Por sugestão de um amigo, li A Estranha Morte da Europa, de Douglas Murray, jornalista e escritor britânico (n. 1979). Trata-se da tradução de The Strange Death of Europe (2017), tendo a versão portuguesa sido publicada em 2018. Curiosamente, este livro passou-me despercebido, ou porque já não preste às recensões a mesma atenção de outrora, ou porque a sua difusão tenha sido alvo de uma certa discrição, para não escrever boicote, atendendo ao tema em apreço.
Não obstante, Murray tem colaborado regularmente em diversos jornais e é autor de livros sobre temas aparentemente diversos, que vão da política à sexualidade, da religião à sociologia. Este livro faz parte de uma "trilogia", sendo o segundo volume The Madness of Crowds: Gender; Race and Identity (2019), traduzido em português com o título A Insanidade das Massas (2020) e o terceiro The War on the West: How to Prevail in the Age of Unreason (2022), ainda não traduzido em português.
Parece-me evidente que A Estranha Morte da Europa deveria ser de leitura obrigatória desde o momento da sua publicação. Não porque subscreva integralmente todas as teses do autor, mas porque o panorama descrito relativamente à Europa é de uma clareza meridiana, as informações bastante objectivas e todas as fontes de informação pormenorizadamente identificadas.
Sendo uma obra contra o mainstream, ela veicula ideias contrárias à doxa politicamente correcta que é geralmente adoptada pelos políticos europeus. Acusado de fomentar teorias da conspiração, Murray tem sido publicamente interpelado a propósito dos seus escritos e em muitas livrarias os seus livros não se encontram expostos ou sequer disponíveis.
Importa, contudo, dizer que no livro em questão a informação é absolutamente factual, tendo o autor inventariado minuciosamente os acontecimentos que refere, num trabalho digno do maior apreço.
O tema central é a imigração para a Europa de pessoas oriundas de outras partes do mundo, fenómeno que se verifica sistematicamente há mais de meio século mas que assumiu nas últimas décadas proporções inimagináveis, designadamente depois da invasão do Iraque pela coligação anglo-americana, do ataque ocidental à Líbia na sequência das "primaveras árabes" e da guerra híbrida na Síria. Não é propriamente a imigração em si mesma que preocupa Douglas Murray mas o seu volume. O autor relata detalhadamente os fluxos migratórios nos anos mais recentes, a dificuldade da sua absorção, as progressivas inquietações dos cidadãos europeus, e a forma como foram tratadas pelos governos europeus as vagas de migrantes, especialmente desde o princípio do corrente milénio. E denuncia o multiculturalismo como uma ideia durante anos muito defendida mas cujos resultados classifica de trágicos.
Segundo Murray, a principal preocupação inicialmente manifestada pelos europeus (brancos) era a cor da pele dos migrantes (negros, árabes, turcos e por aí forma) e muitos dos seus costumes e tradições não integráveis (pelo menos facilmente) nas populações. Hoje, porém, Murray considera a cor da pele um factor secundário, atribuindo à religião (no caso, a muçulmana) a principal dificuldade no convívio quotidiano. É que o islão, mais do que uma religião, é todo um sistema de valores incompatível (se levado a sério) com os valores dominantes da civilização dita ocidental.
Os governos da Europa Ocidental recusaram, durante longo tempo, admitir a existência de problemas com a permanência no continente de milhões de imigrantes provenientes de longínquas proveniências, ainda que inicialmente fossem norte-africanos, turcos e indianos (do subcontinente em geral) os representantes mais significativos do contingente. Essa recusa baseou-se no receio de serem considerados xenófobos ou racistas e só muito recentemente começaram a ser tomadas medidas realmente efectivas para conter o imparável fluxo. Muitas foram as razões invocadas: desde as vantagens para a economia, uma vez que a população activa da Europa está envelhecida e não cessa de diminuir, à oportunidade de estabelecer uma diversidade cultural no velho continente. E também razões de ordem mais pragmática, como a impossibilidade de travar a imigração devido à globalização. E de ordem moral, uma vez que muitos dos migrantes fugiam da fome, da guerra, de perseguições. Estes aspectos são minuciosamente tratados no livro. As imagens exaustivamente difundidas pela comunicação social confortaram a opinião dos governos e dos movimentos empenhados na imigração, uns por motivos humanitários autênticos, outros para justificarem a existência das respectivas associações.
É evidente que muitos dos argumentos sustentados por Murray são indesmentíveis mas é igualmente verdade que, desde a Segunda Guerra Mundial, a Europa necessitou da mão-de-obra migrante para numerosas tarefas, sobretudo aquelas que os europeus declinavam efectuar. Ainda hoje podemos constatar, até mesmo em Portugal, que os serviços considerados mais modestos são desempenhados por cidadãos das antigas colónias portuguesas de África e, mais recentemente, por brasileiros, bengalis ou paquistaneses. A juntar aos que abandonaram os seus países à procura de melhor vida, e para lá dos refugiados políticos (uma minoria, certamente), começaram a chegar à Europa homens, mulheres e crianças que fugiam da guerra (caso dos afegãos, dos sírios, dos líbios) e procuravam, e procuram, em territórios europeu, viajando a maior parte das vezes em precaríssimas circunstâncias, um porto de abrigo. A toda esta gente, deve somar-se um número imenso de imigrantes subsaharianos, que, após o assassinato do coronel Qaddafi, que os sustinha, começaram a utilizar a costa da Líbia par atravessarem o Mediterrâneo.
Pôs-se, assim, à Europa o dever moral de acolher estas populações em fuga por motivos económicos ou puramente de sobrevivência, fingindo ignorar-se que as capacidades de acolhimento não eram ilimitadas. Disse Michel Rocard (e estou a citar de cor) que a França não poderia acolher toda a miséria do mundo.
Todavia, o que Douglas Murray enfatiza não é apenas a quantidade dos migrantes mas a qualidade. Não a qualidade da raça mas a qualidade da religião. Sendo muçulmana a mais importante parcela de imigrantes na Europa, e sendo o islão uma religião que impõe os seus crentes normas especiais de conduta que excedem o domínio da fé, começaram a surgir problemas de convivência com as populações autóctones, que conduziram a actos de violência que todos conhecemos, nomeadamente os praticados por adeptos do Estado Islâmico (o Daesh ou ISIS) surgido no Iraque após o enforcamento pelos americanos de Saddam Hussein e em consequência do desmantelamento do regime deste país.
Tudo o que escrevi, em sintética síntese, encontra-se pormenorizadamente descrito no livro de Murray. As tentativas de multiculturalismo falharam em quase todos os lugares, possivelmente porque teriam de falhar mas também porque, desde o começo das migrações argelinas para França ou indianas para o Reino Unido, ou depois turcas para a Alemanha, os governos não souberam (ou não puderam) criar as condições de habitabilidade para as populações recém-chegadas. O amontoar, durante décadas, de norte-africanos nas "cités", onde criaram verdadeiros baluartes, decorrentes de agrupamentos familiares, de proximidades geográficas ou de "afinidades electivas", é uma situação que devia ter sido prevista pelos governantes, mas não foi!
Com não posso transcrever todo o livro, permito-me, como exemplo, citar um período (p. 220): «Há alguns anos, durante uma conferência na Universidade de Heildelberg, que a catástrofe plena do pensamento alemão moderno me caiu subitamente em cima. Um grupo de académicos e outros tinham-se reunido para discutir a história das relações da Europa com o Médio Oriente e o Norte de África. Em breve se tornou claro que nada se poderia aprender, porque nada se poderia dizer. Sucessivos filósofos e historiadores passaram o tempo a tentar, cuidadosamente, não dizer nada com o maior êxito possível. Quanto menos se fosse capaz de dizer, maior o alívio e o aplauso. Nenhuma tentativa de abordar qualquer ideia, história ou facto conseguia passar sem primeiro ter feito uma paragem nas boxes da moderna academia. Nenhuma generalidade poderia ser aventada e nada de específico poderia ser proferido. Não era apenas a história e a política que estavam sob suspeita. A filosofia, as ideias e a própria linguagem tinham sido isoladas por um cordão, como se faz num cenário de crime. Para quem viesse de fora, a orla do cenário era claramente visível. O trabalho dos académicos era policiar o cordão, enquanto mantinham, ao mesmo tempo, algumas distrações para impedir, a todo o custo, os viajantes de tropeçarem de volta ao terreno das ideias.»
E, já agora, um outro período (p. 221): «Qual é a consequência de as pessoas virem para a Europa em quantidades enormes sem terem herdado as dúvidas e as intuições dos europeus? Neste momento ninguém sabe, nem ninguém alguma vez soube. A única coisa de que podemos estar certos é que isso terá uma consequência. Pôr dezenas de milhões de pessoas, com os seus próprios conjuntos de ideias e de contradições, num continente com o seu próprio conjunto de ideias e contradições tem de ter consequências. A presunção dos que acreditam na integração é que, a seu tempo, todos os que chegam se transformarão em europeus, uma presunção tornada menos provável pelo facto de que tantos europeus não têm a certeza se querem ser europeus. É altamente improvável que uma cultura de dúvida e desconfiança de si mesma seja capaz de persuadir outros a adotar a sua própria posição. Entretanto, é possível que muitos - pelo menos - dos que cheguem se agarrem às suas próprias certezas ou até, muito plausivelmente, atraiam europeus das gerações futuras com essas certezas. É plausível também que muitos daqueles que chegam desfrutem o estilo de vida, participem das aspirações e dos resultados da melhoria económica, desde que ela continue, e, ainda assim, desprezem ou desdenhem a cultura para o interior da qual vieram. Podem usá-la - como o presidente Erdoğan disse, inesquecivelmente, da democracia - como um autocarro, e saírem quando ela os tiver levado ao destino que queriam.»
Este livro, com mais de 300 páginas e uma densa mancha tipográfica, sendo um retrato vivo da Europa actual torna, por vezes, a sua leitura um pouco cansativa, dada a minúcia das descrições do autor. Nada perdia em ser mais breve, evitando a repetição de muitas situações idênticas. Sendo objectivo, algumas interpretações denunciam, à medida que se aproxima do fim, uma certa subjectividade anti-islâmica. Convém considerar que a esmagadora maioria dos muçulmanos na Europa é pacífica e só os acontecimentos no mundo árabe desde o início do milénio radicalizaram as convicções de muitos adeptos.
Também é verdade que a Europa não pode acolher todos quantos demandam a instalação no velho continente. Não é uma questão de insensibilidade ou mesmo de recursos económicos, é uma questão de espaço. E também é verdade, como autor enfatiza, que, em muitos locais, a população autóctone está a ser (ou quase já foi) substituída pela população migrante, com todas as inerentes consequências.
Conseguirá a Europa sobreviver a esta prova? O autor não responde. Eu também não!
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