um pouco com Il Principe, de Maquiavel, publicado alguns anos antes. Manteve relações teológicas ambíguas com Martinho Lutero, mas nunca aderiu ao protestantismo, ainda que tivesse progressivamente as maiores reservas em relação ao catolicismo.

Sobre a questão religiosa, cito, de Huizinga (p. 218): «A melhor prova de que Erasmo já tinha de facto perdido a esperança de desempenhar o papel de conciliador é talvez fornecida pelo episódio que se segue. Durante o Verão de 1520, teve lugar em Calais o famoso encontro dos três monarcas: Henrique VIII, Francisco I e Carlos V. Erasmo devia também dirigir-se aí no séquito do seu soberano. Que efeito um tal congresso de príncipes, em que os interesses da França, da Inglaterra, da Espanha, do Império e duma grande parte da Itália estavam pacífica e simultâneamente representados, não deveria ter produzido sobre a sua imaginação, se o seu ideal tivesse permanecido inquebrantável! Mas não se encontram vestígios disso. Erasmo esteve em Calais em Julho de 1520; teve aí uma conversa com Henrique VIII, aí saudou More; mas não parece que tenha visto nessa viagem mais que uma ocasião para se encontrar mais uma vez com os seus amigos ingleses.»

Em 1503, editou o Enchiridion Militis Christiani" , o "Manual do cavalheiro cristão" e em 1516 publicou uma tradução do Novo Testamento Grego, Novum Instrumentum Omne, que é considerada o Textus Receptus. Os Colloquia, que foram publicados a partir de 1518, e a que Erasmo atribuía especial importância, suscitaram mais ódios e ataques do que o Elogio; Erasmo atirava-se agora também às pessoas e ridicularizava os seus adversários de Lovaina.

É inegável a simpatia pelos reformadores , sem nunca ter aderido às teses de Lutero, que bem tentou convencê-lo, mas Erasmo primou sempre pela sua independência. Claro que era crítico do paganismo e do exagero dos humanistas pelo classicismo. Uma pena.

Enquanto famoso latinista, criticava Cícero, cujo estilo considerava medíocre. O seu diálogo Ciceronianus (1528) trata da melhor forma de escrever e falar o latim.

Em 1529 abandona Basileia, por causa dos reformadores, e vai para Friburgo, mas regressa em 1535, tendo morrido no ano seguinte e não sendo então a sua morte particularmente sentida.

Apesar das suas oscilações religiosas, embora nunca se comprometendo, a sua vasta sapiência levou o papa Paulo III a pensar elevá-lo ao cardinalato, mas Erasmo dissuadiu imediatamente os seus próximos, que disso deram conta ao pontífice.

Este é um breve resumo da obra de Huizinga. Voltaremos a Erasmo através de outros autores. 

 

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

OS EMBAIXADORES

Vi pela primeira vez "Os Embaixadores", de Holbein, quando visitei, também pela primeira vez, a National Gallery, em Londres. Recordo-me perfeitamente de uma indicação que recomendava ao espectador que se colocasse numa posição paralela ao quadro, agachado, e que procurasse distinguir um objecto longilíneo que figurava na parte inferior do retrato. De frente parecia um osso comprido mas visto nessa posição era realmente uma caveira.

Este livro de Jean-Louis Ferré explica a génese do quadro e a sua composição.

Representa a pintura Jean de Dinteville, enviado de Francisco I junto de Henrique VIII (do lado esquerdo) e o seu amigo íntimo Georges de Selve, bispo de Lavaur (do lado direito), lugar para que havia sido nomeado pelo rei quando tinha dezoito anos..

O quadro foi realizado em Londres, em 1533, quando Holbein tinha apenas vinte e quatro anos. A idade dos retratados também era jovem. Jean de Dinteville tinha vinte e nove anos e George de Selve vinte e quatro. Parecem mais velhos no retrato mas eram os padrões da época.

Segundo o autor, Holbein (1497/8-1543) é, com Dürer, o maior pintor da Alemanha. Natural de Augsburg (capital da Suábia), que foi também a terra dos Fugger, os célebres banqueiros que financiaram a ascensão ao trono do Santo Império Romano-Germânico de Maximiliano I e de Carlos-Quinto, tornou-se o pintor favorito de Henrique VIII, que retratou várias vezes, bem como de outras grandes personagens da época, entre as quais Erasmo e Thomas More.

"Os Embaixadores" (Reprodução que possuo na minha sala)

Diz o livro que os "embaixadores" eram amigos íntimos; eram mesmo mais do que isso, segundo li em tempos noutras publicações. Ambos franceses e protegidos de Francisco I, mantinham uma relação sexual, que, naqueles tempos, não assumia uma designação específica. Georges fora nessa altura a Londres para se encontrar propositadamente com o amigo, ocasião em que Holbein os retratou, embora possa também ter sido portador de alguma missiva do rei francês para Henrique VIII. Interessava a Francisco I uma relação especial com a Inglaterra, já que a França estava entalada no Santo Império, de um lado pela Espanha e do outro pela Alemanha.

A obra "Os Embaixadores" é talvez a mais célebre de Holbein, não só pela qualidade da pintura mas pelo seu significado. Não se trata apenas do retrato de duas personagens mas de tudo aquilo que o quadro representa. Na época, os estudos universitários compunham-se das artes liberais: o trivium (gramática, lógica e retórica) e o quadrivium (música, aritmética, geometria e astronomia).  Ora, estas sete disciplinas estão simbolizadas no quadro. O globo terrestre e o globo celeste, são de certa maneira uma representação do céu e da terra. 

Existia uma diferença importante entre o humanismo do norte da Europa, como o de Erasmo de Roterdão, por exemplo, preocupado sobretudo com a moral e a teologia e inimigo das ciências, e o que se professava em Paris, onde Gaucher de Dinteville, o pai do embaixador, era íntimo do filólogo Guillaume Budé, que desempenhou um papel da maior importância na educação do rapaz e que, em 1530, persuadiu Francisco I a criar o Colégio Real, futuro Collège de France.

Figura na pintura um turquetum (instrumento astronómico medieval), um mapa do céu, dois pequenos barcos à vela (Fernão de Magalhães acabara o seu périplo à volta do mundo), um globo, um alaúde e a célebre caveira anamórfica que nos recorda a morte, sempre presente na imaginação de Holbein.

A deformação da caveira é, todavia, dupla, graças à arte de Holbein. É que aplicando sobre a imagem um tubo de vidro de 3 mm de espessura, com 30 cm de comprimento e 2,5 cm de diâmetro, orientado obliquamente entre a cavidade nasal e a órbita esquerda do crânio anamórfico, vemos aparecer, no interior deste, um segundo crânio, mais pequeno, enrolado no primeiro. É um segundo desvio de sentido, uma segunda morte da alma. O carácter anamórfico da pintura gira em torno da vida e da morte, da vaidade de todas as coisas, da precariedade da existência terrestre.

«Le chancelier Thomas More, l'auteur célèbre de L'Ile d'Utopie qui mourut décapité por s'être opposé à l'annulation du mariage d'Henri VIII et de Catherine d'Aragon, le meilleur ami d'Holbein avec Érasme, écrit non sans mélancolie: "Nous plaisantons et nous croyons la mort bien loin" et pourtant, "Elle est cachée au plus secret de nos organes." L'objet visuel non identifié qui traverse de son ombre Les Ambassadeurs est un crâne. Caché au ceux de son anamorphose. Il n'y a plus maintenant de volet à ouvrir ou fermer, mais un système beaucoup plus subtil, beaucoup plus savant: son rétrécissement optique par déplacement du spectateur, comme dans les anamorphoses à perspective rallongée. Pour le percevoir, il faut se porter sur la droite, à environ 1,50m, parallèlement à la surface du tableau. Ce crâne est le vers dans le fruit de la connaissance. Il pourrit d'un seul coup la puissance et la gloire, frappe de caducité l'étalement du savoir scientifique affirmé par la disposition entière des Ambassadeurs.

C'est comme s'il y avait deux compositions superposées dans un unique tableau. Chacun montrant le contraire de l'autre. Avec, pour point de jonction, la minuscule tête de mort d'argent, piquée dans la coiffure noire que Jean de Dinteville porte inclinée sur le côté, selon la mode du temps.» (pp. 36-7) 

O livro inclui em anexo um Dossier sobre o movimento dos corpos celestes a partir de Copérnico, um estudo sobre o funcionamento do torquetum (cujo inventor terá sido Apianus),  e o texto das Advertências dirigidas aos alemães por Georges de Selve. O jovem bispo era um católico liberal e participou avant la lettre dos princípios da Contra-Reforma, que começou em 1545 com o Concílio de Trento. No seu livro inacabado Remontrances addressantes aux Alemans, ataca os abusos da Igreja bem como os desvios dos protestantes. «Não foi o plaidoyer de um teólogo fanático como Lutero, pronto a tudo para fazer triunfar a sua verdade, mas melhor do que isso: a reflexão de um conciliador honesto, testemunha do seu tempo.» (p. 84)

No final, figura uma resumida cronologia de Holbein.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

O HOMEM DIGITAL

Foi publicado no mês passado mais um interessante livro de Daniel Cohen, fundador e presidente da École d'Économie de Paris. Intitula-se Homo Numericus - La "civilisation" qui vient.

No centro do novo mundo: o Homo numericus é um ser submerso em contradições. Quer controlar tudo mas é ele próprio irracional e impulsivo, impelido a comportamentos aditivos por esses mesmos algoritmos que vigiam os mínimos pormenores da sua existência.

 

- L'amour? Désormais, c'est Tinder

- Le bureau? En télétravail!

- Un nouveau job? Ce sont les algorithmes qui recrutent!

- Les partis politiques? C'est sur Twiter

 

Porque é difícil proceder a um resumo do livro, resolvi publicar a introdução, que traduzo, porque o francês já não é hoje, infelizmente, uma língua geralmente conhecida.

 

«Num dos episódios mais significativos da série britânica de sucesso, Black Mirror,  uma rapariga perde o marido, morto num acidente de automóvel, no dia em que fica a saber que se encontra grávida dele. Graças à inteligência artificial que expurga as conversas telefónicas, vídeos e mails do seu defunto companheiro, este ressuscita digitalmente, de forma perfeita, com as suas entoações, as suas intuições, as respostas às perguntas que ela faz... A força da série reside no facto que ela não parece senão um ponto em avanço sobre os mundos possíveis. Explora a nossa capacidade para aceitar o empreendimento de novas tecnologias para lá dos limites destas, tomando como hipótese que os obstáculos são doravante menos técnicos que sociais ou psicológicos.

A ideia de que se possa ressuscitar os mortos a partir do seu "histórico" é totalmente angustiante e perfeitamente credível. Os programas impulsionados pela inteligência artificial (IA) mergulham na personalidade dos seus utilizadores. Ao reconhecer as entoações da sua voz, a forma do seu rosto, ao identificar as arestas do seu vocabulário, apreendem os humores e as aspirações de cada um. Grande número de recrutamentos para um emprego ou uma universidade fazem-se agora online, a IA pré-seleccionando, numa lista de pretendentes que pode cifrar-se em dezenas de milhares de pessoas, os raros candidatos que terão a sorte de encontrar, na última linha linha, um examinador humano. O amor não escapa a esta bobina. Como o mostra magnificamente a socióloga Eva Illouz, os programas do Tinder permitem industrializar a relação amorosa reduzindo o tempo passado a cortejar, limitando o amor ao "just fuck"! As emoções, os desejos e os medos passam sob o corte dos novos algoritmos que transformam de alto a baixo as relações afectivas. Uma nova economia, uma nova sensibilidade, novas tecnologias: à imagem da grande transformação que a revolução industrial produziu, a revolução digital está em vias de provocar uma revisão radical da sociedade e das suas representações.

Na nova sociedade que se anuncia, não se trata já de comprar objectos, aspiradores ou máquinas de lavar, mas de consumir os seus próprios fantasmas, individuais ou colectivos. Em termos económicos, pode dizer-se que a revolução digital "industrializa a sociedade post-industrial": designando este termo um mundo em que o essencial da actividade não consiste já em cultivar a terra ou a fabricar bens manufacturados mas a ocupar-se dos próprios humanos, do seu corpo e do seu imaginário. Online, tudo está feito para que divertir-se, educar-se, tratar-se ou cortejar seja acessível ao menor custo...

De maneira totalmente imprevista, a pandemia do Covid serviu de catalisador a essa grande transformação. Os ganhadores da crise foram as Amazon, Apple, Netflix, as firmas cuja capitalização bolsista explodiu durante o confinamento. Elas permitiram télé-trabalhar, fornecer-se de mercadorias sem ter de ir a uma loja, distrair-se sem se deslocar a um teatro ou a uma sala de concerto. Todos pudemos compreender a intenção do capital digital: reduzir ao máximo o custo das interacções físicas, dispensando encontros cara a cara. Para gerar rendimento, ele desmaterializa as relações humanas, privando-as da sua carne.

Os algoritmos representam à escala da sociedade no seu conjunto o papel que foi ontem o da cadeia de montagem na organização do trabalho. Não é só a gestão dos corpos que é optimizada, é a psique dos humanos que é "taylorizada". Os motores de pesquisa guiam os utilizadores da Net para sites de encontros ou de opiniões que lhes são adequados, encerrando-os na prática em novos ghettos digitais. Uma vez que está obcecado pela procura de uma gestão "eficiente" das relações humanas, o novo capitalismo cria, de maneira totalmente contraditória, um Homo numericus irracional e impulsivo. "Demasiadas imagens, sons e solicitações provocam défices de concentração, sintomas de hiperactividade e condutas aditivas", escreve Michel Desmurget num livro apropriadamente chamado: A Fábrica do cretino digital. Longe de trazer uma nova agora, um lugar de discussão onde as ideias circulem e se troquem, as redes sociais provocam uma radicalização totalmente imprevista do debate público. Os discursos odiosos contra os seus adversários tornaram-se a norma destas novas "conversas". Não são informações que se procura na Net mas crenças que se consomem como um bem vulgar, cada um encontrando no grande armazém digital a verdade que lhe convém, como na peça de Pirandello. 

Salvo a cair num determinismo que pretenderia que a tecnologia detivesse, apenas ela, a chave das civilizações, a transformação em curso não pode compreender-se se não se tomar em consideração o processo histórico de que ela constitui um momento. A revolução digital leva ao paroxismo a desintegração das instituições que estruturavam a sociedade industrial, quer se trate das próprias empresas, dos sindicatos, dos partidos políticos ou dos médias. Este processo é ele próprio o produto directo do choque liberal dos anos oitenta, que quis estender o lugar do mercado e da competição em toda as dimensões possíveis, sem mediações, sem corpos intermédios. O télé-trabalho, que poderia ser o legado mais durável do Covid, inscreve-se num longo processo de desestruturação das firmas individuais a favor da externalização das tarefas e da individualização das remunerações. Mas a sociedade digital alimenta-se também, de maneira subliminar, da contra-cultura dos anos sessenta e da sua crítica da verticalidade do poder e das instituições. Vencido pela revolução liberal, o espírito dos sixties erra como um fantasma nas redes sociais, dando-lhes um tom resolutamente anti-sistema ao mesmo tempo que elas se tornaram o sistema. Como o sociólogo americano Fredric Jameson dizia da post-modernidade, a transição actual oferece uma forma de "compensação" ao fracasso político da revolução cultural ao adaptar a sua linguagem. O velho Isaac poderia dizer: é a voz de Dylan e a mão de Thatcher. [Génesis 27, 22: "A voz é a voz de Jacob mas as mãos são as mãos de Esaú."]

O homem digital que herda esta filiação estranha é simultaneamente solitário e nostálgico, liberal e anti-sistema. Foi apanhado na armadilha de uma sociedade reduzida à agregação dos indivíduos querendo escapar ao seu isolamento constituindo comunidades fictícias. A ideia de uma sociedade oferecendo a cada um a possibilidade de se envolver sozinho em mil conversas paralelas é todavia um mito cansativo de utilizar. Os Gilets jaunes fizeram ouvir ruidosamente que a solidão social era o mal mais profundo, a própria causa dos suicídios segundo Durkheim, o pai da sociologia francesa, e que os laços virtuais não curavam o desejo de viver em carne e osso entre os humanos. "Os homens vivem acima dos seus meios psíquicos", dizia o psicanalista Pierre Legendre. A fórmula é forte e pode ser generalizada: na verdade o homem vive simplesmente acima dos seus meios, quer sejam psíquicos ou ecológicos. As catástrofes que se desfiam desde o princípio do século mostram que alguma coisa não caminha do lado do "mundo real". Golpe após golpe, o Covid e depois a guerra na Ucrânia, lembraram à sua maneira que a vida já não era um jogo de vídeo.

A boa nova, é que não vivemos numa série de ciência-ficção. As tecnologias não têm o controlo das nossas vidas. Elas prolongam e amplificam as tendências da sociedade, dando corpo às nossas pulsões latentes, mas não as inventam.

À sua maneira, perversa, a revolução digital desenha também no vazio um caminho exaltante: o que conduz a um mundo em que toda a palavra mereceria ser escutada, sem verdade transcendente. Explora uma nova maneira de viver que é sem precedente na história das civilizações, a de uma sociedade pretendendo-se simultaneamente horizontal e laica: sem a verticalidade que prevalecia ainda na sociedade industrial, sem a religiosidade das sociedades agrárias, talvez mais próxima dos caçadores-colectores, se possível sem as superstições.

A estrada é comprida para compreender simplesmente o que uma tal utopia significa. As redes sociais dão instrumentos para a concluir, mas na condição de reinventar todas as utilizações. É preciso aceitar este desafio, fazer esse esforço de imaginação inédito de pensar uma sociedade desejável com os meios que dá aquela que queremos deixar.»

O livro compõe-se de duas partes:

I - L'Illusion numérique: 1) Le corps et l'esprit; 2) Abêtir et punir; 3) En attendant les robots; 4) Anomie politique

II - Le Retour du réel: 5) L'immaginaire social; 6)  Winter is coming; 7) Sans cent ans

 

Aguarda-nos, aos que ainda cá estiverem, um mundo assustador!!!

 

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

ELIZABETH FINCH E JULIANO, O APÓSTATA

«VENCESTE, GALILEU!»

Acabei de ler Elizabeth Finch (2022), o mais recente livro de Julian Barnes (n. 1946), o famoso escritor inglês a quem se devem magníficas obras. A sua leitura constituiu para mim um especial prazer, não só pela invenção do tema, a beleza da escrita, o humor elegante e a reinvenção do passado, como também pela vastíssima cultura que Barnes revela ao longo do romance.

O livro compõe-se de três partes que tentarei (tarefa impossível) resumir em meia dúzia de linhas.

Na Primeira Parte, Neil, um homem divorciado que já passou os 30 anos resolve inscrever-se na Universidade para frequentar um curso de "Cultura e Civilização". A professora, Elizabeth Finch, é uma mulher singular, discretamente requintada, senhora de grande erudição e que estará já nos 50 anos. Ninguém conhece o seu passado e o seu presente. Sabe-se que habita um apartamento num bairro elegante de Londres mas nunca alguém a viu acompanhada por qualquer homem ou mulher. Mantém com todos os alunos uma amável distância.

Nas suas aulas não indica bibliografia, faz as evocações mais inesperadas, cita improváveis relações entre certas figuras e autores, tudo sendo, realmente uma surpresa. Um dia, porém, menciona, a propósito de "fracasso", o imperador romano Juliano, que o famoso poeta inglês  Algernon Charles Swinburne (1837-1909), na sua luta contra os valores vitorianos,  imortalizou no "Hino a Proserpina", e cuja epígrafe é Vicisti, Galilaee, melhor formulada no corpo do poema:

Thou hast conquered, O pale Galilean; the world has grown grey from thy breath; We have drunken of things Lethean, and fed on the fullness of death.

Sendo, naturalmente, que o pálido Galileu é Jesus de Nazaré. O imperador Juliano foi cognominado o Apóstata, por ter sido baptizado e educado no cristianismo e ter tentado depois opor-se à difusão da nova religião, procurando manter os cultos pagãos. Não é certo que Juliano fosse alguma vez verdadeiramente cristão (talvez apenas na aparência devido à sua condição) não sendo assim correcto considerá-lo verdadeiramente como um apóstata. As suas últimas palavras, ao morrer às mãos de um cristão, teriam sido: «Venceste , ó Galileu», frase mencionada pela primeira vez na História Eclesiástica do bispo Teodoreto (século V). Voltaremos mais tarde a este episódio.

Terminado o ano, Neil, sobre o qual Elizabeth Finch (E.F.) exercia um inegável fascínio, propõe-lhe que se encontrem para um almoço, passando a ver-se duas a três vezes por ano num pequeno restaurante italiano do oeste de Londres, próximo do local onde ela habitava. As regras eram claras, sem jamais terem sido enunciadas. Chegada às 3 horas em ponto, sendo a refeição composta por uma pasta do dia, uma salada verde, um copo de vinho branco e um café. O almoço durava 75 minutos e E.F. pagava sempre a conta. 

O livro contém inúmeros aforismos de E.F., denunciando as suas convicções (e a cultura de Barnes) e ao longo da obra o autor aproveita todas as oportunidades para uma violenta crítica à sociedade britânica e aos seus valores.        

Depois de ela ter anulado seguidamente dois almoços, Neil recebe uma mensagem de um tal Christopher Finch (cuja existência ignorava) a comunicar-lhe a morte da irmã. Ao mesmo tempo, um notário informa-o que E.F. lhe legou todos os seus livros e papéis. É então que estabelece contactos com o irmão, tentando saber pormenores sobre a vida de Elizabeth, enquanto começa a pesquisar nos papéis herdados. É sua intenção descobrir algumas pessoas que tivessem que conhecido a professora, quiçá escrever a sua biografia. 

Saltando muitos aspectos interessantes mas cuja descrição aqui não cabe, Neil encontra a certa altura uma nota com a indicação de vários nomes aparentemente sem ligação entre si, e outra nota com uma alusão ao "pálido Galileu". E começa a estabelecer a conexão.

Na Segunda Parte, Neil examina, segundo as notas de E.F., a vida de Juliano e o que sobre ele escreveram conhecidos autores e até a improvável referência de um político. 

Como se disse, o pálido Galileu é Jesus Cristo e Juliano (331-363), é o imperador romano que tentou restaurar o paganismo, que reinou de 361 a 363, e que morreu assassinado em Samarra supostamente por uma lança cristã, durante a campanha contra os persas. É possível que o atacante tenha sido um soldado persa, logo não cristão, mas persiste a lenda que foi um soldado romano (cristão), ou até um escravo convertido à fé emergente. Apesar da sua austeridade e simplicidade, Juliano não dispensava os escravos.  Escreve Barnes: «Por estas palavras [atribuídas ao bispo Teodoreto] Juliano reconhece que o cristianismo triunfou do paganismo, do helenismo, do judaísmo, e de todas as outras seitas e heresias rivais presentes no Império Romano. Que daí em diante, e para sempre, será também o Império Cristão.» (p. 87)

Flavius Claudius Julianus foi um homem muito culto, tolerante, que não perseguiu os cristãos mas opôs-se a que estes procurassem destruir o paganismo. Barnes aproveita este momento para descrever a personalidade e o reinado de Juliano, baseado especialmente em Ammianus Marcellinus, que foi soldado, historiador e amigo especial do imperador. Escreveu Marcellinus: «Os cristãos são piores do que os animais ferozes quando disputam entre si.» (p. 97) 

A seguir, Barnes, por interposta E.F., refere-se aos autores que se debruçaram sobre Juliano, e cujos nomes se encontravam na mencionada nota: Montaigne, Milton, Montesquieu (De l'esprit des lois), Voltaire (Dictionnaire philosophique), Gibbon ( History of the Decline and Fall of the Roman Empire), Schiller (que levou dez anos a preparar uma peça sobre Juliano, que nunca escreveu mas sobre a qual falou a Goethe), Byron (que o cita no Don Juan), Henrik Ibsen (que escreveu uma peça, Imperador e Galileu, de 480 páginas e raramente representada), Swinburne (o evocador da célebre frase no Hino a Proserpina e que também o mencionou em O último oráculo), Auguste Comte, Ernest Renan, Anatole France, e, surpreendentemente, Adolf Hitler. 

Nas Conversas à mesa, de Hitler, de 21 de Outubro de 1941, lê-se: «É uma vergonha quando se pensa no julgamento dos nossos melhores espíritos, há já cem ou duzentos anos, sobre o cristianismo, para se aperceber quão pouco evoluímos. Eu ignorava que Juliano, o Apóstata, tivesse julgado com tal clarividência o cristianismo e os cristãos. É preciso ler o que ele disse.» (p. 135)              

Regressando ao assunto, quatro dias mais tarde, uma noite em que os convidados especiais eram o Reichsführer SS Himmler e o general SS (Obergruppenführer) Heydrich: « Devia-se espalhar aos milhões o livro que contém as reflexões do imperador Juliano. Que maravilhosa inteligência, que discernimento, toda a sabedoria antiga! É extraordinário.» (p. 135)

E já anteriormente, na noite de 11 para 12 de Julho de 1941:  «O golpe mais duro que atingiu a humanidade foi o advento do cristianismo. O bolchevismo é um filho ilegítimo do cristianismo. [...] No mundo antigo, as relações entre os homens e os deuses eram fundadas sobre um respeito instintivo. Era um mundo esclarecido pela noção de tolerância. O cristianismo, pela primeira vez no mundo, exterminou os seus adversários em nome do amor. A sua marca é a intolerância.» (pp. 135-6)

Esta defesa da tolerância invocada pelo Führer é de uma fenomenal ironia, atendendo ao que se sabe.               

Avancemos para a Terceira Parte. Agora Neil continua a questionar Christopher sobre a vida da irmã, pergunta-lhe  se ela seria judia [o desenvolvimento deste assunto não cabe aqui], tenta descobrir a identidade de um homem de sobretudo, a única pessoa que o irmão alguma vez viu (e por breves instantes) com a irmã, e descobre o episódio da conferência.

E.F. escrevia para a "London Review of Books". Tendo a revista organizado um ciclo de conferências, Elizabeth foi convidada para uma delas. Propôs para título "Venceste, ó pálido Galileu", mas a revista preferiu um título mais benigno "Donde vem a nossa moral?". Cito o autor: «Ela começou pela morte de Juliano no deserto persa, um desastre, explicou, para o paganismo e o helenismo. O triunfo - e a catástrofe - do monoteísmo. Como a dominação e a corrupção do cristianismo conduziram à "atrofia do espírito europeu". Porque Juliano era moralmente superior a toda uma sucessão de papas. Como a alegria - sim, ela disse bem "alegria" - tinha pouco a pouco desaparecido da Europa, salvo por ocasião de sobrevivências pagãs autorizadas como o carnaval. A natureza tirânica do catolicismo e do protestantismo. A vergonhosa perseguição e expulsão dos judeus e dos muçulmanos. A sua convicção fundamental de que a fonte das nossas atitudes e acções morais se encontra mais distante no passado que a maior parte de entre nós tem disso consciência; infelizmente, não tão distante que o breve reinado de Juliano, o Apóstata.» (p. 154)

Houve as mais violentas reacções na imprensa, E.F. passou a ser fotografada, mesmo à saída de casa, um jornal publicou em grande título "PROFESSORA LOUCA PRETENDE QUE OS IMPERADORES ROMANOS ARRUINARAM A NOSSA VIDA SEXUAL". Pediram que ela fosse despedida da universidade de Londres e como ela se demitiu, pediram que lhe retirassem a pensão. E toda uma série de considerações que revelam a hipocrisia dos britânicos.

[Isto é ficção mas eu sei que os ingleses são abomináveis. Teria acontecido o mesmo na vida real. Julian Barnes sabe muito bem do que fala!]

Continuando:

E.F. não fez qualquer comentário. E recusou que a "London Review of Books" publicasse o texto da conferência. Num telefonema a Neil ela disse: «Escolheram não compreender nada.» Mais tarde, Neil folheia um exemplar de A Lenda Dourada, que conta a história de Santa Úrsula e das onze mil virgens. É morta em Colónia pelo príncipe dos hunos, bem como todas as virgens! E Neil também se recorda da extraordinária ladainha de mártires e de Sebastião, que não morreu por causa das flechas de Diocleciano mas por ter sido posteriormente espancado até à morte. E lembra-se das palavras de E.F. «Um segredo do sucesso da religião cristã foi ter empregado sempre os melhores realizadores.» (p. 164)

A passagem a seguir conservo no francês original: «En l'an 400, nous disait E.F., la princesse britannique Ursule et ses onze mille vierges se laissèrent massacrer devant Cologne pour l'amour de Dieu et dans l'espoir d'un paradis. Il y a sûrement eu une erreur de chiffres, mais quand même. Quinze siècles plus tard, le poète Apollinaire a écrit un roman pornographique intitulé Les onze mille verges - une voyelle de moins et le tour est joué - dans lequel presque autant de sang est versé en raison de divers sévices, flagellation, décapitation et autres pratiques sexuelles sadiques, qu'il en avait coulé devant les murs de Cologne.» (p. 165)

Citando Barnes: «Mas todas estas santas compilações, como os Actos dos Mártires, e as suas ilustrações ulteriores não passam de ficções edificantes, mais do que Vidas reais. A opinião actual dos eruditos não é apenas que poucos destes célebres mártires existiram, mas que o seu número total foi de facto minúsculo. Certamente, muitos cristãos foram mortos "simplesmente" porque eram cristãos (e recusavam abjurar a sua fé perante um tribunal); mas, também aqui, bem menos do que o precedentemente suposto. Segundo um "cálculo prudente", no decurso dos três primeiros séculos da era cristã, "entre dois e dez mil cristãos foram condenados à morte pelo poder temporal do Império Romano". (Nem mesmo as onze mil virgens de santa Úrsula!)» (p. 168)

Durante várias páginas, Barnes discorre sobre o martírio de santa Úrsula em Colónia [o que me leva a pensar que ainda hoje sofremos o pesadelo das Ursulas, em Colónia, em Bruxelas, ou em qualquer outro lugar].

Na sua pesquisa de referências a Juliano, Neil (aliás Barnes) continua a encontrar outros escritores que abordaram a vida do imperador: Nikos Kazantzakis, Thom Gunn, Cavafy, Robert Browning (o historiador, não o poeta), Dmitri Merejkovski, Kleon Rangavis, Michel Butor, Gore Vidal [cujo romance biográfico Juliano muito apreciei quando o li e não tive agora oportunidade de relê-lo].

E também houve duas óperas, de Felix Weingartner (1928) e de Lazare Saminsky (publicada em 1959, mas escrita nos anos 1930).

É curioso que muitos dos autores que escreveram sobre Juliano eram homossexuais. Não que Juliano fosse homossexual, pelo menos no sentido que hoje se atribui à palavra. Terá tido certamente episódicas relações sexuais com homens, como quase todos os romanos, mas não seria uma opção. Todavia, alguns dos que se debruçaram sobre ele cultivavam essa orientação, talvez pelo facto do cristianismo, contra o qual Juliano se ergueu, se ter revelado oficialmente muito puritano em questões sexuais, em contraste com a liberdade de costumes do mundo antigo. Entre esses podem mencionar-se pelo menos Swinburne (homossexual notório), Montaigne, Milton, Byron, Cavafy, Gore Vidal. 

ESTE LIVRO DE JULIAN BARNES É MAGNÍFICO, E ESTE BREVE APONTAMENTO NÃO DISPENSA NATURALMENTE O PRAZER DA SUA LEITURA.     

                 

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

O "CORÃO" DE BEN ALI


Mão amiga fez chegar ao meu conhecimento esta história deliciosa da impressão de uma edição do "Corão" na Tunísia, no tempo de Ben Ali.

LA SAGA DU CORAN DE LA REPUBLIQUE
 
Ou les péripéties d’un livre saint sous Ben Ali
 
Nous sommes à la fin des années 90. La Tunisie se porte relativement bien en termes économiques. Comme dans d’autres pays musulmans, le président Ben Ali veut avoir « son » Coran officiel.
Par ailleurs, MBS (Mohamed Ben Smail, patron des éditions Cérès) a depuis des années le projet de publier un Coran « tunisien » de qualité, et qui se démarque de ce qui se fait ailleurs, les maquettes et les essais successifs remplissent encore nos tiroirs, notamment cette impossible réimpression du fameux « coran Bleu » de Kairouan!
 
Ces tentatives se concrétisent finalement avec l’idée de refaire calligraphier entièrement les 600+ pages du Saint Mishaf, par le meilleur calligraphe tunisien, Msalmi Mizouni. Et d’en faire une impression de grande qualité. Ce sera le « projet Coran », il durera près de 5 ans.
 
L’organisation mise en place est rigoureuse, le projet est coûteux, c’est Cérès qui en avance les frais, et « la Présidence » ne réglera qu’à la livraison… Si tout se passe parfaitement bien. Une vraie prise de risque et le début d’une des périodes les plus rocambolesques de ma vie d’éditeur.
 
L’erreur n’est pas permise, les « collègues » souhaitent nous voir échouer, les courtisans estiment que MBS se rapproche trop du pouvoir et s’imaginent -à tort- qu’il pourrait briguer un « poste » qu’ils convoitent, etc. 
 
On le verra, l’histoire sera compliquée et révélatrice de la vie politique de cette époque en Tunisie.
L’erreur n’est donc pas permise. Après le choix de la maquette, format, type de calligraphie (ca sera du « Naskh simple » plus lisible), éléments de mise en page, etc., Mizouni se met au travail. Les rendez-vous hebdomadaires se succèdent ; il s’agit de vérifier les quelques pages calligraphiées de la semaine, qui sont soumises à deux équipes de relecteurs « professionnels », des cheikhs qui connaissent chaque virgule du texte sacré. Elles travailleront séparément et leurs observations croisées donneront lieu à des corrections exécutées par le calligraphe. Quand tout le monde se met d’accord, les épreuves sont signées par les responsables et on passe à la semaine suivante. Le Mufti de la République apposera ensuite sa signature avant impression. 
 
La première équipe est dirigée par le Cheikh Battikh, un homme jeune, intelligent, compétent et efficace, avec qui je me suis très bien entendu. La deuxième par une sommité du domaine, le fameux Cheikh Dellaa, imposé par Ben Ali. Bien plus âgé, ami de mon grand-père… incontournable. Il posera plus de problèmes qu’il n’en résoudra.
 
Les Cheikhs Battikh et Dellaa (melon et pastèque), cela ne s’invente pas ; l’histoire promettait d’être fraiche et savoureuse ! 
 
Les experts ont fini leur minutieux travail, nous sommes couverts. Du moins le pensions-nous !
L’impression est confiée à un imprimeur autrichien hyper pointu, spécialisé dans l’impression des anciens manuscrits, son atelier est à température et taux d’humidité constants, il travaille pour les grands musées du monde entier. Ses tirages sont généralement limités, et cette commande importante nous permet d’obtenir un devis défiant toute concurrence.
 
La reliure est confiée à un maître relieur, un artisan incroyable, un géant aux doigts couverts de petites cicatrices dues à des décennies de reliure manuelle, portant blouse de cuir et barbe blanche, il semblait sorti tout droit des ateliers de Gutemberg.
 
« SIEDTOU »
 
Les choses se passent bien. Durant toute cette aventure, je ne rencontrerai jamais Ben Ali, deux hauts cadres de la présidence assurent le relai. Des personnes avenantes et agréables, qui se reconnaîtront, et qui me faisaient servir un excellent café turc dans de jolies tasses estampillées aux couleurs de la présidence. C’est par eux que se fera toute la communication avec celui qu’ils ne nommeront jamais par son nom ni par son titre mais par le qualificatif monarchique de « Siedtou » (son excellence). Les rendez-vous se feront dans une annexe du Palais, la villa Baizeau, construite en 1928 par l’illustre architecte français Le Corbusier. Le décor est posé.
 
LE RABIN ET LE CORAN
 
Nous recevons les premières livraisons, 2 semi-remorques que je vais retirer au port en compagnie de notre transitaire, mon ami le regretté Max Zana. Max a vérifié lui-même que les verrous des containers sont intacts, nous assistons au chargement et prenons la route pour accompagner le transporteur vers les dépôts de la Présidence.
 
Max est dans ma voiture, nous suivons les camions et leur lourde cargaison. A un moment, au milieu d’une montée un peu sévère, le tracteur peine, son vieux moteur gémit, les vapeurs de gasoil nos prennent à la gorge. Le monstre ralentit, stoppe et semble sur le point de reculer ; nous avons un moment de panique. Max, me prend le bras, et sans perdre son calme me dit « Karim, je vous en prie, reculez, si je meurs écrasé par une montagne de Corans, mon rabbin ne comprendra pas ! ».
Paix à ton âme Max !
 
Le livre est superbe, le client est ravi, et les problèmes commencent !
 
LA VENGEANCE DES COURTISANS
 
Début 2000, MBS est dans la tourmente, 8 contrôles fiscaux simultanés et très politiques, mettent Cérès à genoux ; pendant deux ans les contrôleurs s’installeront dans nos bureaux, tous les jours. L’entreprise de sape de Abdelwahab Abdallah, « conseiller culturel » de Ben Ali aboutit, mais ça c’est une toute autre histoire. Ce qu’il faut retenir, c’est que nous sommes désormais dans une situation particulière : à la fois persona non grata et fournisseurs exclusifs d’un produit apprécié par le Président.
MBS est dans le collimateur, la chasse est ouverte. Notre téléphone ne sonne plus et les amis se font rares. Le « Coran de Cérès » est scruté, examiné sous toutes ses coutures, à la recherche du défaut, de l’angle d’attaque.
 
LE « NOUN » SATANIQUE ! 
 
Un matin, un appel urgent de mes vis-à-vis au palais, « Si Karim tnajjimchi tjina, tawwa ? » (Si Karim, pouvez-vous venir ? Tout de suite svp ! ). Visages des mauvais jours, on me dit que le livre a été lu très attentivement (cela ne m’étonnait pas), et qu’une omission grave a été détectée. Il se trouve qu’une lettre a sauté. Un « noun », qui a disparu, au milieu d’une phrase ! Vérification faite, il était là dans toutes les épreuves, mais a disparu sur la version imprimée. A ce jour je n’ai pas l’explication de ce mystère. Mais mon vis-à-vis n’en a cure, « choufenla hall !» (Trouvez une solution !) me dit-il en me congédiant, les dents serrées, d'un ton qui exprimait à la fois de la sympathie et son impuissance…
Pas de café turc ce jour-là.
 
« choufenla hall » ! Me voilà avec une lourde facture impayée, d’un client que je ne peux pas rencontrer, et qui ne nous porte pas dans son cœur ! Et des milliers d’exemplaires de Coran pour lesquels il faut « trouver une solution ». 
 
Brainstorming d’urgence à Cérès, graphistes, maquettistes, imprimeurs, calligraphe… Tout le monde est mis à contribution. Nous avons la solution ! Abracadabrante et pourtant salvatrice. Nous sommes en plein ramadan. Tous les soirs, nous nous rendons dans les stocks de la présidence, une équipe de 5 personnes aligne une dizaine de Corans, qui défilent sur des tables placées bout-à-bout, ouverts à la bonne page, vers Mizouni, installé à l’extrémité de cette chaîne, les livres sont déposés devant lui. Armé de son roseau taillé, le calligraphe redessine le « Noun » disparu, et efface la malédiction. A la main, livre après livre, soir après soir. Sur des milliers d’exemplaires !
 
J’ai présenté le résultat dès le premier exemplaire, le miracle était accompli. « Comment avez-vous fait ? », « nous avons fait notre travail ».
 
Des relecteurs "attentifs et bienveillants" essaieront bien de trouver d’autres erreurs, en vain.
IMPRIMEZ-LE EN TUNISIE !
 
Gros succès, tout le monde veut avoir le Coran de la République.
 
Le Livre sera réimprimé une ou deux fois, en pleine offensive fiscale et politique contre MBS et ses équipes, situation désagréable, paradoxale : Il fallait se débarrasser de Cérès et garder le Coran. Un « conseiller de l’ombre » trouvera la bonne idée : Imprimer en Tunisie. Euréka ! c’était la solution, évidente. 
 
Re-convocation d’urgence : « Si Karim, les fichiers appartiennent à la présidence, pourriez-vous svp nous les remettre ? ». Sur le moment je n’ai pas compris pourquoi. J’ai bien évidemment livré les CD. Ce n’est que plus tard que mon frère, qui était imprimeur m’a demandé « est-ce normal que la présidence me demande des essais d’impression de « notre » Coran » ? Des copies de nos fichiers avaient donc été envoyées -sans nous en informer- à tous les imprimeurs du pays pour faire des essais. Mais les résultats n’étaient pas concluants. C’était prévisible… La conception graphique du livre comportait des difficultés techniques telles qu’aucun imprimeur en Tunisie ne pouvait relever le défi. Aucun n’avait la maîtrise de notre fournisseur autrichien.
 
C’est donc tranquillement et en connaissance de cause que j’ai attendu l’appel de mes amis de Carthage, revenus de leurs divers essais, « Si Karim, tnejjem tjina ? ».
 
SACRILEGE & POUBELLES
 
Je reviens d’Autriche, les « bons à tirer » sont signés, tout semble se dérouler comme prévu, la livraison du nouveau tirage ne devrait pas tarder, quand l’Ambassade de Tunisie à Vienne m’appelle en urgence : « Vous avez un Coran en impression ici ? » - Oui, « Nous avons l’association des musulmans d’Autriche qui veut porter plainte pour atteinte au saint Coran, trouvez une solution » !
 
Explication : pour régler sa machine l’imprimeur doit jeter les quelques 500 premières pages imprimées, les feuilles de passe. Ces feuilles se sont retrouvées dans la poubelle et un employé musulman de la municipalité a été se plaindre auprès des dirigeants de sa communauté. 
 
Je rassure l’Ambassadeur et donne des instructions aussi claires qu’inédites à l’imprimeur, qui est confus et me dit qu’il a imprimé des bibles par centaines sans jamais avoir de problèmes. Instructions simples, zéro risque : « pas d’ouvrier musulman sur ce travail, et les feuilles de passe sont brûlées et non jetées à la poubelle ! ». Les choses se sont calmées.
 
ALIF, LE NOM DU SEIGNEUR & LA SIESTE DU MUFTI DE LA REPUBLIQUE
 
Nous venons de livrer la réimpression. 
 
Téléphone, « Si Karim tnajjimchi tjina, tawwa ? ». Rebelote, retour à Carthage, de quoi s’agit-il cette fois ?
 
Têtes d’enterrement… « Vous avez commis une grave erreur, une faute d’orthographe dans le nom de Siedtou » (Le nom de Ben Ali apparaît dans les premières pages, comme étant le commanditaire du livre).
 
« Le nom exact est « Ben Ali » et non « Ibn Ali » comme vous l’avez transcrit, le « Alif » est en trop ! ». « Choufelna hall ! » (Réglez le problème !).
 
Une erreur dans le nom du président ! Une erreur dans le texte coranique passe encore, mais là comment s’en sortir ?
 
Je me souviens alors que le Mufti de la République, qui a signé toutes les pages du livre, est également professeur d’arabe, je me précipite donc chez lui. On est en été, je le réveille de sa sieste, il me dit « Écoutez, la langue a ses règles, en arabe littéraire c’est ainsi que s’écrit son nom, si vous voulez qu’on soit la risée du monde arabe, écrivez « Ben ».
 
Soulagé je lui propose d’appeler de suite Carthage, c’est quand même la plus haute autorité religieuse du pays ! « Non mon fils, c’est ton problème, pas le mien, merci et au revoir ». Retour à la sieste.
Je remonte donc à la sublime colline plaider l’orthographe arabe et exposer les arguments du Mufti. « Merci Si Karim, on vous rappellera ».
 
Cela n’a pas duré une heure : « Si Karim Siedtou vous remercie, ainsi que « samahatou el Mufti », mais il vous informe qu’il écrit son nom comme il le veut » !
 
« Choufelna hall ! »
 
Branle-bas de combat. Réunion d’urgence à Cérès, cette fois le problème est plus compliqué que le « noun », il s’agit d’une lettre en trop et non en moins. La solution sera pourtant de la même nature que pour le « noun », sauf qu’en bout de chaîne, Msalmi Mizouni a travaillé… avec une loupe et un scalpel de chirurgien ! De sa main experte, sur chaque page posée devant lui, il a gratté le « alif » superflu, mécaniquement, systématiquement, sans une bavure, sans toucher au fond beige de la page, soir après soir et sur des milliers d’exemplaires, un geste parfait et bref, mécaniquement répété sur une barre d’encre de près d’un millimètre de largeur. Le résultat était bluffant.
 
Retour à Carthage.
 
-Incroyable, comment avez-vous fait ?
 
-Désolés ce sont les secrets du métier, nous avons fait notre travail ! 
 
LA BARAKA
 
Dernier voyage vers Graz, Autriche pour l’impression d’une version « ajzaa » (par chapitres). Je suis dans l’avion avec la maquette du Coran. D’un coup, fumée dans l’avion, bruits dans la carlingue, les masques à oxygènes tombent, l’équipage est blême, l’avion pique du nez… De longues minutes passent, assez longues pour réaliser qu’il y a de fortes chances pour que ce soit la fin. On finira par se poser en catastrophe à Rome, indemnes.
 
Des mois plus tard je racontais à un ami très pieux que cette aventure m’a prouvé que je n’étais absolument pas religieux : à quelques minutes d’une mort certaine, je n’ai pas pensé à me saisir du Coran qui était là, je n’ai pas psalmodié quelques versets pour implorer clémence et bénédiction… J’ai juste mis dans ma poche mon téléphone, au cas où !
 
Sa réponse fut celle d’un vrai croyant : « Ton avion allait s’écraser, et tu en es sorti indemne ! A qui penses-tu devoir ce miracle ? Le Coran qui t’accompagnait vous a tous sauvé, c’est de lui qu’émanait votre Baraka ! »
 
Les voies du Seigneur sont décidément impénétrables…
 
LES SERMENTS, OU LA REVANCHE DE BEN ALI
 
Des années après, la révolution chasse Ben Ali, ses successeurs trouvent dans les réserves ce superbe ouvrage, le « Coran de la République ». Plusieurs présidents prêteront serment la main posée sur le Coran de Ben Ali sans le savoir, à chaque fois j’ai souri en regardant la une de la Presse arborant la photo de ces présidents jurant fidélité à la Démocratie, la main posée sur le nom de Ben Ali… Sans le alif !
 
Un ministre nahdhaoui m’a appelé un jour, « Nous souhaitons réimprimer ce Coran », je lui ai dit la vérité : « Vous n’en avez plus les moyens, et je n’en ai plus l’énergie ».
 
LE MOT DE LA FIN
 
Plus tard, MBS tombera malade. Petit à petit, sa vie et ses souvenirs se sont effacés ; lentement volés par la maladie. 
 
Déjà bien atteint, alors qu’il venait encore au travail, MBS entre dans mon bureau, je suis avec Sami Menif, Directeur éditorial de Cérès. MBS se saisit d’un exemplaire du Coran, le consulte longuement. Nous l’observons, des bribes de souvenirs semblent lui revenir. Il nous regarde, et demande d’une voix à peine audible :
-Qu’est-ce que c’est ?
-C’est le coran Baba, tu te souviens ?
 
Long silence, petite moue, il le repose doucement et dit :
-Mauvais, il faut réécrire.
 
Plus de vingt ans après, cette scène reste un moment fort que nous évoquons régulièrement.
 
EPILOGUE
 
Quelques exemplaires du Coran de Cérès (après tout c’est nous qui avons tout fait) ont circulé après la révolution, avec un horrible autocollant cachant le nom de Ben Ali. Ultime péripétie de l’aventure d’un livre pas comme les autres, au temps de Ben Ali.
 
Si vous possédez un exemplaire, cherchez donc la trace du « noun » rajouté ou du « alif » disparu… Dans tous les cas, gardez le précieusement, c’est un collector !
 

terça-feira, 11 de outubro de 2022

ORGULHOSAMENTE SÓS

Foi publicado recentemente Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), do embaixador Bernardo Futscher Pereira, que constitui o último volume da trilogia dedicada à diplomacia do Estado Novo, composta por A Diplomacia de Salazar (1932-1949), editado em 2012 e Crepúsculo do Colonialismo - A Diplomacia do Estado Novo (1949-1961), editado em 2017.

Neste terceiro volume, o autor revisita a diplomacia de Salazar, e depois a de Marcelo Caetano, no período da guerra colonial, dando especial destaque - porventura excessivo - à actividade nos teatros de operações (Guiné, Angola e Moçambique). É certo que existiu uma correspondência biunívoca entre actividade diplomática e actividade militar, mas a descrição pormenorizada de inúmeras operações especiais implica, por vezes, uma quebra da atenção sobre a forma como foi conduzida a política externa portuguesa. Omitindo muitos detalhes militares, talvez não fossem necessárias as cerca de 500 páginas.

Trata-se, contudo, de um trabalho da maior importância e eu, que sou já muito antigo, tive um especial prazer em ler a descrição de factos e a menção de pessoas que me foram familiares, através dos jornais, nesses longínquos anos 60 e 70 do século passado. Algumas das figuras citadas cheguei mesmo a conhecê-las pessoalmente. Sendo diplomata (é actualmente o nosso embaixador em Rabat) e filho de diplomata (o pai, Vasco Futscher Pereira foi igualmente embaixador e também ministro dos Negócios Estrangeiros) o autor está particularmente bem colocado para analisar o comportamento do Palácio das Necessidades nesse período conturbado da vida nacional.

Sempre constituiu para mim (e creio que para toda a gente) um enigma o facto de Salazar, sendo uma pessoa inegavelmente inteligente e conhecedora da política internacional, se ter recusado até ao fim da sua vida útil a admitir a independência dos territórios portugueses em África, quando todos os países europeus, que haviam partilhado por inteiro o continente africano, se haviam já retirado das suas possessões. Salazar era um legalista, e inflexível nos princípios (foi grande a sua indignação, como refere o autor, quando os americanos lhe propuseram uma soma fabulosa de dinheiro em troca da independência das colónias), mas prosseguir uma guerra, que viria a durar até 1974, quando toda a África era já independente (a própria Argélia, considerada uma extensão da França, adquirira esse estatuto em 1962) afigurava-se uma empresa destituída de sentido.

Parece hoje impossível como Portugal conseguiu manobrar diplomaticamente (em especial durante o tempo de Franco Nogueira) evitando grandes males perante a hostilidade de quase todo o mundo. Estávamos, de facto, "orgulhosamente sós", como afirmou Salazar em discurso à nação, em 18 de Dezembro de 1965. 

O regime teve algumas oportunidades para mudar de política. A primeira foi em Abril de 1961, caso tivesse triunfado o golpe do general Botelho Moniz, destinado a afastar Salazar e a inverter a posição de Portugal relativamente a África. A segunda foi em 1963, quando a situação política e militar era favorável e Franco Nogueira (cuja atitude só posteriormente se foi radicalizando) era nessa altura partidário de um plebiscito que Salazar impediu. A terceira foi em 1969, quando Marcelo Caetano sucedeu a Salazar e Caetano aceitou as condições de Américo Thomaz. A quarta, e última, foi em 1972, quando terminando o segundo mandato de Thomaz este foi proposto por Caetano como recandidato em vez de Spínola que poderia ter encontrado uma solução para o problema ultramarino, graças ao seu conhecimento do terreno e até porque havia já conversações com os movimentos de libertação.

O esforço de guerra de Portugal em 13 anos de guerra colonial foi imenso e não era antecipadamente imaginável. O país chegou a ter  330 000 homens em armas, incluindo a metrópole, a Guiné, Angola e Moçambique (p. 253), o que é notável atendendo à nossa dimensão.

Não subscrevendo por inteiro todas as teses do autor, e considerando que algumas interpretações são um tanto ou quanto subjectivas, reconheço que se trata de um livro importante, e necessário, para o conhecimento da nossa diplomacia à época. 

Discordo, por exemplo, quando Futscher Pereira afirma que Salazar era um homem eminentemente católico. Admito que o tenha sido no início da sua vida mas suponho que, com o passar dos anos, a sua fé tenha largamente esmorecido. Isto no campo estritamente pessoal, porque no político foi de grande reserva e hostilidade a sua atitude em relação à Igreja Católica, especialmente a partir de João XXIII e nomeadamente de Paulo VI, que foi à Índia e recebeu os dirigentes dos movimentos de libertação, embora tenha acedido depois a vir a Fátima no cinquentenário da aparições. Diria antes que Salazar utilizou a Igreja como suporte do regime.

Quando o autor refere que Salazar era vingativo não sei se exagera, embora seja bem verdade que nunca esquecia qualquer afronta ou atitude que lhe desagradasse. 

Na referência a muitos acontecimentos e documentos, Futscher Pereira indica obviamente as datas mas, especialmente na primeira parte do livro, menciona o mês, e mesmo o dia, esquecendo-se muitas vezes de indicar o ano, numa obra em que a cronologia não é, não poderia ser, rigorosamente respeitada, o que obriga o leitor a uma pesquisa pessoal. 

Existem também algumas imprecisões. Por exemplo, quando refere que «a Tanzânia resultava da fusão entre o Tanganica e o sultanato de Zanzibar - a antiga Madagáscar» (p. 141). Não vejo a relação entre Zanzibar e Madagáscar. Ou «O comandante Pedro Pinto, futuro Presidente da República de Cabo Verde» (p. 148). Deve estar a referir-se a Pedro Pires.

Existem outros lapsos que não anotei mas, no conjunto, é uma obra de grande valia.

 

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

ENTRE LIBERALISMO, SOCIALISMO E FASCISMO

Publicado muito recentemente, O Estado Novo de Salazar: uma terceira via autoritária na era do fascismo, é uma obra coordenada por António Costa Pinto, que constitui, segundo o autor, a primeira tentativa de uma abordagem sistemática do tema.  «Como e por que razão estas ditaduras [Espanha, Portugal e Áustria] na periferia da Europa, especialmente o Estado Novo de Salazar em Portugal, inspiraram algumas das novas instituições políticas desses regimes [países europeus e sul-americanos]?».

Este livro não nos dá propriamente novidades sobre o Estado Novo mas tem o mérito de recordar e sintetizar alguma informação, ainda que, por vezes, o discurso seja algo repetitivo.   Podemos dizer que a criação do Estado Novo se deve exclusivamente a Salazar e que a sua criação, na década de 30 do século passado, correspondeu ao desejo de encontrar uma terceira via de organização social e económica em oposição ao socialismo e ao capitalismo liberal.  Como estado corporativo, foi inspirado pelas encíclicas Rerum Novarum (1891), de Leão XIII e Quadragesimo Anno (1931), de Pio XI. A Igreja Católica considerava que, depois da Grande Depressão, o capitalismo liberal estava em declínio e que importava encontrar una nova forma de representação política alternativa à democracia liberal que excluísse os totalitarismos fascista e comunista. O corporativismo procurava conciliar o papel do Estado com as forças do trabalho e o mundo dos negócios, no que se designou em Portugal por uma democracia orgânica, não liberal, onde os interesses estavam representados numa Câmara Corporativa, uma segunda câmara não legislativa. 

Assim, o Estado Novo foi um regime autoritário, mas não totalitário, e não revestiu as características comuns aos regimes fascistas. Como escreveu Mário Sottomayor Cardia, num artigo no "Diário de Notícias" de 16 de Abril de 2000, que há dias publiquei no Facebook, Salazar nunca foi fascista, ainda que, muito inicialmente, tivesse alguma simpatia por Benito Mussolini. Mas tinha horror a todos os rituais do fascismo. A "ditadura discreta" de Salazar encontrava-se limitada pela Moral e pelo Direito, embora esses limites dependessem muito do critério do regime, ou mais concretamente da opinião do seu chefe.

O primeiro capítulo (Em busca de uma terceira via) é da autoria do próprio Costa Pinto e os capítulo seguintes, que se debruçam sobre os doadores de livros estrangeiros na biblioteca de Salazar e sobre o modelo salazarista em Vichy, nos Países Baixos, na Dinamarca, na Grécia, na Hungria, no Brasil e no Equador, Peru, Colômbia, Argentina e Chile, são assinados por diversos investigadores portugueses e estrangeiros. Pelo meio há referências a Espanha, à Áustria, à Roménia, à Eslováquia, à Jugoslávia e também, naturalmente, a Itália e à Alemanha.

O Estado Novo exerceu um encanto multifacetado sobre toda a Europa. A atestá-lo, encontram-se os livros oferecidos a Salazar (existem catálogos, porventura incompletos, da sua biblioteca, que contaria mais de 12 000 volumes, e que foi dispersa depois da sua morte)  por numerosas personalidades estrangeiras, algumas com notoriedade intelectual, como é o caso de Jacques Maritain, Mircea Eliade, Coudenhove-Kalergi ou Edgar Prestage. Por comodidade de análise, os autores deste capítulo dividiram os ofertantes em  categorias: eugenistas, católicos (eclesiásticos e leigos), corporativistas, partidários de alianças transnacionais e mulheres escritoras.

Também o regime de Vichy, especialmente Pétain, foi influenciado pela doutrina de Salazar. O Marechal tinha na sua secretária o livro de Salazar Comment on relève un État, publicado directamente em francês pela Flammarion, em 1937. Aliás, já antes de se tornar chefe do Estado francês, Pétain, enquanto ministro da III República, professava grande admiração por Salazar. Em 1934, a editora Grasset publicara o livro de António Ferro Salazar, o Homem e a sua Obra, com o título Le Portugal et Son chef, apresentado com um prefácio de Paul Valéry. Charles Maurras, grande figura do pensamento francês da direita católica e monárquica e director do jornal "L'Action française" encontra-se muito próximo de Salazar, de quem os maurrasianos se tornam fervorosos adeptos. Navegam nestas águas Jacques Bainville, Henri Massis, Robert Brasillach ou Lucien Rebatet. O termo "Revolução Nacional", utilizado por Salazar, ainda que nascido em 1924 com a paternidade de Georges Valois, foi também usado pelo regime de Vichy, especialmente na mensagem que, em nome do Marechal, Jean-Louis Tixier Vignancourt dirigiu aos franceses em 9 de Outubro de 1940. 

Nas décadas de 1930 e 1940 também o corporativismo português exerceu especial influência nos Países Baixos, que procuravam uma "renovação" nacional. O país estava religiosamente fragmentado e socialmente dividido, o que impedia a prossecução de uma real política de desenvolvimento. Surgiram então os vernieuwers ("inovadores") que pugnavam pela solidariedade económica e social entre o povo neerlandês (Volkseenheid), a emancipação das áreas rurais e a regulamentação e racionalização da produção económica (ordening).

Os inovadores neerlandeses foram muito influenciados por Denis de Rougemont. Jacques Maritain e Emmanuel Mounier.

O defensor mais influente nos Países Baixos do corporativismo português foi Edward Brongersma, católico convertido que queria organizar o Partido Católico. A sua tese de doutoramento, na Universidade de Nijmegen, foi sobre a Constituição Portuguesa de 1933.  A carreira política de Brongersma foi interrompida em 1950 quando foi preso por ter relações sexuais com um rapaz que ainda não havia completado os 17 anos, quando na altura a idade do consentimento nos Países Baixos era de 21 anos. Após 11 meses de cadeia regressou à actividade política tendo-se salientado na luta pela abaixamento da idade de relações sexuais para os 16 anos, que acabaria por ser reduzida para essa idade em 1971. Brongersma pretendia todavia que o consentimento fosse fixado numa idade ainda mais baixa mas não conseguiu. Como senador, foi um dos grandes defensores no seu país da pedofilia e da eutanásia, tendo morrido exactamente por esse  processo.

Também na Dinamarca as ideias corporativas e o regime de Salazar influenciaram os políticos e a população. Em 1932, uma jovem figura pública, Ole Bjorn Kraft, publicou Fascismen - historie, loere, lov (Fascismo - História, Doutrina, Leis), em que fazia uma avaliação positiva da obra de Mussolini. O jornalista Ejnar Black, efectuou na revista "Billedbladet", nos anos 30, o elogio dos líderes fascistas e chegou a ser recebido por Hitler e Mussolini. Em 1940, escreveu um artigo laudatório de Salazar. Mas o conhecimento de Portugal na Dinamarca era muito mais limitado do que o da Espanha de Franco e só se tornou mais notório a partir de 1937, devido a uma palestra do empresário Knud Hojgaard, gerente de uma importante empresa de construção espalhada por vários países. 

A apreciação do corporativismo e de Salazar foi muito positiva nos sectores da direita dinamarquesa durante largos anos, mas foi esmorecendo depois com a passagem do tempo.

Analisando agora a influência do salazarismo na Grécia, conclui-se que ele teve particular importância no pensamento do general Metaxas, que foi primeiro-ministro e que efectuou um golpe de Estado em 4 de Agosto de 1936 (com o apoio do rei Jorge II), tornando-se chefe de um governo ditatorial até à sua morte em 1941. Metaxas tentou manter uma posição equilibrada entre os Aliados (a Família Real era anglófila) e a Alemanha, tendo as suas relações com a Itália sido complicadas. A publicação semi-oficial do governo chamava-se mesmo "Estado Novo" (Neon Kratos). A política desenvolvida por Metaxas esteve sempre mais próxima de Salazar do que de Hitler ou de Mussolini. 

Na Hungria surgiu um fenómeno curioso. Com a queda do Império Austro-Húngaro, em 1918, o imperador austríaco Carlos I que era também rei da Hungria como Carlos IV, não teve possibilidade de ocupar o trono, mas enquanto a Áustria adoptou o regime republicano, a Hungria manteve-se monárquica. Após um período de turbulência, ocupou o poder, como Regente, o almirante Miklós Horthy (que acabaria os seus dias em Portugal) que apoiaria governos conservadores mais ou menos totalitários, como o de Gyula Gömbös (até 1936) ou o de Béla Imrédy, mas que procuraram manter-se sempre afastados de qualquer movimento fascizante nativo. A Imrédy sucedeu, na mesma linha, Pál Teleki. Eram ambos entusiastas pessoais de Salazar. Ambicionavam ser "Salazares magiares" (p. 180). Teleki chegou mesmo a traduzir em húngaro os discursos de Salazar e a proceder à sua publicação. O pensamento de Salazar foi também largamente divulgado pela imprensa húngara. Teleki suicidar-se-ia em 1941, quando da entrada de tropas nazis na Hungria. A partir dos anos 20 do século passado, e até à instauração do regime comunista, Portugal manteve relações diplomáticas com a Hungria, por vezes de grande proximidade.

Durante o período da Primeira República Portuguesa (1910-1926) e da Primeira República do Brasil (1889-1930) existiram grandes redes de sociabilidade entre os dois países. Com o advento da Era Vargas (1930-1945), o pensamento corporativo de Salazar exerceu poderosa influência no regime brasileiro. A Constituição brasileira de 1934, que iniciou a Segunda República tinha uma base corporativista. Exerceu especial influência neste período o líder católico Alceu Amoroso Lima, conhecido como escritor pelo pseudónimo Tristão de Ataíde. O apoio que a Igreja Católica portuguesa (nomeadamente através do Cardeal Patriarca de Lisboa D. Manuel Gonçalves Cerejeira) emprestou ao regime de Salazar foi de alguma forma imitado no Brasil pelo suporte dos católicos brasileiros (clero e leigos) ao governo de Getúlio Vargas. A própria Terceira República brasileira (Constituição de 1937) se intitulou (como em Portugal) de Estado Novo, que durou até ao suicídio de Vargas em 1945.

O Equador, o Peru e a Colômbia também receberam considerável influência do salazarismo e do franquismo. O discurso político da direita nesses países assentava nas associações católicas e no corporativismo católico, no nacionalismo radical e na hispanidade. Ele reflectia de certa forma a "aliança" que se verificava na Europa entre Franco e Salazar.

Na Argentina e no Chile havia mais proximidade com o nazismo de Hitler e o fascismo de Mussolini. Mas verificavam-se igualmente influências das ditaduras de Primo de Rivera em Espanha e de Salazar em Portugal. Os modelos autoritários adoptados nesses  países reflectem  apropriações selectivas desses regimes.

Na conclusão, Costa Pinto considera que a Alemanha de Weimar já era dominada pela direita conservadora e radical antes da chegada de Hitler ao poder. O próprio Franz von Papen concebeu a ideia de um Estado Novo alemão, mas a ascensão do Partido Nacional Socialista gorou esse projecto. Tivesse sido outra a história e a Alemanha poderia ter tido um regime próximo da Áustria de Dolfuss, do Portugal de Salazar, ou do Estado Novo de Getúlio Vargas. E afirma também que o romeno Mihail Manoilescu foi talvez o mais notável exemplo de um intelectual-político promotor de instituições políticas da terceira via autoritária e, por causa disso, um dos principais difusores do modelo institucional do salazarismo na era do fascismo.

A análise das influências do salazarismo nos diversos países, a cargo de alguns investigadores estrangeiros e nacionais, porque apresentando, necessariamente, informações cruzadas, e por isso repetitivas, tornam a leitura do livro por vezes maçadora.