quinta-feira, 6 de outubro de 2022

ENTRE LIBERALISMO, SOCIALISMO E FASCISMO

Publicado muito recentemente, O Estado Novo de Salazar: uma terceira via autoritária na era do fascismo, é uma obra coordenada por António Costa Pinto, que constitui, segundo o autor, a primeira tentativa de uma abordagem sistemática do tema.  «Como e por que razão estas ditaduras [Espanha, Portugal e Áustria] na periferia da Europa, especialmente o Estado Novo de Salazar em Portugal, inspiraram algumas das novas instituições políticas desses regimes [países europeus e sul-americanos]?».

Este livro não nos dá propriamente novidades sobre o Estado Novo mas tem o mérito de recordar e sintetizar alguma informação, ainda que, por vezes, o discurso seja algo repetitivo.   Podemos dizer que a criação do Estado Novo se deve exclusivamente a Salazar e que a sua criação, na década de 30 do século passado, correspondeu ao desejo de encontrar uma terceira via de organização social e económica em oposição ao socialismo e ao capitalismo liberal.  Como estado corporativo, foi inspirado pelas encíclicas Rerum Novarum (1891), de Leão XIII e Quadragesimo Anno (1931), de Pio XI. A Igreja Católica considerava que, depois da Grande Depressão, o capitalismo liberal estava em declínio e que importava encontrar una nova forma de representação política alternativa à democracia liberal que excluísse os totalitarismos fascista e comunista. O corporativismo procurava conciliar o papel do Estado com as forças do trabalho e o mundo dos negócios, no que se designou em Portugal por uma democracia orgânica, não liberal, onde os interesses estavam representados numa Câmara Corporativa, uma segunda câmara não legislativa. 

Assim, o Estado Novo foi um regime autoritário, mas não totalitário, e não revestiu as características comuns aos regimes fascistas. Como escreveu Mário Sottomayor Cardia, num artigo no "Diário de Notícias" de 16 de Abril de 2000, que há dias publiquei no Facebook, Salazar nunca foi fascista, ainda que, muito inicialmente, tivesse alguma simpatia por Benito Mussolini. Mas tinha horror a todos os rituais do fascismo. A "ditadura discreta" de Salazar encontrava-se limitada pela Moral e pelo Direito, embora esses limites dependessem muito do critério do regime, ou mais concretamente da opinião do seu chefe.

O primeiro capítulo (Em busca de uma terceira via) é da autoria do próprio Costa Pinto e os capítulo seguintes, que se debruçam sobre os doadores de livros estrangeiros na biblioteca de Salazar e sobre o modelo salazarista em Vichy, nos Países Baixos, na Dinamarca, na Grécia, na Hungria, no Brasil e no Equador, Peru, Colômbia, Argentina e Chile, são assinados por diversos investigadores portugueses e estrangeiros. Pelo meio há referências a Espanha, à Áustria, à Roménia, à Eslováquia, à Jugoslávia e também, naturalmente, a Itália e à Alemanha.

O Estado Novo exerceu um encanto multifacetado sobre toda a Europa. A atestá-lo, encontram-se os livros oferecidos a Salazar (existem catálogos, porventura incompletos, da sua biblioteca, que contaria mais de 12 000 volumes, e que foi dispersa depois da sua morte)  por numerosas personalidades estrangeiras, algumas com notoriedade intelectual, como é o caso de Jacques Maritain, Mircea Eliade, Coudenhove-Kalergi ou Edgar Prestage. Por comodidade de análise, os autores deste capítulo dividiram os ofertantes em  categorias: eugenistas, católicos (eclesiásticos e leigos), corporativistas, partidários de alianças transnacionais e mulheres escritoras.

Também o regime de Vichy, especialmente Pétain, foi influenciado pela doutrina de Salazar. O Marechal tinha na sua secretária o livro de Salazar Comment on relève un État, publicado directamente em francês pela Flammarion, em 1937. Aliás, já antes de se tornar chefe do Estado francês, Pétain, enquanto ministro da III República, professava grande admiração por Salazar. Em 1934, a editora Grasset publicara o livro de António Ferro Salazar, o Homem e a sua Obra, com o título Le Portugal et Son chef, apresentado com um prefácio de Paul Valéry. Charles Maurras, grande figura do pensamento francês da direita católica e monárquica e director do jornal "L'Action française" encontra-se muito próximo de Salazar, de quem os maurrasianos se tornam fervorosos adeptos. Navegam nestas águas Jacques Bainville, Henri Massis, Robert Brasillach ou Lucien Rebatet. O termo "Revolução Nacional", utilizado por Salazar, ainda que nascido em 1924 com a paternidade de Georges Valois, foi também usado pelo regime de Vichy, especialmente na mensagem que, em nome do Marechal, Jean-Louis Tixier Vignancourt dirigiu aos franceses em 9 de Outubro de 1940. 

Nas décadas de 1930 e 1940 também o corporativismo português exerceu especial influência nos Países Baixos, que procuravam uma "renovação" nacional. O país estava religiosamente fragmentado e socialmente dividido, o que impedia a prossecução de uma real política de desenvolvimento. Surgiram então os vernieuwers ("inovadores") que pugnavam pela solidariedade económica e social entre o povo neerlandês (Volkseenheid), a emancipação das áreas rurais e a regulamentação e racionalização da produção económica (ordening).

Os inovadores neerlandeses foram muito influenciados por Denis de Rougemont. Jacques Maritain e Emmanuel Mounier.

O defensor mais influente nos Países Baixos do corporativismo português foi Edward Brongersma, católico convertido que queria organizar o Partido Católico. A sua tese de doutoramento, na Universidade de Nijmegen, foi sobre a Constituição Portuguesa de 1933.  A carreira política de Brongersma foi interrompida em 1950 quando foi preso por ter relações sexuais com um rapaz que ainda não havia completado os 17 anos, quando na altura a idade do consentimento nos Países Baixos era de 21 anos. Após 11 meses de cadeia regressou à actividade política tendo-se salientado na luta pela abaixamento da idade de relações sexuais para os 16 anos, que acabaria por ser reduzida para essa idade em 1971. Brongersma pretendia todavia que o consentimento fosse fixado numa idade ainda mais baixa mas não conseguiu. Como senador, foi um dos grandes defensores no seu país da pedofilia e da eutanásia, tendo morrido exactamente por esse  processo.

Também na Dinamarca as ideias corporativas e o regime de Salazar influenciaram os políticos e a população. Em 1932, uma jovem figura pública, Ole Bjorn Kraft, publicou Fascismen - historie, loere, lov (Fascismo - História, Doutrina, Leis), em que fazia uma avaliação positiva da obra de Mussolini. O jornalista Ejnar Black, efectuou na revista "Billedbladet", nos anos 30, o elogio dos líderes fascistas e chegou a ser recebido por Hitler e Mussolini. Em 1940, escreveu um artigo laudatório de Salazar. Mas o conhecimento de Portugal na Dinamarca era muito mais limitado do que o da Espanha de Franco e só se tornou mais notório a partir de 1937, devido a uma palestra do empresário Knud Hojgaard, gerente de uma importante empresa de construção espalhada por vários países. 

A apreciação do corporativismo e de Salazar foi muito positiva nos sectores da direita dinamarquesa durante largos anos, mas foi esmorecendo depois com a passagem do tempo.

Analisando agora a influência do salazarismo na Grécia, conclui-se que ele teve particular importância no pensamento do general Metaxas, que foi primeiro-ministro e que efectuou um golpe de Estado em 4 de Agosto de 1936 (com o apoio do rei Jorge II), tornando-se chefe de um governo ditatorial até à sua morte em 1941. Metaxas tentou manter uma posição equilibrada entre os Aliados (a Família Real era anglófila) e a Alemanha, tendo as suas relações com a Itália sido complicadas. A publicação semi-oficial do governo chamava-se mesmo "Estado Novo" (Neon Kratos). A política desenvolvida por Metaxas esteve sempre mais próxima de Salazar do que de Hitler ou de Mussolini. 

Na Hungria surgiu um fenómeno curioso. Com a queda do Império Austro-Húngaro, em 1918, o imperador austríaco Carlos I que era também rei da Hungria como Carlos IV, não teve possibilidade de ocupar o trono, mas enquanto a Áustria adoptou o regime republicano, a Hungria manteve-se monárquica. Após um período de turbulência, ocupou o poder, como Regente, o almirante Miklós Horthy (que acabaria os seus dias em Portugal) que apoiaria governos conservadores mais ou menos totalitários, como o de Gyula Gömbös (até 1936) ou o de Béla Imrédy, mas que procuraram manter-se sempre afastados de qualquer movimento fascizante nativo. A Imrédy sucedeu, na mesma linha, Pál Teleki. Eram ambos entusiastas pessoais de Salazar. Ambicionavam ser "Salazares magiares" (p. 180). Teleki chegou mesmo a traduzir em húngaro os discursos de Salazar e a proceder à sua publicação. O pensamento de Salazar foi também largamente divulgado pela imprensa húngara. Teleki suicidar-se-ia em 1941, quando da entrada de tropas nazis na Hungria. A partir dos anos 20 do século passado, e até à instauração do regime comunista, Portugal manteve relações diplomáticas com a Hungria, por vezes de grande proximidade.

Durante o período da Primeira República Portuguesa (1910-1926) e da Primeira República do Brasil (1889-1930) existiram grandes redes de sociabilidade entre os dois países. Com o advento da Era Vargas (1930-1945), o pensamento corporativo de Salazar exerceu poderosa influência no regime brasileiro. A Constituição brasileira de 1934, que iniciou a Segunda República tinha uma base corporativista. Exerceu especial influência neste período o líder católico Alceu Amoroso Lima, conhecido como escritor pelo pseudónimo Tristão de Ataíde. O apoio que a Igreja Católica portuguesa (nomeadamente através do Cardeal Patriarca de Lisboa D. Manuel Gonçalves Cerejeira) emprestou ao regime de Salazar foi de alguma forma imitado no Brasil pelo suporte dos católicos brasileiros (clero e leigos) ao governo de Getúlio Vargas. A própria Terceira República brasileira (Constituição de 1937) se intitulou (como em Portugal) de Estado Novo, que durou até ao suicídio de Vargas em 1945.

O Equador, o Peru e a Colômbia também receberam considerável influência do salazarismo e do franquismo. O discurso político da direita nesses países assentava nas associações católicas e no corporativismo católico, no nacionalismo radical e na hispanidade. Ele reflectia de certa forma a "aliança" que se verificava na Europa entre Franco e Salazar.

Na Argentina e no Chile havia mais proximidade com o nazismo de Hitler e o fascismo de Mussolini. Mas verificavam-se igualmente influências das ditaduras de Primo de Rivera em Espanha e de Salazar em Portugal. Os modelos autoritários adoptados nesses  países reflectem  apropriações selectivas desses regimes.

Na conclusão, Costa Pinto considera que a Alemanha de Weimar já era dominada pela direita conservadora e radical antes da chegada de Hitler ao poder. O próprio Franz von Papen concebeu a ideia de um Estado Novo alemão, mas a ascensão do Partido Nacional Socialista gorou esse projecto. Tivesse sido outra a história e a Alemanha poderia ter tido um regime próximo da Áustria de Dolfuss, do Portugal de Salazar, ou do Estado Novo de Getúlio Vargas. E afirma também que o romeno Mihail Manoilescu foi talvez o mais notável exemplo de um intelectual-político promotor de instituições políticas da terceira via autoritária e, por causa disso, um dos principais difusores do modelo institucional do salazarismo na era do fascismo.

A análise das influências do salazarismo nos diversos países, a cargo de alguns investigadores estrangeiros e nacionais, porque apresentando, necessariamente, informações cruzadas, e por isso repetitivas, tornam a leitura do livro por vezes maçadora.

 

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