«VENCESTE, GALILEU!»
Acabei de ler Elizabeth Finch (2022), o mais recente livro de Julian Barnes (n. 1946), o famoso escritor inglês a quem se devem magníficas obras. A sua leitura constituiu para mim um especial prazer, não só pela invenção do tema, a beleza da escrita, o humor elegante e a reinvenção do passado, como também pela vastíssima cultura que Barnes revela ao longo do romance.
O livro compõe-se de três partes que tentarei (tarefa impossível) resumir em meia dúzia de linhas.
Na Primeira Parte, Neil, um homem divorciado que já passou os 30 anos resolve inscrever-se na Universidade para frequentar um curso de "Cultura e Civilização". A professora, Elizabeth Finch, é uma mulher singular, discretamente requintada, senhora de grande erudição e que estará já nos 50 anos. Ninguém conhece o seu passado e o seu presente. Sabe-se que habita um apartamento num bairro elegante de Londres mas nunca alguém a viu acompanhada por qualquer homem ou mulher. Mantém com todos os alunos uma amável distância.
Nas suas aulas não indica bibliografia, faz as evocações mais inesperadas, cita improváveis relações entre certas figuras e autores, tudo sendo, realmente uma surpresa. Um dia, porém, menciona, a propósito de "fracasso", o imperador romano Juliano, que o famoso poeta inglês Algernon Charles Swinburne (1837-1909), na sua luta contra os valores vitorianos, imortalizou no "Hino a Proserpina", e cuja epígrafe é Vicisti, Galilaee, melhor formulada no corpo do poema:
Thou hast conquered, O pale Galilean; the world has grown grey from thy breath; We have drunken of things Lethean, and fed on the fullness of death.
Sendo, naturalmente, que o pálido Galileu é Jesus de Nazaré. O imperador Juliano foi cognominado o Apóstata, por ter sido baptizado e educado no cristianismo e ter tentado depois opor-se à difusão da nova religião, procurando manter os cultos pagãos. Não é certo que Juliano fosse alguma vez verdadeiramente cristão (talvez apenas na aparência devido à sua condição) não sendo assim correcto considerá-lo verdadeiramente como um apóstata. As suas últimas palavras, ao morrer às mãos de um cristão, teriam sido: «Venceste , ó Galileu», frase mencionada pela primeira vez na História Eclesiástica do bispo Teodoreto (século V). Voltaremos mais tarde a este episódio.
Terminado o ano, Neil, sobre o qual Elizabeth Finch (E.F.) exercia um inegável fascínio, propõe-lhe que se encontrem para um almoço, passando a ver-se duas a três vezes por ano num pequeno restaurante italiano do oeste de Londres, próximo do local onde ela habitava. As regras eram claras, sem jamais terem sido enunciadas. Chegada às 3 horas em ponto, sendo a refeição composta por uma pasta do dia, uma salada verde, um copo de vinho branco e um café. O almoço durava 75 minutos e E.F. pagava sempre a conta.
O livro contém inúmeros aforismos de E.F., denunciando as suas convicções (e a cultura de Barnes) e ao longo da obra o autor aproveita todas as oportunidades para uma violenta crítica à sociedade britânica e aos seus valores.
Depois de ela ter anulado seguidamente dois almoços, Neil recebe uma mensagem de um tal Christopher Finch (cuja existência ignorava) a comunicar-lhe a morte da irmã. Ao mesmo tempo, um notário informa-o que E.F. lhe legou todos os seus livros e papéis. É então que estabelece contactos com o irmão, tentando saber pormenores sobre a vida de Elizabeth, enquanto começa a pesquisar nos papéis herdados. É sua intenção descobrir algumas pessoas que tivessem que conhecido a professora, quiçá escrever a sua biografia.
Saltando muitos aspectos interessantes mas cuja descrição aqui não cabe, Neil encontra a certa altura uma nota com a indicação de vários nomes aparentemente sem ligação entre si, e outra nota com uma alusão ao "pálido Galileu". E começa a estabelecer a conexão.
Na Segunda Parte, Neil examina, segundo as notas de E.F., a vida de Juliano e o que sobre ele escreveram conhecidos autores e até a improvável referência de um político.
Como se disse, o pálido Galileu é Jesus Cristo e Juliano (331-363), é o imperador romano que tentou restaurar o paganismo, que reinou de 361 a 363, e que morreu assassinado em Samarra supostamente por uma lança cristã, durante a campanha contra os persas. É possível que o atacante tenha sido um soldado persa, logo não cristão, mas persiste a lenda que foi um soldado romano (cristão), ou até um escravo convertido à fé emergente. Apesar da sua austeridade e simplicidade, Juliano não dispensava os escravos. Escreve Barnes: «Por estas palavras [atribuídas ao bispo Teodoreto] Juliano reconhece que o cristianismo triunfou do paganismo, do helenismo, do judaísmo, e de todas as outras seitas e heresias rivais presentes no Império Romano. Que daí em diante, e para sempre, será também o Império Cristão.» (p. 87)
Flavius Claudius Julianus foi um homem muito culto, tolerante, que não perseguiu os cristãos mas opôs-se a que estes procurassem destruir o paganismo. Barnes aproveita este momento para descrever a personalidade e o reinado de Juliano, baseado especialmente em Ammianus Marcellinus, que foi soldado, historiador e amigo especial do imperador. Escreveu Marcellinus: «Os cristãos são piores do que os animais ferozes quando disputam entre si.» (p. 97)
A seguir, Barnes, por interposta E.F., refere-se aos autores que se debruçaram sobre Juliano, e cujos nomes se encontravam na mencionada nota: Montaigne, Milton, Montesquieu (De l'esprit des lois), Voltaire (Dictionnaire philosophique), Gibbon ( History of the Decline and Fall of the Roman Empire), Schiller (que levou dez anos a preparar uma peça sobre Juliano, que nunca escreveu mas sobre a qual falou a Goethe), Byron (que o cita no Don Juan), Henrik Ibsen (que escreveu uma peça, Imperador e Galileu, de 480 páginas e raramente representada), Swinburne (o evocador da célebre frase no Hino a Proserpina e que também o mencionou em O último oráculo), Auguste Comte, Ernest Renan, Anatole France, e, surpreendentemente, Adolf Hitler.
Nas Conversas à mesa, de Hitler, de 21 de Outubro de 1941, lê-se: «É uma vergonha quando se pensa no julgamento dos nossos melhores espíritos, há já cem ou duzentos anos, sobre o cristianismo, para se aperceber quão pouco evoluímos. Eu ignorava que Juliano, o Apóstata, tivesse julgado com tal clarividência o cristianismo e os cristãos. É preciso ler o que ele disse.» (p. 135)
Regressando ao assunto, quatro dias mais tarde, uma noite em que os convidados especiais eram o Reichsführer SS Himmler e o general SS (Obergruppenführer) Heydrich: « Devia-se espalhar aos milhões o livro que contém as reflexões do imperador Juliano. Que maravilhosa inteligência, que discernimento, toda a sabedoria antiga! É extraordinário.» (p. 135)
E já anteriormente, na noite de 11 para 12 de Julho de 1941: «O golpe mais duro que atingiu a humanidade foi o advento do cristianismo. O bolchevismo é um filho ilegítimo do cristianismo. [...] No mundo antigo, as relações entre os homens e os deuses eram fundadas sobre um respeito instintivo. Era um mundo esclarecido pela noção de tolerância. O cristianismo, pela primeira vez no mundo, exterminou os seus adversários em nome do amor. A sua marca é a intolerância.» (pp. 135-6)
Esta defesa da tolerância invocada pelo Führer é de uma fenomenal ironia, atendendo ao que se sabe.
Avancemos para a Terceira Parte. Agora Neil continua a questionar Christopher sobre a vida da irmã, pergunta-lhe se ela seria judia [o desenvolvimento deste assunto não cabe aqui], tenta descobrir a identidade de um homem de sobretudo, a única pessoa que o irmão alguma vez viu (e por breves instantes) com a irmã, e descobre o episódio da conferência.
E.F. escrevia para a "London Review of Books". Tendo a revista organizado um ciclo de conferências, Elizabeth foi convidada para uma delas. Propôs para título "Venceste, ó pálido Galileu", mas a revista preferiu um título mais benigno "Donde vem a nossa moral?". Cito o autor: «Ela começou pela morte de Juliano no deserto persa, um desastre, explicou, para o paganismo e o helenismo. O triunfo - e a catástrofe - do monoteísmo. Como a dominação e a corrupção do cristianismo conduziram à "atrofia do espírito europeu". Porque Juliano era moralmente superior a toda uma sucessão de papas. Como a alegria - sim, ela disse bem "alegria" - tinha pouco a pouco desaparecido da Europa, salvo por ocasião de sobrevivências pagãs autorizadas como o carnaval. A natureza tirânica do catolicismo e do protestantismo. A vergonhosa perseguição e expulsão dos judeus e dos muçulmanos. A sua convicção fundamental de que a fonte das nossas atitudes e acções morais se encontra mais distante no passado que a maior parte de entre nós tem disso consciência; infelizmente, não tão distante que o breve reinado de Juliano, o Apóstata.» (p. 154)
Houve as mais violentas reacções na imprensa, E.F. passou a ser fotografada, mesmo à saída de casa, um jornal publicou em grande título "PROFESSORA LOUCA PRETENDE QUE OS IMPERADORES ROMANOS ARRUINARAM A NOSSA VIDA SEXUAL". Pediram que ela fosse despedida da universidade de Londres e como ela se demitiu, pediram que lhe retirassem a pensão. E toda uma série de considerações que revelam a hipocrisia dos britânicos.
[Isto é ficção mas eu sei que os ingleses são abomináveis. Teria acontecido o mesmo na vida real. Julian Barnes sabe muito bem do que fala!]
Continuando:
E.F. não fez qualquer comentário. E recusou que a "London Review of Books" publicasse o texto da conferência. Num telefonema a Neil ela disse: «Escolheram não compreender nada.» Mais tarde, Neil folheia um exemplar de A Lenda Dourada, que conta a história de Santa Úrsula e das onze mil virgens. É morta em Colónia pelo príncipe dos hunos, bem como todas as virgens! E Neil também se recorda da extraordinária ladainha de mártires e de Sebastião, que não morreu por causa das flechas de Diocleciano mas por ter sido posteriormente espancado até à morte. E lembra-se das palavras de E.F. «Um segredo do sucesso da religião cristã foi ter empregado sempre os melhores realizadores.» (p. 164)
A passagem a seguir conservo no francês original: «En l'an 400, nous disait E.F., la princesse britannique Ursule et ses onze mille vierges se laissèrent massacrer devant Cologne pour l'amour de Dieu et dans l'espoir d'un paradis. Il y a sûrement eu une erreur de chiffres, mais quand même. Quinze siècles plus tard, le poète Apollinaire a écrit un roman pornographique intitulé Les onze mille verges - une voyelle de moins et le tour est joué - dans lequel presque autant de sang est versé en raison de divers sévices, flagellation, décapitation et autres pratiques sexuelles sadiques, qu'il en avait coulé devant les murs de Cologne.» (p. 165)
Citando Barnes: «Mas todas estas santas compilações, como os Actos dos Mártires, e as suas ilustrações ulteriores não passam de ficções edificantes, mais do que Vidas reais. A opinião actual dos eruditos não é apenas que poucos destes célebres mártires existiram, mas que o seu número total foi de facto minúsculo. Certamente, muitos cristãos foram mortos "simplesmente" porque eram cristãos (e recusavam abjurar a sua fé perante um tribunal); mas, também aqui, bem menos do que o precedentemente suposto. Segundo um "cálculo prudente", no decurso dos três primeiros séculos da era cristã, "entre dois e dez mil cristãos foram condenados à morte pelo poder temporal do Império Romano". (Nem mesmo as onze mil virgens de santa Úrsula!)» (p. 168)
Durante várias páginas, Barnes discorre sobre o martírio de santa Úrsula em Colónia [o que me leva a pensar que ainda hoje sofremos o pesadelo das Ursulas, em Colónia, em Bruxelas, ou em qualquer outro lugar].
Na sua pesquisa de referências a Juliano, Neil (aliás Barnes) continua a encontrar outros escritores que abordaram a vida do imperador: Nikos Kazantzakis, Thom Gunn, Cavafy, Robert Browning (o historiador, não o poeta), Dmitri Merejkovski, Kleon Rangavis, Michel Butor, Gore Vidal [cujo romance biográfico Juliano muito apreciei quando o li e não tive agora oportunidade de relê-lo].
E também houve duas óperas, de Felix Weingartner (1928) e de Lazare Saminsky (publicada em 1959, mas escrita nos anos 1930).
É curioso que muitos dos autores que escreveram sobre Juliano eram homossexuais. Não que Juliano fosse homossexual, pelo menos no sentido que hoje se atribui à palavra. Terá tido certamente episódicas relações sexuais com homens, como quase todos os romanos, mas não seria uma opção. Todavia, alguns dos que se debruçaram sobre ele cultivavam essa orientação, talvez pelo facto do cristianismo, contra o qual Juliano se ergueu, se ter revelado oficialmente muito puritano em questões sexuais, em contraste com a liberdade de costumes do mundo antigo. Entre esses podem mencionar-se pelo menos Swinburne (homossexual notório), Montaigne, Milton, Byron, Cavafy, Gore Vidal.
ESTE LIVRO DE JULIAN BARNES É MAGNÍFICO, E ESTE BREVE APONTAMENTO NÃO DISPENSA NATURALMENTE O PRAZER DA SUA LEITURA.
1 comentário:
Liberdade de costumes queria dizer os senhores poderem enrabar os seus escravos à vontade.
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